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DOSSIÊ 13 DE MAIO: ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO | A Abolição da escravidão e o medo da "haitianização" no Brasil

O “Haitianismo” foi um termo cunhado pela historiografia para se referir ao medo das elites registrados em relatos de viajantes, jornais, cartas, documentos do governo em relação à convergência dos interesses políticos entre negros escravizados e ex-escravos à revolução do Haiti. As elites tinham medo de que uma nova revolução como aquela que colocou fim à escravidão e levou à independência de uma colônia, pudesse surgir em outros territórios coloniais afetando o enriquecimento das metrópoles e dos senhores.

Renato ShakurEstudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

quarta-feira 13 de maio de 2020 | Edição do dia

O “Haitianismo” foi um termo cunhado pela historiografia para se referir ao medo das elites registrados em relatos de viajantes, jornais, cartas, documentos do governo em relação à convergência dos interesses políticos entre negros escravizados e ex-escravos à revolução do Haiti. As elites tinham medo de que uma nova revolução como aquela que colocou fim à escravidão e levou à independência de uma colônia, pudesse surgir em outros territórios coloniais afetando o enriquecimento das metrópoles e dos senhores. Na verdade para além de um medo que o “fantasma” da colônia de São Domingos criara, a revolução de negros escravizados apontou para uma dinâmica de classes bastante particular no Brasil a qual combinava o caráter explosivo das relações escravistas e o constante aprimoramento dos instrumentos de repressão e autoritários contra os negros escravizados.

A revolução do Haiti causava um medo enorme nas elites escravistas brancas porque foi uma revolução que teve origem em um revolta escrava em 1791 que levou ao fim da escravidão e a independência de um território colonizado. Em finais do século XVIII isso era um grande limite para o avanço da burguesia internacionalmente onde acumulava capital a partir da escravidão e da venda de negros africanos como cativos. Para usar as palavras de C.L.R. James um revolucionário negro fundador da Quarta Internacional, que na escravidão escravos recebiam castigos pelo mínimo que fizessem, como levantar e se mover quando não era ordenado. Antes da revolução do haiti pareciam sub-humanos, “a revolução os transformou em herois”. O medo do “haitianismo” crescia rapidamente e o mundo atlântico conectava as experiências das revoluções entre os negros, a grandiosa história da revolução do Haiti não tardou em chegar nos ouvidos de escravizados e libertos por toda a América e inspirar revoltas, fugas, quilombos, etc, e colocar medo numa elite branca escravista de novas revoluções de negros escravizados.

Tão cedo as ideias vindas da Revolução Francesa e da Convenção Jacobina chegaram nas Américas e nas colônias escravista, diferentemente de como ocorrera em outras partes do mundo, ali onde a exploração era marcada pela escravidão negra, a palavra liberdade tão cara à burguesia ganhava contornos totalmente diferentes. Quando manejada por essa classe que se enfrentava, apoiada nos setores populares contra o antigo regime, podia significar liberdade de comércio, a preservação da propriedade privada, o voto (censitário), entre outras coisas. Quando esse mesmo vocabulário, liberdade, chegava aos ouvido das camadas negras, não significou nada menos que o fim da escravidão, algo tão caro aos trabalhadores negros escravizados que muito antes da revolução do Haiti perseguiam esse objetivo com uma crença inabalável.

A revolução do Haiti era fruto das condições de miséria e exploração que negros escravizados eram mantidos, podendo um escravizado ter uma estimativa de vida de 5 anos nas plantações de açúcar e café por conta dos absurdos níveis de exploração do trabalho. As elites escravista e os proprietários de escravos temiam que uma revolução como aquela, algo tão possível quanto imaginável, pudesse ocorrer no Império do Brasil e foi comum ler em jornais daquele momento referências como a do governador Província do Grão-Pará e Maranhão àquela revolução como “terríveis e sanguinárias cenas da ilha do Haiti” ou como “movimentos anárquicos e revolucionários”, e, vale a pena registrar, 21 anos depois da revolução.

