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CONTROLE SOCIAL | Do baile da 17 à Rennan da Penha: a criminalização da periferia é uma tradição histórica

Quem tem medo dos negros e de sua cultura? A repressão ao baile da 17, que matou 9 jovens, e aos espaços de lazer, arte e cultura marginais da juventude negra só fazem reafirmar um Estado que nunca superou o racismo legado da escravidão, e que, por isso mesmo, teme o potencial dos debaixo de se insurgirem contra essa opressão.

terça-feira 3 de dezembro de 2019 | Edição do dia

Assim como o baile da 17 em Paraisópolis, há inúmeros outros bailes organizados pela juventude periférica, negra em sua maioria. Ao terem seu direito a circular pelo centro da cidade negado (tanto pelo valor da passagem, como pelas abordagens policiais ostensivas), milhares de jovens não se resignam à rotina de vida que os reservam, de apenas trabalhar, em trampos precários, sem descanso e lazer. Organizam assim eles mesmos seus espaços de lazer e suas novas possibilidades de carreira, sendo a música e a organização destes eventos um novo ramo, alternativa inclusive ao tráfico e ao crime para muitos.

Alega-se, entretanto, que estes bailes são tomados pelo tráfico, pelo crime e pela prostituição. Há inclusive vertentes do funk que tratam destes temas, como o proibidão. Em 2017, à época em que um projeto de lei do Rio visava a criminalizar o funk, Mc Koringa além de criticar o fato de quererem criminalizar um ritmo por causa de uma só vertente, também pondera sobre o por quê estes temas aparecem nas letras, dizendo que "o proibidão nada mais é do que uma realidade que se vê nas ruas. Se você não quer que as pessoas cantem sobre crimes, dê condições de vida melhor para elas".

É assim que as contradições que se vê nos funks não são exclusividade do ritmo ou da periferia. Exemplo disso é que o consumo de drogas e a prostituição são uma realidade também nas baladas e festas da elite nos centros urbanos. A diferença é que ali a polícia não realiza massacres como na 17, pelo contrário, está à porta fazendo escolta.

A polícia mata 9 e prende Rennan da Penha como um claro recado para que o negro pobre se mantenha em seu lugar. Mas este recado não é novo e nunca fez os negros baixarem a cabeça. Voltemos ao tempo para verificar essa repressão à cultura negra periférica. Voltemos à repressão ao hip hop e rap nos anos 90, que culminou inclusive na prisão dos integrantes da banda Planet Hemp por "apologia às drogas" em 1997. Ou em 2000, quando alegando "apologia ao crime" a polícia do Rio "investiga” o clipe Soldado do Morro, do rapper MV Bill, antes mesmo de ser lançado. Ainda assim, o rap sobrevive.

Voltemos um pouco mais no século passado, à criminalização do samba. Os sambistas eram vistos como vadios, malandros, transgressores. Sempre abordados pela polícia, esta matéria do jornal BBC conta que João da Baiana (1887-1974), por exemplo, precisou de ajuda de um congressista para não ser mais preso nas ruas. Fã de samba, o senador José Gomes Pinheiro da Fonseca (1851-1915) escreveu uma dedicatória no pandeiro de João. Quando era parado pela polícia, o músico mostrava o instrumento com a assinatura.

Getúlio Vargas descriminalizou o ritmo, mas não sem exigir intervenções nas letras. Isso não fez com que todo o samba deixasse de lado seu caráter contestador, pelo contrário. Na ditadura militar de 1964 foi um dos ritmos que teve mais autores perseguidos por conta de sua resistência a esse regime.

Voltemos ainda mais, à época da escravidão. Os governantes criminalizaram a capoeira pois temiam que a dança, misturada à luta, pudesse ser uma ameaça a seus interesses. Mesmo depois da aprovação da Lei Áurea, a prática da capoeira seguiu sendo crime. Até nossos dias, os capoeiras resistem contra o racismo e o conservadorismo, sendo o assassinato de Mestre Moa do Katendê mais uma ferida aberta do governo Bolsonaro.

A história dos negros nunca foi de passiva submissão como aprendemos na escola. Como diz CLR James, em texto recém-publicado na 2ª edição do livro Revolução e o Negro, “O negro dócil é um mito(...) O único lugar onde os negros não se rebelaram é nos livros de historiadores capitalistas.". É assim que não há justiça para os negros enquanto seguirmos perdendo nossos jovens, nossas Marielles, nossas Ágatas, nossos Moas. Mas também não haverá descanso para a polícia, o Estado e seus patrões enquanto seguir essa chacina.




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