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SEMANÁRIO

152 anos da comuna de Paris: mulheres, marxismo e luta de classes

Lina Hamdan

152 anos da comuna de Paris: mulheres, marxismo e luta de classes

Lina Hamdan

Além de março ser o mês das mulheres, é também do aniversário de morte de Marx e do início da Comuna de Paris. Neste ano, em que se completam 152 da primeira experiência na história de um governo operário, que durou 72 dias, a França se vê em ebulição contra a Reforma da Previdência de Macron. O que as mulheres podem aprender com tudo isso?

Na mais recente publicação da Editora Iskra, "Mulheres, Revolução e Socialismo", encontramos um fragmento de ata da Conferência da Associação Internacional dos Trabalhadores, de setembro de 1871, em que Karl Marx propõe a formação de comissões exclusivas de mulheres nas organizações internacionais e nacionais de trabalhadores, indo além da participação das trabalhadoras nos espaços mistos de discussão, defendendo que tal proposta não iria formar grupos exclusivos de homens. O exemplo que ecoa na cabeça de Marx é a Comuna de Paris.

Será nessa profunda experiência do movimento operário internacional que irá emergir umas das primeiras organizações de mulheres de massas, que vão cumprir um papel determinante na organização das mulheres nos espaços de decisão e atuação da Comuna, se enfrentando com o conservadorismo de boa parte do movimento operário da época. As mulheres, já empregadas em larga escala em diversos países, frente ao machismo impregnado na sociedade, já haviam experimentado na Comuna como preferiam discutir entre si ao mesmo tempo em que atuar (muitas vezes tendo que lutar por isso) em espaços de homens e mulheres.

Marx cita as "communardes" como exemplo para defender que ter espaços exclusivos de mulheres trabalhadoras, para que elas pudessem debater e discutir entre elas, está ligado também ao papel que cumprem na vida: “trabalham nas fábricas, participam das greves, da Comuna etc. Elas têm mais audácia que os homens”. E finaliza a defesa de sua proposta, aprovada entre as resoluções depois de enfrentar discordâncias de alguns dos presentes, recordando “a ardente participação das mulheres nos sucessos da Comuna de Paris”.

Há 152 anos, se instaurava em Paris a primeira experiência de um governo operário na história. É por essas conquistas da organização dos trabalhadores que o impacto da Comuna precisa reverberar no movimento de trabalhadores e de mulheres em escala internacional. Devemos apreendê-la para tirar lições para toda uma nova camada de militantes homens e mulheres que vão se formando, numa situação de crise capitalista que se arrasta desde 2008, passando por processos importantes de conflitos interburgueses como a guerra na Ucrânia; de uma pandemia em que a classe trabalhadora evidenciou mais escancaradamente essencial seu papel para o funcionamento da sociedade, e as burguesias evidenciaram como o lucro está à frente das vidas, sendo mulheres 80% dos profissionais de saúde vítimas da Covid-19; em que muitos países vivem crises de hegemonia, sem conseguir garantir estabilidades de seus regimes políticos, e com questionamento de massas às organizações e partidos “tradicionais” que alternaram governos por décadas, e mais recentemente a nova quebra de bancos nos EUA, com mais uma vez os Estados burgueses mostrando como têm bilhões para salvar imediatamente suas instituições financeiras, enquanto milhões seguem desempregados, com fome, sem casa, com dívidas, etc.

O aniversário da Comuna se dá no mês de março, mês da luta das mulheres e do aniversário de Karl Marx. A Comuna representa o espírito de uma revolução em que as mulheres não só conquistaram, em seus 72 dias de existência, o direito à educação, ao divórcio e de trabalhar em funções das quais não eram permitidas às mulheres, mas também o direito de lutar fisicamente, com armas à mão, diretamente nas ruas e barricadas, lado a lado com os homens por um governo de trabalhadores. Diferente da burguesia francesa, o governo operário, que se organizou e tomou o controle da cidade de Paris, não impediu as mulheres de estarem, armas na mão, na linha de frente dos enfrentamentos militares, no caso organizadas a defender a conquista dos trabalhadores e a lutar contra o exército prussiano e o próprio exército francês que se voltou contra a Comuna.

