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A cilada do antirracismo empresarial e a luta por um feminismo socialista para as mulheres negras

Iaci Maria

Imagem: Juan Chirioca | @macacodosul

A cilada do antirracismo empresarial e a luta por um feminismo socialista para as mulheres negras

Iaci Maria

Dia 25 de julho é o Dia internacional da mulher negra latino-americana e caribenha e, a cada ano que passa, mais empresas aderem a esta data e arrumam alguma maneira de fazer publicidade e gerar lucros em cima da luta dessas mulheres. O mesmo ocorre durante novembro, com o mês da consciência negra, e em março, com o mês das mulheres. Mas se setores oprimidos cada vez mais ganham espaço em campanhas contra a opressão e a mídia avança nas suas representatividades e na conscientização anti-machista e antirracista, por que isso não significa o avanço da resolução das demandas das mulheres negras?

O antirracismo das empresas não pode responder às diversas violências às quais as mulheres negras estão sujeitas. É preciso outro feminismo, um feminismo socialista, uma ferramenta de luta capaz de responder às demandas das mulheres negras e trabalhadoras e dar saídas reais e concretas contra a exploração e toda forma de opressão vivida pela classe trabalhadora.

As vidas negras importam na campanha, mas a realidade é diferente

Com a explosão das manifestações pelo Black Lives Matter (BLM) em 2020 nos Estados Unidos, que ganharam força e expressão por todo mundo, a classe dominante se viu na necessidade de surfar neste fenômeno, assim como buscar meios de apaziguá-lo enquanto força revolucionária. Sob o discurso responsável que reconhece a existência violenta do racismo enraizado na sociedade, diversas empresas se levantaram contra o racismo estrutural, colocando-se como aliados na luta contra a opressão racial. Desde quadrados pretos no instagram – campanha esta que foi encampada por grande empresas, como a Nike, e na prática serviu para fazer sumir das timelines as imagens das manifestações de rua, as quais em muitos lugares sofriam com a repressão – a programas de incentivo a contratação de mulheres negras para cargos de gerência, os capitalistas viram na luta contra o racismo um importante nicho de mercado e uma oportunidade de renovação e ampliação de público, ou seja, de mais lucro.

Esse avanço da consciência antirracista que ganha as ruas do mundo com o BLM é usado pela burguesia para, de um lado, aumentar seus lucros através do Black money, ganhando novos “consumidores conscientes” que não pactuam com empresas racistas. Por outro, também cumpre um importante papel de desviar a luta que toma as ruas e ganha setores da classe trabalhadora, com um discurso de que é possível construir um capitalismo negro, antirracista, consciente. Mas a prática é que as posições de trabalho mais precárias seguem sendo ocupadas por uma enorme maioria de mulheres negras, que possuem salários baixíssimos e, diversas vezes, nenhum direito trabalhista.

Assim, empresas como a Avon, Uber, Magazine Luiza, entre tantas outras, fortalecem seus discursos antirracistas e ampliam seus produtos para esses consumidores tão exigentes enquanto seguem explorando a mão de obra negra com trabalho precarizado. Ao mesmo tempo em que a Avon, por exemplo, pode lançar toda uma nova linha de bases que atendam a todas tonalidades de pele, respeitando inclusive a diversidade de peles negras existentes e colocando em suas propagandas e capas mulheres negras, gordas, com vitiligo, trans, ou seja, todo espectro que passa por fora do conhecido padrão de beleza, vemos notícias escandalosas de trabalho escravo na casa de uma importante empresária da marca. O racismo enraizado na mente empresarial defensora do capitalismo e, portanto, da exploração, não muda se isso não trouxer mais lucro.

A realidade prática é que enquanto desviam nossa luta para um “consumismo consciente”, as mulheres negras continuam recebendo menores salários, ocupando os cargos mais precários e insalubres, e sendo assassinadas ou assistindo seus filhos, maridos e familiares serem assassinados pelas balas da polícia. Vendem a diversidade exaltando um cabelo black power ou com dreads na televisão e nas propagandas, mas a realidade cultural ainda é a da pressão pelo alisamento e do assédio moral nos empregos que não contratam ou ameaçam demitir jovens negros que levantam seus cabelos crespos orgulhosamente. Uma roupa com estampas africanas ou frases de impacto antirracista vendidas em lojas que exploram mão de obra negra não impede os corpos negros que as vestem de encontrar as balas perdidas disparadas pelas armas da polícia. Assim como o simples fato de mais mulheres negras ocuparem cargos de prestígio ou espaços de visibilidade, como a bancada de um importante jornal ou o protagonismo em uma novela, não muda a realidade de que as mulheres negras são maioria na estatística das mortes por abortos clandestinos.

