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A campanha contra o aborto no centro da disputa eleitoral

Diana Assunção

A campanha contra o aborto no centro da disputa eleitoral

Diana Assunção

As eleições presidenciais neste 2022, depois de 4 anos de um governo reacionário e misógino de Jair Bolsonaro, traz à tona um dos debates principais do movimento feminista internacional: o direito ao aborto legal, seguro e gratuito.

“Então, aborto, o presidente Lula é contra, eu sou contra. Ele foi presidente oito anos e não mudou lei nenhuma”, disse Geraldo Alckmin, candidato a vice presidente na chapa presidencial com Lula. Essa frase é elucidativa do lugar em que o tema do aborto está colocado nesta disputa eleitoral. É uma resposta à ofensiva de Jair Bolsonaro que dedicou 5 dos 10 minutos de propaganda eleitoral diário na última semana para atacar o direito ao aborto com imagens de um ultrassom sem o feto, que teria sido abortado. É neste mesmo momento também que uma trabalhadora grávidas de gêmeas siamesas sem possibilidade de sobreviver e em uma gestação que impõe risco de vida à própria mãe teve o direito ao aborto negado 4 vezes pela justiça. Sim, estamos em um momento político do país onde as forças de extrema direita ganharam força. Mas, como consequência do golpe institucional de 2016, dão um passo em sua institucionalização, ou seja, passam a cada vez mais ser parte do regime político, seja pelo seu peso em algumas instituições, como no Senado e na Câmara, seja pela aceitação, ainda que temporária, dos próprios resultados do 1º turno. Esse processo ocorre em meio a uma retórica golpista de Bolsonaro que vai e volta de acordo com seus interesses, combinando acenos ao centro e às mulheres com discursos descontrolados para sua base mais tresloucada.

Essa institucionalização tenta, ao menos até o momento, acomodar as forças reacionárias dentro de um regime já bastante degradado. Isso porque o golpe institucional, ou seja, o movimento das instituições do regime que utilizaram do impeachment para derrubar uma presidente eleita pelo sufrágio universal, lançou mão de inúmeros autoritarismos de toda cor e tipo. É por isso que aquelas forças políticas autoritárias, como o poder judiciário, que tinha ambição de ser uma espécie de “partido político”, seguem atuando livremente como árbitros na política nacional. Do papel vexatório de subordinação a tweets de militares endossando a prisão arbitrária de Lula até sua reabilitação para que pudesse ser o candidato apoiado pelo capital financeiro e pela ala dirigente do imperialismo norte-americano, o judiciário com seus ministros eleitos por ninguém e salários de marajás também arbitram sobre os direitos da classe trabalhadora e das mulheres.

O resultado desse processo que ainda está em curso e é mais um capítulo dos embates entre a degradação mais integral do regime político e o que restava do pacto social do regime de 1988, naquele momento já acordado com os militares, é também uma institucionalização da religião como pauta política, ou seja, um retrocesso em toda linha no que diz respeito à necessária separação entre Igreja e Estado como assuntos separados. Se analisamos o surgimento do bolsonarismo nos últimos anos, é evidente que, para além do bafo podre dos porões da ditadura, das consequências da crise internacional e da reação “anti-corrupção” diante dos governos do PT, um dos pilares da extrema-direita era também uma reação ao movimento de mulheres que avançou internacionalmente na última década. Aqui está também a “chave” de por que Bolsonaro consegue captar um sentimento anti-sistêmico.

A explicação está no fato de que o movimento de mulheres esteve ao longo dos últimos anos sob a encruzilhada de ou renovar a luta por seus direitos neste século XXI buscando uma perspectiva disruptiva com a sociedade atual, ou aceitar, em partes, a “boa vontade” de empresas e do Estado burguês em serem cada vez mais “feministas”. Do que estamos falando? Sim, das empresas que fazem propagandas “em defesa das mulheres”, da Rede Globo que agora se diz "politicamente correta" e demite seus galãs machistas acusados de assédio, de um Estado que vai assumindo e incorporando algumas medidas em relação ao tema da violência de gênero, como foi a Lei Maria da Penha. Ou seja, o neoliberalismo, depois de atacar as massas profundamente e fragmentar a classe operária, viu-se na necessidade de se apresentar como “alternativa” para os movimentos sociais das mal chamadas “minorias”, ou seja, negros, mulheres e LGBTQIAP+, conferindo-lhes algumas concessões que eram fruto da própria luta destes movimentos. Eram, portanto, expressão distorcida da força dessas pautas, mas que tinham como objetivo cooptar essas lutas, tornando-as inofensivas e criando um novo “senso comum” igualitário, como um novo padrão de “comportamento” aceitável no século XXI.

