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LITERATURA | Conto: Documento de identidade

terça-feira 22 de outubro de 2019 | Edição do dia

"Roberto, eu quero que você sempre ande com esse documento no bolso quando sair de casa".

Já era a terceira vez que meu pai dizia essa frase. Não sei por que isso era tão importante para ele. Eu olhando para aquele papel plastificado, meio esverdeado enquanto descia andando a rua de casa. Ele tinha me feito faltar na escola para ir tirar esse tal de RG. Eu não via nada demais naquilo. Eu tinha onze anos e aquilo era só uma mistura de informações para mim. Tinha número, tinha letra e minha assinatura. Na hora de assinar meu nome, eu quase escrevi Betinho sem querer, era assim que a maioria das pessoas me chamava, mas ainda bem que meu pai conhecendo o seu filho se antecipou.

"Tem que assinar seu nome inteiro filho".

Chegamos em casa e ainda faltava uma hora para o almoço. Vi os moleques jogando bola na frente e logo fui lá fora mostrar minha novidade. Assim que saquei o papel plastificado do bolso, os moleques já me cercaram com curiosidade.

"Seu pai tem medo que você seja preso Betinho? Meu avô disse que se você tiver um desse a polícia não pode te prender", disse um deles.

"Eu não sou ladrão", respondi firme.

Se bem que pensando bem, tinha algo que volta e meia me incomodava. Não era raro alguns comentários sobre como eu era mais esperto que os outros e que era bom ficar atento comigo.

Era comum eu ouvir isso sobre outro amigo meu também. O nome dele era Michel, mas todo mundo o chamava de Chéu. As pessoas nos achavam parecidos, era comum perguntarem se éramos irmãos. Ele era meu melhor amigo, estudávamos juntos na quarta série da escola do bairro. Naquele dia, tínhamos combinado de ir a uma fazenda ali perto depois do almoço. Diziam que lá tinha árvores cheias de mangas maduras.

Almocei depressa, escovei os dentes e fui encontrar Chéu na esquina da minha rua. Fizemos o caminho em meia hora. Periferia no interior é assim, se você pegar uma rua e for reto, você acaba em uma fazenda. E assim chegamos ao lugar em que ouvimos ter os pés mais carregados. Pulamos a cerca, andamos mais um pouco e lá estava. Uma dúzia de pés de manga, aqueles pontinhos amarelos em contraste com as folhas verdes escuras, fez nossos olhos brilharem. Saímos correndo loucamente para subir nas mangueiras.

Lá estávamos nós, se lambuzando encima das árvores. Jogando caroço de manga um no outro. Chéu era um moleque atentado.

"Betinho, Betinho. Olha aqui", me chamava com a voz de quem ta com a boca cheia.

Eu olhei e ele estava com dois caroços de manga na boca, com a bochecha enorme imitando o Fofão. Eu ri tanto que quase cai da árvore.

A tarde passando e a gente se empanturrando de manga. Uma sensação de satisfação nos deixava relaxados. Até que de cima da árvore eu vejo um carro vindo pela estradinha de terra que dava onde nós estávamos.

"Acho que é a policia", disse Chéu com uma voz séria. Eu nunca tinha o visto falar tão sério.

Em poucos segundos eles já estavam embaixo das nossas mangueiras. Saíram dois homens do carro. Um gordo careca meio queimado do sol e um magro baixo branquelo.

"Desce daí molecada!", disse o Careca com a mão apoiada na cintura.

Assim que nós descemos. O Careca agarrou Chéu pela camisa e o Baixo me segurou pelo braço.

"Quem falou que vocês podem ficar aqui hein? Essa fazenda aqui tem dono, vocês acham que podem entrar aqui e pegar as coisas dos outros?", o Baixo dizia olhando para mim. A minha única reação foi balançar a cabeça em sentido negativo.

"Tinha que ser dessa cor", dizia o Careca balançando a cabeça de um jeito irônico. "Essa raça é assim", continuava. "Começa roubando manga depois já ta roubando casa e banco. O que você me diz hein?", enquanto o Careca falava, sacudia Chéu para frente e para trás. "Fala moleque!", o Careca gritou e soltou um tapa no rosto do meu amigo. Chéu balançou e caiu para trás com o olho arregalado de tão assustado. Minhas pernas tremiam, tentei desvencilhar do Baixo que segurou meu braço mais forte.

"Quer correr é?", disse rindo pra mim.

Nessa hora tentei pensar em algo. Lembrei do documento. Lembrei que com o documento a polícia não poderia te prender. Passei a mão que ainda estava livre nos bolsos da bermuda. Droga! Não estava ali, Eu tinha esquecido o documento em casa.

De repente o policial me solta e outro se afasta de Chéu.

"Olha seus favelados, se vocês não quiserem apanhar mais podem sair correndo daqui. Vai!"

Chéu olhou para mim como quem dizia: "Corre!" Levantou e saiu correndo. Eu também não pensei muito e corri seguindo ele. Acho que eu nunca tinha corrido tão rápido, minhas pernas pareciam que iriam se descolar do meu corpo.

Só paramos de correr depois de pular a cerca da fazenda. Eu estava tão ofegante que não consegui falar nada. Chéu continuava andando com passo firme e não olhava para o lado. Devagar fui recuperando o fôlego e seguindo o caminho para casa. Fizemos o caminho de volta em silencio fúnebre. Eu olhava para o meu amigo pensando em falar algo, mas o olhar dele estava tão distante que eu desistia. Eu nunca o tinha visto assim. Passava tanta coisa em minha cabeça que quase não notei quando chegamos à esquina da minha rua. Quando fui me despedir de Chéu, olhei em seu rosto e percebi seus olhos marejados. Parecia estar com vergonha de mim. Nem me estendeu a mão, apenas balançou a cabeça, virou e saiu andando.

Subi a rua em direção a minha casa com os pensamentos a mil. Se eu tivesse com meu documento eu poderia ter evitado tudo. Falando nisso, eu não poderia contar para meu pai sobre o que tinha acontecido, era provável eu apanhar dele.

Cheguei em casa e fui para o banheiro. Tirei a camiseta em frente ao espelho. Reparei no tom da minha pele. Pensei que poderia realmente ter algo de errado naquilo. Será que ali existia um tipo de maldição a ser contida? Por que meu pai queria tanto que eu tivesse um documento? Será que os policiais tinham razão? Eu não tinha a resposta para aquelas perguntas. Mas eu tinha a certeza que se eu pudesse seria outra coisa. Qualquer outra coisa era melhor que aquilo.




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