Mas então, como as mulheres negras podem se organizar para colocar fim a toda exploração e opressão racista e patriarcal?

O racismo nasceu com o capitalismo, que morra com ele também

O racismo nasce a partir das necessidades do capitalismo. A escravidão não é nenhuma invenção capitalista, mas a escravidão e exploração baseada unicamente na cor da pele, esta sim nasceu com o capitalismo. Em um momento de expansão do capitalismo e consolidação de sua fase imperialista, foi necessário criar ideologias que sustentassem o novo nicho de exploração da força de trabalho: a mão de obra escrava negra. Sob um discurso ideológico de inferioridade biológica, criado apenas para sustentar a proposta de sequestrar seres humanos de suas terras e explorá-los em outra, nasce a escravidão negra, muito utilizada no desenvolvimento capitalista brasileiro.

Essa mão de obra escravizada foi fundamental para o avanço da acumulação de capital dos países colonizadores, como Portugal e Espanha, que utilizaram a força de trabalho escrava com base na etnia. No Brasil, isso se deu através do sequestro de africanos para serem vendidos na América, e durou mais de 300 anos. Assim nasce o racismo, com suas bases bastante materiais que implicam na superexploração das negras e negros, mas apoiando-se em uma ideologia racista que vai se consolidando e enraizando nas ideias da sociedade, até hoje ser estrutural. Esse racismo estrutural é o que explica todas as formas de oprimir segundo a cor da pele: desde a censura aos cabelos crespos e a falta de representatividade na televisão, até os salários mais baixos e as humilhações e violência policial.

Com a luta antirracista ganhando espaço, diversas expressões racistas naturalizadas na sociedade passam a ser questionadas, sendo um questionamento que ganha força cada vez que avançam processos como o BLM. Vai se construindo uma espécie de reeducação antirracista e anti-patriarcal, que se expressa na desconstrução de ideias consolidadas e no empoderamento das mulheres negras, que se fortalecem umas nas outras para exigir a quebra de paradigmas antes inquestionáveis.

Por que não temos protagonistas negras na televisão? Por que não há mulheres negras ocupando espaços de poder? Por que as mulheres negras não possuem “local de fala” e são os homens brancos, majoritariamente, que decidem sobre as vidas dessas mulheres? Por que o feminismo branco não contempla as negras, e a luta antirracista não contempla as mulheres? Todos esses questionamentos importantíssimos são fundamentais para levantar a reflexão das origens da opressão e, consequentemente, o caminho para superá-la, mas são insuficientes se buscam apenas saídas individuais e pontuais que respondam exclusivamente a cada questão levantada. Não pode nos satisfazer sermos apenas uma ocupando um espaço majoritariamente branco, é preciso sonhar com todas mulheres negras ocupando todos os espaços que desejarem estar.

Um feminismo negro que se proponha a responder essas questões, dar saídas que superem esses atrasos, mas não busca a raiz do problema para resolver de fato a opressão, não pode responder com a profundidade necessária a luta contra as opressões. É possível sim desconstruir ideias e ter avanços importantes, como ter uma âncora negra em um jornal importante; um Big Brother Brasil que começa com 50% de pessoas negras e faz a Globo se posicionar contra o racismo estrutural ao vivo e em horário nobre, com pico de audiência; uma apresentadora como Fátima Bernardes falando sobre sua desconstrução antirracista individual; ou mesmo as desconstruções diárias e individuais de cada um que se dá a importante tarefa de refletir sobre seu racismo e se desfazer de vícios racistas que expressava nas suas relações. A grande questão a ser colocada é por que as mulheres negras chegam a receber 60% do salário de um homem branco, ocupam os postos de trabalho mais precários e insalubres? E, principalmente, o capitalismo está disposto a “desconstruir” o racismo que o sustenta enquanto sistema de exploração e abrir mão desta ferramenta de obtenção de lucros? Ou seja, o capitalismo está disposto a parar de explorar?

