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Neste 28 de Maio: Dia Internacional de luta pela saúde da mulher e Dia Nacional da Redução da Mortalidade Materna é preciso falar sobre as mulheres trans e travestis.

Virgínia GuitzelTravesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC

quinta-feira 28 de maio de 2020 | Edição do dia

Há 11 dias, celebrávamos o 17 de Maio, Dia Internacional de combate a Homo, Bi e Transfobia. Data que faz referência há 30 anos atrás quando a OMS eliminou a homossexualidade da lista de doenças mentais. Demorou mais 28 anos para que a 11º revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) retirasse todas as categorias relacionadas às pessoas trans do capítulo sobre transtornos mentais e comportamentais. Um passo fundamental, mas que mudou ainda muito pouco no que diz respeito a saúde das pessoas trans.

Neste 28 de Maio, precisamos nos perguntar: Quem luta pela saúde das mulheres trans? A história entre pessoas não heterossexuais e não cisgêneras e a saúde tem um longo rastro de opressão. Na maioria dos casos, quando se dizia saúde, se falava da "falta de", e da necessidade de uma cura.

Desde o final do século XIX, as abordagens: médica, psiquiátrica e criminal entraram na vida de homens e mulheres homossexuais, em um esforço sem precedentes na história para catalogá-los e demarcar as linhas entre as experiências sexuais consideradas "desviantes", "patológicas" e "viciosas", daqueles consideradas "normais". No entanto, é no século XX, "moderno" e "tolerante", em que os modestos procedimentos farmacêuticos do século XIX deram lugar a tratamentos de radiação, de eletrochoque e de hormônios em busca da "cura" desejada.

Se esta realidade pode parecer hoje muito distante, é só olhar para o governo de extrema direita que temos no Brasil e ver seu ímpeto na guerra contra a suposta "ideologia de gênero" e que diz que as pessoas que convivem com HIV são uma despesa, reforçando o estigma da década de 80, além de propor abstinência sexual como método de prevenção. Ou ainda, sua base dura nas cúpulas das igrejas evangélicas, que entre Silas Malafaia e Marco Feliciano, se vê todo o esgoto que retoma as bandeiras da "cura gay", que não choca mais, já que o governo todo se baseia na "pós-verdade", contra a ciência, a racionalidade e a lógica. Na Assembleia Legislativa de São Paulo se aprovou por manter em segredo os dados de violência contra a comunidade trans. no do Rio Grande do Sul se promoveu um debate sobre"epidemia trans" e em Minas Gerais aprovaram o Escola Sem Partido, sem falar que até no mês passado, se mantinha a proibição homofóbica de que homens gays não podiam doar sangue no Brasil.

Todavia, não se pode desconsiderar que apesar de todo esse ímpeto, do anúncio há mais de um ano de uma "nova era onde menino veste azul e menina veste rosa", Bolsonaro até agora não conseguiu desenvolver seus desejos mais reacionários. O projeto nacional do Escola Sem Partido foi engavetado, o projeto de "Ideologia de Gênero" por hora também, ainda que não faltem novas tentativas e ameaças. Mesmo assim, a realidade das pessoas LGBTQI mudou muito nos últimos anos. Foram inúmeros países que concederam uma igualdade perante a lei com reconhecimento de casamentos igualitários, direito a mudanças de nome e acesso a cirurgias e tratamentos hormonais. Do ponto de vista cultural, a mudança foi sem precedentes: artistas trans invadiram as séries da Netflix, entraram nos aplicativos de música e viraram temas de novelas em horário nobre. No entanto, a igualdade perante a vida ficou relegada a um antigo sonho de grupos libertários.

Transfobia e capitalismo: a violência em números

Os crimes mais bárbaros, com requintes de crueldade, não ganham as telas, nem as capas dos jornais se tem como vítimas mulheres e homens trans ou travestis. Não existem dados oficiais. Mas há um enorme trabalho produzido por Associações e Organizações de pessoas trans, como a a ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transsexuais - que informou em seu último relatório que o números de casos de violência contra pessoas trans aumentou em 49% nos quatro primeiros meses de 2020.