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Não só na região Norte do Império se registrou o medo de uma ação política como aquela que de um revolta de escravos se tornou um revolução que pôs fim à escravidão. No Rio de Janeiro, o maior porto escravista do mundo, soldados negros usavam medalhões com o rosto de Desalines, importante dirigente da revolução, além de jornais noticiarem com temor em suas páginas a presença de negros haitianos na capital, como por exemplo os 2 haitianos que já era de conhecimento da polícia de que haviam desembarcado na cidade e haviam sido visto “conversando com muitos pretos”.

A possibilidade de organizar um movimento de escravizados pela libertação não fizeram aumentar a suspeição sob negros haitianos que passassem por qualquer província do Império, mas também fez aumentar a repressão sobre os negros. Alguns negros podiam ser preso por suspeita de “haitianismo”, outros por infringir o código de posturas de 1830 que entre outras coisas proibia que escravizados permanecessem sentados em frente a estabelecimentos e o código de condutas de 1838 que proibia que 4 ou mais cativos circulassem juntos na cidade. A própria criação da polícia militar no Rio de Janeiro em 1808 não foge a essa dinâmica da repressão dos escravizados e o receio de uma revolta como a do Haiti, na região onde estima-se que recebeu milhões de africanos o medo da revolta e a necessidade de reprimir de maneira ainda mais severa e exemplar escravizados que fugiam para os quilombos era ainda maior. Não à toa desde o seu emblema deixavam claro sua intenção de perseguir e caçar negros ao mesmo tempo que se garantia a ordem da propriedade, no seu brasão até hoje vem estampado uma rama de café e outra de açúcar, marcas do sistema escravista.

A “haitianização” era um medo constante das elites escravistas no Império do Brasil, a revolução do Haiti e os rumores de que negros haviam se transformados em heróis e posto fim à escravidão numa colônia nas Antilhas era sem sombra de dúvida a criação de mais um limite à dominação escravista. Uma elite que se construiu sendo espremida pelos interesses da metrópole por cima, e por baixo pressionada pela revoltas de escravizados e quilombos, quando se deparou com os acontecimentos extraordinários da colônia de São Domingo logo teve que reforçar ainda mais seus instrumentos de repressão. As revoltas, greves, motins, assassinatos, os quilombos, a unidade entre trabalhadores tidos como “livres” e escravizados foram fundamentais para o fim da abolição que ao contrário de como nos contam os capitalistas, ela não foi concedida e sim arrancada na luta.

A revolução do Haiti certamente cumpriu um papel importante nesse processo, aqueles revolucionários negros eram motivo de orgulho para qualquer negro, escravizado ou “livre,” seus feitos sem precedentes na história se espalharam pelo mundo atlântico numa velocidade que os senhores de escravos jamais imaginaram. Há 132 anos da Abolição da escravidão ainda lembramos com muito orgulho a memória do Haiti, assim como de tantos outros lutadores e lutadoras negras que marcaram com seu próprio sangue a história. Até mesmo a abolição tem uma participação negra decisiva, ao contrário do que nos contam as mobilizações de escravizados em revoltas e fugas para quilombos abolicionistas, em conjunto com trabalhadores de diversas categorias que através de suas associações levantaram a bandeira da abolição, foram fundamentais a escravidão.

A burguesia tenta apagar nossa história de várias maneiras, para negar a força dos negros e o potencial revolucionário que trabalhadores escravizados tiveram e para nos anos seguintes à abolição manter os negros em condições de miséria, fome e precarização. Revisitar histórias como a da revolução do Haiti, é necessário para refletir sobre as condições absurdas de pobreza e precarização que se encontram hoje os negros e que a revolução social é a única saída para de fato colocar abaixo um sistema que combina opressão racial e exploração econômica como o capitalismo.




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