A resposta é não. O capitalismo não vai “desconstruir” essa opressão tão fundamental que é a exploração da classe trabalhadora, pois essa é a essência desse sistema político, econômico e social. Pelo contrário, a busca dos empresários, da burguesia e de toda a mídia ao seu favor é o de pintar de colorido a exploração preta e branca para que a luta contra as opressões não avance para o questionamento mais profundo da exploração, que pode levar os trabalhadores a entenderem que são oprimidos para serem mais explorados e, portanto, é preciso acabar com a exploração capitalista. Então, embora tenham sua importância, não bastam as conquistas pontuais, os avanços individuais, se na realidade prática as mulheres negras seguem sendo superexploradas, assassinadas pela polícia que também tira a vida de seus filhos e familiares.

Outro discurso bastante utilizado é o do empreendedorismo. Esse é o discurso da Uber, Ifood, Rappi, entre outros aplicativos por demanda, que remonta aos primórdios desta ideia, de ser seu próprio patrão e organizar sua própria jornada, que já existia nas revendedoras da Avon e Natura décadas atrás. Hoje esta ideia ganha ainda mais força sustentada nos altos índices de desemprego, que aumentou durante a pandemia da covid-19.

As mídias também surfam nesse novo nicho, fortalecendo o discurso de que todos podem ser grandes empresários começando do zero. Um exemplo disso é a campanha do VAE (“Vamos ativar o empreendedorismo”), financiada pela Globo, que busca dialogar principalmente com a população que perdeu o emprego na pandemia e precisou usar a criatividade para ter uma fonte de renda. Essa campanha quer exaltar e incentivar o “espírito empreendedor” daquelas pessoas que estão lutando contra a insegurança alimentar, que já atinge mais de 50% da população, e por isso criam novas maneiras de fazer renda. O exemplo utilizado na propaganda é o das mulheres que entraram no “mercado” da confecção de máscaras de pano utilizadas como proteção sanitária na pandemia – um exemplo que chama a atenção, pois todo trabalhador conhece ao menos uma mulher que acabou se dedicando a isso no início da pandemia. A propagando do VAE insinua que uma mulher pode empreender até virar a própria Luiza Trajano, fundadora do Magazine Luiza, mas a realidade que vimos é que essas mulheres conseguiram, no máximo, trabalhar exaustivamente para colocar comida na mesa. A riqueza de Luiza Trajano, por trás de seus programas de trainee e vagas exclusivas para pessoas negras, é de um batalhão de mulheres negras sendo superexploradas em suas lojas físicas e virtuais.

Por um feminismo socialista para responder às demandas das mulheres negras

Se antes o discurso dominante era de que não existia racismo no Brasil, hoje surgem nessas empresas o discurso consciente, que reconhece o racismo e se colocam no espectro do antirracismo, assim como a mídia busca se colocar como “desconstruída”, dando “local de fala” para pessoas negras e colocando mulheres em papéis de protagonismo. O que esses capitalista buscam é criar a ilusão de que a luta antirracista avança a passos largos e, portanto, o caminho empreendedor e do capitalismo negro que trilham é a saída. Apoiam-se em teóricos que sustentam isso, como Djamila Ribeiro com seu Pequeno manual antirracista, obra queridinha da Globo, que defende uma perspectiva pró-capitalista de que se as negras e negros ocuparem mais espaços nas empresas, com estas abraçando a diversidade, isso gerará mais produtividade dos trabalhadores, o que implica em mais lucro para o empresário.

Mas o que vemos no mundo e no Brasil de Bolsonaro e Mourão, é que a violência racista segue aumentando. O assassinato de Marielle Franco, do mestre Moa, os 80 tiros do Exército no carro de um trabalhador, a chacina no Jacarezinho, o massacre em Paraisópolis, a cruel morte de Miguel, o sumiço dos 3 meninos de Belford Roxo, o assassinato de Kathleen grávida. São apenas alguns exemplos que mostram como o racismo ainda é estrutural e ainda atinge profundamente a população negra, independente da ofensiva antirracista das empresas ou da representatividade na mídia. As mulheres negras ainda são a maioria nos postos de trabalho terceirizados, ligados à limpeza, assim como a maioria nas favelas e periferias.