Esse novo “padrão de comportamento” passou a atuar nas grandes empresas com a busca de mulheres em cargos de gerência sob o argumento de quebrar o “teto de cristal”, nas propagandas de TV, nos programas, nas novelas. Tratava-se de ir disseminando pelo próprio “sistema” novos valores de acordo com os novos tempos, contendo dessa forma a disseminação de uma luta anti-sistêmica pela esquerda que buscasse aliar a luta pelos direitos das mulheres, negros e LGBTQIAP+ com a luta anti-capitalista. Justamente é essa ruptura entre a luta por direitos e a luta anticapitalista que a cooptação deste “Estado integral”, recorrendo a Antonio Gramsci, busca garantir e preservar, portanto, também a hegemonia de classe, isto é, transmitir a ideia de que a própria classe dominante, a classe capitalista, com seus meios de comunicação e meios de produção, podem “responder aos anseios dos setores oprimidos” apagando a ideia de que seria a classe trabalhadora a que teria a capacidade de conduzir essa luta.

O bolsonarismo, se lido também como uma reação a esse processo, consegue instaurar ares anti-sistêmicos pela direita em seu discurso, justamente porque vai atacar as instituições que buscam aparentar um discurso “feminista”. Fazem isso reforçando os valores da “família tradicional brasileira” e buscando associar o PT a toda a onda feminista do período anterior. O medo de que a suposta “ideologia de gênero” iria transformar todas as crianças em transsexuais destruindo a família e transformando a sociedade em uma grande depravação era um pouco a “tônica” do desespero do profundo reacionarismo conservador desses setores, que viram em Bolsonaro uma voz radical para enfrentar essa suposta destruição dos valores cristãos. O delírio coletivo chegou ao ponto da fatídica “mamadeira de piroca”. Bom, estamos falando de setores que consideram que a terra é plana, então, não há do que se espantar. Não é simples “desenrolar” esse nó, mas certamente o caminho não deveria ser ceder a ele, até porque, das grandes lições da tentativa de “administrar o capitalismo” feita pelo PT, uma delas deveria ser exatamente refletir porque a extrema direita ganhou tamanho peso no Brasil.

Um caminho para essa reflexão está propriamente no tema do aborto. Não é a primeira vez que o direito ao aborto atravessa o centro da disputa eleitoral. Ele aparece quase como um “ponto de acordo” entre as forças progressistas e reacionárias: desta linha não podemos passar. Funciona como uma garantia, uma concessão, um ponto de trégua. Que Bolsonaro e sua corja de Damares Alves, Michele Bolsonaro, Paulo Guedes e companhia são contra o direito ao aborto e querem fazer retroceder inclusive os três casos que são permitidos por lei, todos já sabemos. Os 4 anos de governo Bolsonaro foram uma campanha permanente contra o direito ao aborto. Mas é preciso dizer com todas as letras: os governos do PT, que em seu programa tem a pauta de “descriminalização do aborto”, em 13 anos nunca legalizaram esse direito. Ao contrário, naquele momento vimos justamente Dilma Rousseff lançar uma “Carta ao Povo de Deus” garantindo que o direito ao aborto não seria legalizado em seu governo: (...) “Eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão de qualquer religião no País”. Esta carta buscava um acordo com a bancada evangélica, essa cúpula reacionária que lucra com a fé da população. O argumento de Dilma Rousseff naquele momento era de que se tratava de buscar “governabilidade”. Que bela "governabilidade" conseguiu, sendo apenas alguns anos depois derrubada do governo por forças reacionárias que incluíam justamente a… Bancada evangélica! Na verdade, sempre soubemos que governabilidade sempre foi a retórica para justificar acordos com os setores mais espúrios do regime político. Vale dizer que do argumento da governabilidade se seguiu o veto ao kit anti-homofobia nas escolas em 2011 e a nomeação do Pastor Marco Feliciano (PL) para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias próxima ao 8 de março de 2013, hoje cabeça da campanha de Bolsonaro. Além disos, no ano seguinte, tomávamos as ruas contra o Estatuto do Nascituro, apresentado já em 2007 por um ex-deputado federal que era do PT, o mesmo que depois encabeçou uma CPI para investigar e perseguir quem fazia aborto clandestino no Brasil.