O Brasil se manteve em 1º lugar no Ranking do transfeminicidio. Somente em 2019 teriam sido 124 assassinatos no Brasil, enquanto o México, 2º colocado, reportou a metade (62 casos), o que representa uma diferença muito alta. Segundo ainda o mesmo relatório, em 2019, vimos aumentar a violência direta no dia-a-dia das pessoas trans: 11 pessoas agredidas diariamente no Brasil e foram 124 assassinatos de pessoas Trans, sendo 121 Travestis e Mulheres Transexuais e 3 Homens Trans. Destes, encontramos notícias de que apenas 11 casos tiveram os suspeitos identificados, o que representa 8% dos dados,e que apenas 7% estão presos. Em 2019, os estados apresentaram aumento nos assassinatos: São Paulo, Pernambuco, Rondônia e Tocantins.

Vale salientar que, apesar de não haver dados governamentais sobre a população de travestis e transexuais, trabalhamos com a estimativa de que 1,9% da população seja não-cisgênera, sendo 1,1% da população pertencente ao gênero feminino (travestis e mulheres transexuais); e 0,8% pertencentes ao gênero masculino (homens trans e transmasculinos). Neste ano, tivemos 82% dos casos identificados como sendo de pessoas pretas e pardas, dados do Dossiê Mulher 2019 denunciam que a cada 5 dias uma mulher é vítima de Feminicídio, enquanto a cada 48h uma pessoa trans é assassinada no Brasil (ANTRA, 2017).

Nota-se que 80% dos casos os assassinatos foram apresentados com requintes de crueldade, como o uso excessivo de violência e a associação com mais de um método e outras formas brutais de violência. Tivemos aumento nos casos de apedrejamento e uso de arma branca como ferramenta do assassinato. 52% dos assassinatos por espancamento apresentaram associação com outros métodos cruzados durante o homicídio, como tiros, afogamento, tortura, violência sexual, etc. Vemos, ainda, que 67% dos assassinatos foram direcionados contra travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, que são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma que os processos de marginalização impõem as essas profissionais. 64% dos assassinatos aconteceram nas ruas, em geral por pessoas sem relações afetivas e familiares das vítimas.

Esses assassinatos, que revelam a forma mais cruel que se busca para maltratar outra pessoa por sua identidade de gênero, como ter arrancado o coração da Quelly ou o vídeo de Dandara, são um último elo de uma longa cadeia de violências que se iniciam desde o nosso nascimento a negação da nossa auto-determinação, passa por violência nas instituições de ensino [estima-se cerca de 0,02% de pessoas trans nas universidades, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental (Dados do Projeto Além do Arco-Iris/AfroReggae)], a expulsão de casa [estima-se que 13 anos de idade seja a média em que Travestis e Mulheres Transexuais são expulsas de casa pelos pais (ANTRA)], a exclusão do mercado de trabalho formal, impõe-se muitas vezes a prostituição compulsória (estima-se que 90% da população trans feminina esteja na prostituição) e são marcadas por violências físicas e psicológicas.

Todas essas violências são sustentadas por diferentes instituições, algumas seculares como as igrejas, a família, outras dignas da democracia burguesa como o Congresso Nacional, as instituições de ensino - que reforçam a hétero e cisnormatividade - a polícia - se demonstrou inimiga de qualquer liberdade sexual desde a nossa primeira grande rebelião que ficou conhecida por StoneWall. Se queremos entender o transfeminicidio, e como chegamos a tal barbaridade é porque se naturaliza toda essa cadeia de violências que parte da expulsão de casa, a evasão escolar, os assédios morais e sexuais nos locais de trabalho e estudo, o desemprego estrutural e a prostituição compulsória as identidades trans, a patologização e a ausência de estudos científicos sobre hormonização e saúde para os corpos não-cisgeneros, as péssimas condições de (sobre)vida que somos submetidas. Tudo isso sem mencionar os castigos secretos que a justiça, o Congresso Nacional, a mídia e as diversas instituições burguesas, com destaque para a polícia com toda sua violência homofóbica garantem diariamente, desrespeitando nosso luto. Se é sob esta mira que vivemos permanentemente, como não afetar nossa afetividade?