Há dois anos atrás, no aniversário de 150 anos da Comuna, desenvolvi sobre como, assim como em todos os processos revolucionários, o papel das mulheres na Comuna foi destacado, trazendo alguns de seus feitos neste processo. Não é uma particularidade da Comuna o papel pioneiro das mulheres na luta de classes. Desde à Revolução Francesa passando pela Revolução Russa em 1917, e hoje quando vemos cada luta social em diferentes lugares do mundo e categorias, como agora na luta dos trabalhadores franceses contra a Reforma da Previdência de Macron, elas muitas vezes se localizam com "mais audácia". Sobretudo pelo sofrimento mais exacerbado destas em situações de crises profundas, já que historicamente foram e são as mulheres as mais responsáveis pelo trabalho de cuidado de filhos e idosos, pela comida que chega nos lares, portanto são mais drasticamente atingidas quanto à responsabilidade frente à fome e ao desemprego. Assim como os ataques das burguesias e suas instituições hoje e sempre recaem primeiramente sobre os ombros dos setores mais oprimidos da sociedade. No acaso atual francês, a reforma da previdência, assim como a que foi aprovada no Brasil pelo governo Bolsonaro com a conivência das centrais sindicais, impacta sobretudo aqueles setores que recebem salários mais baixos, que passam mais tempo de suas vidas em situação de desemprego, como as mulheres imigrantes, pois adia a aposentadoria e reduz o valor integral da mesma, quando conseguem conquistá-lo. Esses fatores levam as mulheres das classes trabalhadora e populares a se localizarem à frente como sujeito fundamental nas situações de luta de classes.

Na Comuna de 1871, a dedicação das mulheres se liga ao fato de verem na luta por um outro tipo de organização social, a única possibilidade de conquistar a igualdade de direitos e a liberdade política e social, impondo isso com suas próprias mãos. É a possibilidade de participação política direta nas decisões da Comuna e na execução destas, sem separação do executivo e do legislativo, com representantes políticos e juízes eleitos e revogáveis pelas bases, recebendo salário médio de um trabalhador qualificado, com fábricas geridas por seus próprios trabalhadores, com jornadas de trabalho reduzidas.

Em Lenin, assim como Marx e Engels, a Comuna de Paris é apresentada como o ponto de inflexão, como a “forma política enfim encontrada” de resolver o problema de que a classe trabalhadora não pode se fazer valer do aparato do Estado burguês para construir o socialismo, mas que tem que destruí-lo e forjar seu próprio poder. -> https://www.esquerdadiario.com.br/Para-alem-da-Restauracao-burguesa-15-teses-sobre-a-nova-etapa-internacional-em-contraponto-com

Responsáveis pelo primeiro estalo insurrecional da Comuna, ao impedirem com seus corpos a tomada dos canhões sob a guarda popular, as mulheres desempenharam nessa revolução um papel sem precedentes. Numa França que reservava às mulheres o lugar de “menores de idade”, devido ao vigente código napoleônico, elas enfrentavam enormes dificuldades de se sustentarem, tendo as maiores taxas de desemprego. Na Comuna, as mulheres abriram com suas mãos, aos milhares, as portas das fábricas e entraram diretamente na produção de armas e munições e outros bens necessários para a guerra civil.

Apesar de todo papel que cumpriram, de intervirem nos debates nos clubes, nos comitês dos distritos nos quais elas vão poder ser eleitas, nas comissões de vigilância auto-organizadas em defesa da cidade, elas seguiram excluídas do direito de votar e de serem eleitas para o Conselho da Comuna, a câmara central do novo governo operário. Esse aspecto mostra bastante como a revolução, essencial para a desmantelamento de todas as estruturas corruptas do Estado burguês que permitem uma dominação de classe e a construção do zero de todo aparelho administrativo, de um novo estado operário, não pode eliminar por decreto heranças ideológicas burguesas profundamente enraizadas em mentes e corações do povo. Ou seja, a tomada do poder político pela classe trabalhadora coloca as bases materiais para atacar na raiz os problemas da opressão na sociedade, mas mantém a sobrevivência, inclusive no seio da classe trabalhadora, aspectos de uma sociedade patriarcal, racista, xenofóbica que não vão acabar de um dia pro outro. Tal constatação reforça como a luta revolucionária antes e depois da revolução precisa ligar intimamente e permanentemente o sentido anticapitalista ao sentido feminista, antirracista, antilgbtfóbico etc. Como diz Trotski em texto de 1925 [1], após a tomada do poder “o proletariado não faz ‘tábula rasa’ e recomeça arbitrariamente do zero. Não. Abraça a mecânica social do movimento revolucionário com todas as suas camadas e contradições”. E este é um problema radical da revolução, que não pode ser rebaixado em hipótese alguma.

