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Análise | A entrevista de Bolsonaro no JN e a tentativa de um pacto de transição

De tudo o que se pode verificar da entrevista de William Bonner e Renata Vasconcellos a Bolsonaro, o que transparece é a continuidade do enquadramento realizado pelo regime para que Bolsonaro se adeque a uma transição pacífica que preserve seus ataques econômicos, de um lado, e a resistência de Bolsonaro a entregar os pontos, deixando suspensa no ar sua conduta diante de uma derrota

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

terça-feira 23 de agosto de 2022 | Edição do dia

De tudo o que se pode verificar da entrevista de William Bonner e Renata Vasconcellos a Bolsonaro, o que transparece é a continuidade do enquadramento realizado pelo regime para que Bolsonaro se adeque a uma transição pacífica que preserve seus ataques econômicos, de um lado, e a resistência de Bolsonaro a entregar os pontos, deixando suspensa no ar sua conduta diante de uma derrota.

Bolsonaro começou aterrado e sem muita habilidade para contestar as agressivas perguntas sobre suas ameaças às eleições e seu comprometimento aos resultados eleitorais. Com o decorrer da entrevista, foi se estabilizando ao falar para o próprio público, e responder perguntas para as quais estava já calejado, aprovietando o aspecto comum que compartilha com os diversos atores do regime, como a grande imprensa: não tocar no desastre econômico que, através das reformas ultraliberais, deixaram o país na miséria, na fome e no desemprego. Começando pelo "emparedamento público" e mesmo certo escárnio de Bolsonaro, Bonner e Vasconcellos também passaram à moderação e deixaram o contrincante falar abertamente sobre os temas que preferia.

A maioria dos analistas fala em "empate de 0 a 0", numa discussão que tem benefícios para quem está liderando (no caso, a chapa Lula-Alckmin, adotada pela grande imprensa contra Bolsonaro), mas que não confere novos golpes a um Bolsonaro que vem buscando se recuperar e que, se não ganha terreno, não enfraquece a base que possui.

O discurso político da Globo foi a continuidade do 11 de agosto, operação para relegitimar como "defensoras da democracia" todas as instituições autoritárias, o capital industrial e financeiro, que concordam no econômico com Bolsonaro discordando de seu modo de governo; e com o 16 de agosto, posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Com a entrevista da Globo, mostram a busca por uma pactuação, em vistas às eleições, na perspectiva de uma transição o mais pacífica possível, ainda que como variante hipotética não esteja descartado que Bolsonaro possa voltar a elevar o tom, principalmente se fica mais claro que vai perder eleitoralmente.

O 11A e o 16A, com a leitura das cartas em defesa da democracia com a Fiesp e a Febraban (que explicamos aqui) e o dia da posse de Moraes que reuniu as grandes figuras do regime burguês para defender os procedimentos eleitorais contra as ameaças bolsonaristas, tiveram esse caráter de disciplinamento prévio. A entrevista da Globo buscava ganhar terreno nesse sucessivo disciplinamento de Bolsonaro, a fim de "normalizar" as condições do 7 de setembro bolsonarista e deixá-lo por dentro do aceitável pelo regime.

A entrevista buscou três objetivos. Um primeiro e principal é seguir disciplinando Bolsonaro ao acatamento dos procedimentos eleitorais. Diante da recuperação parcial de Bolsonaro nas pesquisas, especialmente em setores evangélicos (passou de 43% para 49% de apoio no segmento), a Globo quis reunir algumas imagens do nefasto legado do governo, sem deixar de preservá-lo em temas centrais - como os ajustes econômicos ultraliberais contra os trabalhadores - com os quais concorda com o governo. O segundo objetivo foi impedir que Bolsonaro ganhasse terreno em novos votantes.