Ocorre que, esta situação agravada com a pandemia, torna ainda mais difícil lidar com problemas de saúde mental, e essa é a maior preocupação para 44% das lésbicas, 34% dos gays, 47% das pessoas bissexuais e pansexuais e 42% das transexuais. Os dados são de uma recém-divulgada pesquisa realizada pelo coletivo #VoteLGBT, que ouviu mais de 10 mil pessoas de todo país por meio de um questionário distribuído virtualmente, sendo 90% dos respondentes identificados como cisgêneros e, 10%, como transexuais.

No país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo dados da Transpect versus Transphobia Worldwide, e que presencia um aumento de 13% no número de mortes violentas dessa população desde a chegada da pandemia, conforme apontamentos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), é sintomático que Demétrio Campos tenha perdido a vida no Dia Internacional Contra LGBTfobia, celebrado desde 2004.

Transfobia e Pandemia: Lutar por um único sistema de saúde pública controlada pelos trabalhadores contra a industria farmacêutica e a medicina capitalista

A América Latina ainda registra uma perspectiva de vida de apenas 35 anos para uma pessoa não cisgênera. A idade predominante das vitimas são de 26 anos, e há também um importante recorte racial destas vítimas. A pandemia certamente aumentou exponencialmente estas desigualdades já antes muito presentes, com a impossibilidade de realizar as quarentenas devido a maioria das pessoas trans estarem em condições de prostituição e sob forte exploração da cafetinagem, os riscos se multiplicam: violência doméstica, enorme exposição as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), a Covid-19 além dos tratamentos hormonais sem acompanhamento médico e as tortuosas medidas de transformação corporal que se sujeitam ao silicone industrial e auto-mutilação.

Como denunciava Tomas Máscolo na Argentina "A romantização da quarentena é um privilégio de classe", escreveu Ruby em seu Instagram. Junto com o post, compartilhou um pedido urgente de ajuda, ela tem que se prostituir para comer, é uma travesti que veio de Tucumán aos 14 anos de idade e que hoje, aos 24, ainda não conseguiu trabalho registrado. Como ela, está a maioria da população travesti e trans. A exigência de um subsídio especial, acesso a saúde pública, a moradia e a educação, são reinvindicações que não foram atendidas por nenhum governo".

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Como escrevi há alguns anos: "Depois descobri que estes médicos - representantes e aplicadores diretos da ideologia e moral burguesa - só possuem compromisso com a milionária indústria farmacêutica, seu conforto e status social. Representam a não-ciência pragmática, que busca esconder os sintomas, mas nunca combater a doença, pelo contrário, as perpetuam para fazer o mercado "girar". Mas pior é quando se tratam de corpos trans que questionam o domínio do Estado, da igreja, da família e destes charlatões, aí não há negociação. Estão determinados a nos punir: vendem nossa perspectiva de vida, nossa auto-preservação, matam nossa biologia enterrando nossa qualidade de vida em troca de nos construirmos pela metade. Odeiam nosso sonho libertário e como auxiliar da ordem e da moral burguesa cristã nos condenam ao inferno na terra. Eles se orgulham de nos privar a identidade, o direito ao corpo e a qualidade de vida. Estes são os homens e mulheres que escondem, por profunda alienação e covardia intelectual, um dos misteriosos castigos secretos forjados pela sociedade capitalista na curta perspectiva de vida de 35 anos de nós travestis".

A saúde de hoje, assim como os pesquisadores e as universidades, não possuem nenhum comprometimento com nosso bem estar enquanto se mantém geridas pelos interesses capitalistas, que no Brasil pela relação com as igrejas, se enfrenta à ciência em geral. Muito longe dos interesses da população, mas em conluio com o tráfico ilegal de medicamentos e com os acordos legais com grandes indústrias farmacêuticas, a saúde sob o capitalismo não é nada além de mais uma grande indústria extremamente lucrativa. Nossa autonomia é controlada pela restrição do conhecimento que nos é imposta, tendo de aceitar passivamente muitas vezes os laudos, as conclusões e as soluções médicas (parte também definidas pelo tipo de convênio ou os recursos do SUS).