Se o racismo nasce com o capitalismo e é base de sustentação deste sistema, somente uma luta que se proponha a combater o racismo e o patriarcado lutando pela destruição do capitalismo pode realmente responder às demandas das mulheres negras. Não podemos acreditar nos discursos que dizem que a saída é uma desconstrução individual e que, individualmente, cada empresa está cumprindo seu papel na diversificação do quadro de funcionários e isso é o que acabará com o racismo. Somente o feminismo socialista questiona as raízes do racismo e busca subvertar a lógica da sociedade, pois se o capitalismo utiliza da opressão para explorar mais, é preciso lutar não apenas contra toda forma de opressão em cada manifestação sua, mas centralmente contra a exploração capitalista que mantém as negras e negros na periferia da sociedade.

Assim como a questão não é individual, sua saída também não pode ser. É preciso a organização da classe trabalhadora, usando suas formas clássicas de luta, para exigir cada demanda necessária das negras e negros e para derrubar esse sistema de exploração. Não basta uma mulher negra em um cargo importante e morando em mansão enquanto a ampla maioria está na insegurança alimentar. Por isso nosso feminismo socialista, que tem como objetivo a derrubada do capitalismo e a construção de uma nova sociedade livre da exploração e das opressões, parte de organizar as mulheres e os homens, brancos e negros, para lutar pela efetivação de todas trabalhadoras terceirizadas (sem necessidade de concurso nos locais públicos), para acabar com a superexploração que atinge principalmente as mulheres nos serviços de limpeza; pela equiparação salarial entre homens e mulheres, brancos e negros; por uma reforma urbana radical que garanta moradia de qualidade para todas famílias que necessitam; pela legalização do aborto e o direito à maternidade plena, com educação sexual nas escolas, distribuição de contraceptivos gratuitos e de qualidade e a garantia de acompanhamento pré-natal, licença-maternidade e creches para todas mulheres que desejem ser mães.

É preciso saber também quem são os verdadeiros aliados nesta luta, que já mostramos que não são as empresas e menos ainda o governo de extrema direita de Bolsonaro. Mas tampouco está efetivamente do nosso lado a esquerda tradicional, como o PT, que ao longo de 13 anos no governo não legalizou o aborto, nem garantiu reforma urbana e agrária, demarcação de terra indígenas e quilombolas e, indo além do racismo institucional, foi o governo que implementou as UPPs no Rio de Janeiro e enviou as tropas para o Haiti, que massacraram e estupraram mulheres negras, em uma espécie de treino de como agir nas comunidades cariocas. É também o PT, junto ao PCdoB, quem dirige as maiores centrais sindicais (CUT e CTB, respectivamente), sendo responsáveis pela falta de ação organizada da classe trabalhadora não apenas no combate contra o governo Bolsonaro e seus ataques, mas também na luta contra o racismo estrutural que divide os trabalhadores em diversas categorias – como brancos e negros, homens e mulheres, efetivos e terceirizados – dificultando a unidade na luta contra os ataques, as reformas, a exploração e todas as formas de opressão.

Neste Dia internacional das mulheres negras latino-americanas e caribenhas remarcamos que nossa luta também é internacional. A classe operária é uma só e é preciso observar, analisar e tirar as lições de cada processo de luta pelo mundo, e a grande verdade é que as mulheres negras estão e sempre estiveram na linha de frente dos processo de mobilização. A América Latina é um grande caldeirão da luta de classes, sempre fervendo e pronto para transbordar. É ao lado dessas mulheres trabalhadoras latinas que está nossa luta e nossa força, e não ao lado de empresas que seguem explorando nossa classe, mas agora com consciência antirracista. Nosso feminismo socialista é também pela construção de um partido internacional revolucionário, que organize mulheres e homens, negros e brancos, héteros e LGBTQIA+, juntos na luta pela derrubada desse sistema e pela construção de um novo mundo sem opressão e exploração.

Karl Marx afirma em sua mais importante obra, O Capital, que “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”. Enquanto uma mulher negra seguir sendo oprimida e explorada, nem os homens, nem os brancos, e nem a classe trabalhadora como um todo – majoritariamente feminina e negra – poderá se emancipar das amarras da burguesia.


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