Mas o argumento das feministas do PT era um pouco mais rebuscado, por suas razões próprias. Diziam que se tratava de um “recuo tático”. Não fazia sentido essa definição naquele momento, porque já haviam ocorrido dois mandatos do PT e o aborto não tinha sido legalizado. Então, tratava-se da continuidade de uma mesma política de não legalização do aborto, entretanto com um “plus”, que era uma carta de compromisso aos evangélicos para deixar ainda mais claro o que já estava claro: que o PT não ia legalizar o aborto. Enquanto Dilma e o PT consideravam que assim poderiam “governar”, estavam na realidade fortalecendo as forças reacionárias do golpe institucional. O mesmo ocorreu com as Forças Armadas, o agronegócio e o poder judiciário. As supostas “concessões” pela governabilidade não são medidas para ir “avançando paulatinamente” um governo “progressista”. São na realidade a tradução do que significa “administrar o capitalismo”: significa que não existe conciliação entre trabalho e capital, portanto, nenhum direito será eterno e será sempre entregue. E isso não leva a outra caminho: fortalece as forças de direita e de extrema direita.

Portanto, aceitar a imposição da bancada evangélica contra o direito ao aborto é uma das expressões de como a política de entregar direitos somente fortalece as forças reacionárias. Sendo assim, o argumento de que se trataria de um recuo tático era para encobrir o que de fato se passava. Muitas das feministas petistas naquele momento sabiam muito bem do que se tratava e também eram parte das direções burocráticas do movimento de mulheres que buscavam impedir que qualquer luta séria pelo direito ao aborto pudesse se desenvolver. Hoje estamos diante de uma campanha eleitoral de uma frente ampla contra Bolsonaro que não somente volta a reafirmar que é contra o direito ao aborto mas se apoia nos próprios anos de governo do PT que não legalizaram o aborto. Ou seja, o que foi chamado de “recuo tático” por feministas petistas naquele momento hoje é reivindicado pela chapa Lula-Alckmin como um “grande exemplo” do que Lula fará: não legalizar o aborto.

Essa determinação frontal contra o direito ao aborto já está na tônica da campanha há algum tempo, agora com propagandas eleitorais nas quais Lula diz que foi casado três vezes e todas as suas esposas eram contra o aborto, assim como ele diz que o aborto seria algo muito triste e que, portanto, defende a vida. Mas também com a campanha entrando com tudo em uma competição para ver quais das duas chapas seria a mais “cristã”. Bolsonaro, que transforma cada pronunciamento político em um culto religioso, está a frente nessa disputa, agora com Michele Bolsonaro atuando praticamente como uma pastora. Mas a campanha de Lula-Alckmin agora busca atacar Bolsonaro por ele ter em algum momento dito que havia cogitado abortar um de seus filhos. Essa inversão no discurso político utilizando das pautas democráticas para reafirmar sua contrariedade a elas é um salto de qualidade em relação ao discurso do “recuo tático” e da governabilidade em meio a uma eleição muito mais reacionária do que a de 2014, por exemplo. Agora temos um regime muito mais degradado e o bolsonarismo como força social. É possível inclusive ver nas redes sociais a campanha do PT sendo dominada por agentes “em defesa da vida” que buscam “lutar de igual pra igual” contra Bolsonaro. Desde a energia caótica de André Janones defendendo sua própria homofobia com fake news “do bem” até a duvidosa figura de Patrícia Lellis. Tudo isso é abençoado por Geraldo Alckmin: “O que o mundo precisa são de valores, essenciais para a nossa vida. No meu caso, valores cristãos”. Enquanto isso, milhares de mulheres e pessoas com úteros seguem realizando abortos clandestinos no país, homens trans e pessoas não binárias sofrem recusas em clínicas clandestinas e no caso das mulheres negras, pobres e trabalhadoras a consequência é muitas vezes a morte, mutilações e traumas psicológicos para o resto das suas vidas.