Uma pesquisa realizada em 2016 pelo Hospital das Clínicas da USP e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, com 620 pessoas transexuais de 18 a 64 anos dos dois estados, mostrou dados alarmantes sobre a relação médico-paciente: 43,2% dos entrevistados disseram evitar serviços de saúde pelo simples fato de ser uma pessoa trans. A maioria, 58,7%, afirmou ter sido vítima de discriminação durante um atendimento médico e revelou só procurar um hospital em último caso. Apenas 17,8% dos entrevistados disseram nunca ter sofrido discriminação durante uma consulta.

Desde 2006, o SUS introduziu, por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o direito ao uso do nome social, pelo qual travestis e transexuais se identificam e escolhem ser chamados socialmente – e não apenas nos serviços especializados que já os acolhem, mas em qualquer outro da rede pública de saúde. Dois anos depois, em agosto de 2008, o Sistema Único de Saúde passou a realizar cirurgias de redesignação sexual, também conhecidas como de transgenitalização, para mulheres transexuais que desejam mudar sua genitália. Mesmo com esses avanços a fila para o acesso às cirurgias tão esperadas pelas pessoas trans, que lhes daria direito a dignidade humana e bem estar consigo mesmo, dependem de poucos hospitais como Hospital das Clínicas de Porto Alegre, o HC da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia, o HC da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, o HC da Universidade de São Paulo, Hospital Mario Covas em Santo André e o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro.

Dos cinco hospitais habilitados pelo SUS que fazem as cirurgias em transgêneros, os dados do Ministério da Saúde mostram que, nos anos de 2008 à 2018, 153 procedimentos foram realizados no Hospital das Clínicas de Porto Alegre; 118 no HC da Faculdade de Medicina da USP; 88 no HC da UFG, em Goiás; 68 no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio; e 47 no HC de UFPE, em Recife. Para se ter uma ideia da importância dessa cobertura, especialistas ouvidos pela Universa afirmam que uma cirurgia de transgenitalização pode custar até R$ 35 mil. Uma mastectomia, até R$ 10 mil. Segundo o Ministério da Saúde, entre agosto de 2008 e dezembro de 2017 foram mais de 450 procedimentos hospitalares e 25,7 mil ambulatoriais. O que explica o crescimento de clínicas privadas, além de auto-mutilações e uso de silicone industrial para quem não pode esperar para reconhecer-se.

Essa situação de saúde já muito precarizada, tem um agravamento ainda maior com a pandemia da Covid-19. Isto o é, de inteira responsabilidade em primeiro lugar da sociedade capitalista patriarcal, que transmite sua ideologia LGBTfobica através de governos de extrema direita como Bolsonaro e seus ministros Damares, Weintraub e Ricardo Salles, além do Congresso Nacional, dos governos dos Estados e Municípios, da Igreja e das bancadas fundamentalistas. Se é verdade que o fim das opressões só poderá se dar com o fim do capitalismo e sua exploração do trabalho humano, não podemos permitir que está realidade siga sem um claro enfrentamento. Por isso defendemos que os parlamentares de esquerda assim como a Frente Parlamentar LGBTQI+ impulsione conosco um plano de emergência com 4 medidas fundamentais de enfrentamento com o transfeminicidio e o sistema capitalista.

Além disso, com o crescimento de contaminados e vítimas fatais da Covid-19, fica ainda mais evidente a necessidade de defender o SUS e Um único sistema de saúde, que centralize toda a rede pública e privada, com a expropriação sem indenização dos capitalistas que vem lucrando com os nossos sofrimentos. Estatizando todos os leitos da rede privada e colocando-os a serviço do enfrentamento à Covid-19, sob controle dos trabalhadores tirando das mãos dos capitalistas e dos governos que mesmo neste momento de calamidade veem "oportunidades" de lucrar com as nossas mortes.

Com os trabalhadores à frente, podemos construir uma saúde que se preocupe efetivamente com as vidas das pessoas trans, que coloque toda a tecnologia à serviço de garantir o acesso aos tratamentos hormonais e cirurgias que melhor satisfazerem suas necessidades. Para fortalecer o investimento no SUS precisamos revogar as leis de Responsabilidade Fiscal e a EC 95, conhecida como lei do teto de gastos, além de parar de pagar a dívida pública ilegal, ilegítima e fraudulenta e destinar os fundos necessários para a saúde e a pesquisa para encontrar os melhores tratamentos em relação a saúde da população.




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