Hoje, em 2023, há mais de um mês em luta contra Macron - luta que, entretanto, ainda que massiva, vinha se dando de forma bastante controlada pelas direções sindicais burocráticas - a classe trabalhadora e a juventude francesa sai as ruas com ódio a plenos pulmões. Paris está em chamas e coberta de lixo. Os garis estão parados, recebendo apoio da juventude que se grita anticapitalista e que é reprimida pela polícia. Após a aprovação autoritária da reforma da previdência, feita pelo decreto 49.3 [2] pelo governo Macron, os petroleiros da Normandia ameaçam criar uma crise energética sem precedentes no país. O fogo do ódio de classe faz as massas lembrarem do histórico revolucionário da cidade da Comuna. Nas ruas gritam “Paris, de pé. Rebele-se.” E ameaçam o bonapartismo de seu regime político nacional: “Luís XVI, nós o decapitamos. Macron, nós podemos recomeçar”. E na mesma praça onde Maria Antonieta e Luís XVI foram executados há 230 anos, lê-se “A sombra da guilhotina está chegando”.

O espírito ácido do filósofo Frederic Lordon nesta última sexta-feira, em meio às manifestações espontâneas que estão acontecendo, quando um militante do Révolution Permanente lhe entrevista, é um registro do novo momento: “Eu adoro esse governo. Não existe melhor aliado do movimento social do que este governo. Ele é o bingo dos perdedores. Todas as canalhices possíveis a fazer, eles fizeram - metodicamente, uma após a outra. E hoje, o 49.3 é a apoteose. Eles colocaram gasolina no fogo. É formidável. A fúria popular ultrapassou um marco (…) Entramos numa fase absolutamente inédita do movimento. Eu acho que o que está acontecendo aqui [em Paris] também está ocorrendo em muitas outras cidades da França. E as instituições, as mídias oficiais, as direções do movimento de massas, têm coisa a se preocupar. Está começando a transbordar exatamente como é preciso que seja. E é a melhor coisa que poderia ter acontecido."

É hora de lembrar o que dizia o Comitê de Vigilância das Cidadãs, em publicação no jornal oficial da Comuna, fazendo um chamado: “Nada de deveres sem direitos, nada de direitos sem deveres! Nós queremos trabalho, mas também o produto do trabalho… Chega de exploradores, chega de senhores!”

É com esse espírito da luta de classes internacional, histórica e atual, que nós mulheres comunistas queremos nos reunir, ter nossos espaços, para pensar - metodicamente - como em cada lugar do mundo devemos conhecer as raízes profundas nacionais, combater o machismo e todas as formas de opressão em cada lugar onde se expressa e sobretudo nos nossos locais de trabalho, e atuar de forma a escancarar como o capitalismo e seus governos usam do machismo para melhor explorar toda a classe trabalhadora a serviço da manutenção intocável da propriedade privada de uns poucos herdeiros. Por uma estratégia independente dos governos e das instituições para unificar a luta das mulheres com a luta pelo produto do nosso trabalho, chamamos todes, de todos os gêneros, ao encontro comunista nacional do Pão e Rosas que ocorrerá em diversos estados e regiões do país, reunindo trabalhadoras e estudantes para discutir nosso "Feminismo socialista, antirracismo e revolução".. Somos comunistas porque nossas raízes também estão na Comuna.

Para conhecer mais essas ideias conheça a maior compilação de clássicos do marxismo sobre gênero já editada em língua portuguesa: "Mulheres, Revolução e Socialismo", organizado por Diana Assunção e Josefina Martinez e lançado simultaneamente em diversos países.


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FOOTNOTES

[1Trotsky, León, "Por la calidad, por la cultura" em "Problemas de la vida cotidiana y otros artículos sobre cultura en la transición al socialismo", Ediciones IPS, 2021.

[2Mecanismo permitido pela constituição francesa que permite que o governo aprove um projeto sem aprovação parlamentar.
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Lina Hamdan

Mestranda em Artes Visuais na UFMG
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