Por tudo isso, ao contrário de "recuo tático", naquele momento se tratava de entregar o direito das mulheres para a bancada evangélica, que avançou tremendamente. Formam a Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados, criada em 1990 pela Igreja Universal do Reino de Deus, hoje com 194 membros num universo de 513 deputados, um bloco heterogêneo em seus interesses particulares, mas responsável por atacar permanentemente os direitos das mulheres e da população LGBTQIAP+ e envolvida em inúmeros casos de corrupção. Qual foi o resultado disso? Fortalecimento dos pastores, da interferência das cúpulas da Igreja no Estado, golpe institucional e agora uma eleição ainda mais polarizada, na qual, ao contrário de termos “avançado com nossos direitos”, estamos vendo a chapa considerada progressista mais uma vez atacando o direito ao aborto. Já vemos parte importante da esquerda e de referências do movimento feminista afirmando que “não é hora de falar sobre o aborto”. Há astúcia inclusive de tentar fazer parecer que os que não querem falar sobre aborto agora é porque estão “mais preocupados com as mulheres”, já que primeiro tem que tirar o Bolsonaro e depois vemos “as nossas pautas”. Nada disso. O efeito que esse discurso reacionário contra o aborto terá sobre a luta das mulheres e também da classe trabalhadora será nefasto, porque a história já demonstrou. Esse é o novo “recuo tático”, é o argumento utilizado para fazer algum sentido ser parte de uma campanha que assume um discurso reacionário em uma questão tão vital para as mulheres e todos aqueles com capacidade de gestar. Essa política permitiu que o bolsonarismo paute a campanha eleitoral com seus “valores” de ultradireita, o que é um componente reacionário da situação, favorecido conscientemente pelo PT. A depender dessa lógica, vamos parar em um Estado cada vez mais com características teocráticas. Podemos dizer que, no atual estado desse debate e especificamente neste tema, Bolsonaro “já ganhou”, e com a ajuda da chapa Lula-Alckmin. Assim como o recuo tático não era um recuo tático, tampouco chegará a hora de falar sobre o aborto.

Abrir mão dessa bandeira de luta das mulheres é sepultar o caminho para a legalização do aborto. Com o conteúdo apresentado pela campanha no momento, é colaborar com a submissão dos nossos corpos aos mandos da Igreja e do Estado, para impedir o direito de decidir, garantindo o controle estatal dos nossos corpos. Ao contrário, para enfrentar os fundamentalistas de plantão e toda a reação ao movimento de mulheres, é preciso levantar bem alto nossas bandeiras, conectando-as com as demandas mais sentidas da nossa classe, como a revogação integral de todas as reformas, também negada pela chapa Lula-Alckmin. Mas, para isso, não confiando nos caminhos institucionais e eleitorais. As medidas por cima que buscam tolher a saída coletiva de luta organizada da classe trabalhadora por “concessões provisórias” que seriam para “poder governar” são para apagar qualquer caminho de mobilização - e para isso contam com as direções burocráticas que impedem e dividem qualquer processo de resistência por baixo, canalizando a insatisfação social e o ódio contra Bolsonaro por dentro das instituições do regime, e não nos métodos da classe operária com as mulheres a frente como deveria ser com greves e manifestações. Sobre este tema, elaboramos aqui. As últimas experiências internacionais mostram que é somente a luta organizada que pode avançar em nossas demandas, sempre aliando a luta das mulheres com a luta da classe trabalhadora. Na Argentina, a força da Maré Verde impôs essa conquista, ainda que por suas direções o movimento se manteve submisso à institucionalização de suas pautas aceitando que um governo dito progressista no tema do aborto avançasse em ataques ao conjunto da classe trabalhadora. Nos Estados Unidos, depois das enormes manifestações de mulheres contra Trump e já em um governo do Partido Democrata com Joe Biden, o direito ao aborto sofreu um ataque histórico nesse país.

Por tudo isso, no Brasil, em um momento de enorme polarização social e ódio à extrema-direita, estamos lado a lado com todos os trabalhadores e mulheres que querem com seu voto rechaçar Bolsonaro, seja com voto em Lula-Alckmin, nulo ou abstenção. Mas não apoiamos politicamente essa chapa por sua ligação integral com importantes alas da burguesia nacional e do imperialismo e porque a história já demonstrou que a entrega paulatina de nossos direitos, como o direito ao aborto, é matéria para fortalecer as forças de extrema direita. Por isso, uma esquerda de independência de classe para enfrentar a extrema direita busca a construção de uma força social sem empresários e patrões com um programa para que sejam eles que paguem pela crise, e não nós. Basta de mulheres, homens trans e não bináries mortas por abortos clandestinos! Pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito! Unir a luta das mulheres com a luta da classe trabalhadora, por um feminismo socialista!


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED
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