Para isso, Bonner e Vasconcellos trouxeram à tona as abjetas demonstrações de desprezo pela catástrofe da pandemia e as centenas de milhares de mortes ridicularizadas pelo presidente da extrema direita. Bolsonaro defendeu criminosamente toda sua gestão, que "organizou" um desastre sanitário junto com o sistema privatizado de saúde. Também, o tema do desmatamento e a destruição do meio ambiente, em que Bolsonaro defendeu Ricardo Salles e as madeireiras contra os "abusos da fiscalização". A subordinação ao Centrão ficou manifesta, com um governo mergulhado em casos de corrupção em todas as suas esferas, e entregue ao velho fisiologismo herdado do Regime de 88.

Muitos temas ficaram de fora, entretanto. O caráter "morno" da entrevista, segundo Igor Gielow da Folha, se refere especialmente aos temas que a própria grande imprensa concorda com Bolsonaro. Na economia, a situação de miséria, fome e inflação no país simplesmente desapareceu. Os ajustes econômicos ultraliberais do governo, como a reforma trabalhista e da previdência que empobrecem a população e aumentam o desemprego, não foram citados. Para a Globo, nada que ameace a agenda econoômica herdada de Temer e Bolsonaro-Guedes vale a pena ser citado.

Os militares também foram poupados pela Globo. Privilegiados, ganhando regalias salariais de R$100 mil mensais num país que passa fome, povoando os ministérios do Planalto, os reacionários representantes do bolsonarismo nas Forças Armadas sequer figuraram nas perguntas. A farsa da "ala democrática" do Exército é uma das constantes da grande imprensa, e sua preservação como ator no regime político, ainda que se queira separá-lo de Bolsonaro, não é algo que incomoda o establishment.

A preocupação central era domesticar o reacionário 7S de Bolsonaro. A insistência de Bonner em perguntar se Bolsonaro respeitaria o resultado eleitoral colocava Bolsonaro na disjuntiva de desmoralizar, ou preservar a moral, de sua convocatória. Evitar o suicídio político, portanto, exigia que Bolsonaro condicionasse seu respeito aos resultados, "eleições limpas" (ou seja, que vença). Bolsonaro teve de fazer política se acomodando à nova atmosfera de disciplinamento, que vai seguir nos próximos dias, como mostra a operação da Polícia Federal contra empresários bolsonaristas que defenderam golpe em caso de vitória de Lula, operação autorizada por Alexandre de Moraes. De todo modo, ao manter cnodicionada sua aceitação, Bolsonaro não desarma o 7S, e confere a si mesmo as condições morais para convocar a jornada, que desejaria que fosse a maior possível dentro do cerco estabelecido pelo regime.

Falávamos na ideia do empate, ao início. Desse ponto de vista, o empate para Bolsonaro não é bom jogo. Está atrás nas pesquisas, e goza de uma rejeição de mais de 50%, o que o inviabilizaria num 2º turno. Especialmente levando em conta que perdeu uma parte significativa do eleitorado de 2018: tem consigo 62% dos que o apoiaram na época, mas 21% dos seus votantes em 2018 dizem não votar de novo "de modo algum", e 19% passaram para Lula, segundo o Datafolha. Reconquistar parte dessa fatia é fundamental para que a disputa penda mais ao lado de Bolsonaro. A entrevista não o ajuda nisso. O que a campanha do governo celebra é não ter se saído pior diante da agressividade retórica da Globo.

Por outro lado, Bolsonaro também não perdeu votos. Seus seguidores saíram convencidos de que Bolsonaro manteve a linha de questionamento dos procedimentos eleitorais, de crítica ao STF, e com frases de efeito quando confrontado pelos apresentadoresda Globo. Foi o suficiente para atiçar as redes sociais e manter o grupo de apoio mais leal ao seu lado.

Como dissemos, para quem está atrás do "agregado geral", um empate não é favorável. Mas preserva forças morais para seguir jogando, e o próximo 7S será um balizador importante de quão disciplinado foi pelas forças do regime.

Não será a Globo, o STF, muito menos a Fiesp e a Febraban que irão debilitar Bolsonaro. Compartilham certos interesses inamomíveis dentro de suas discordâncias: que os trabalhadores paguem pela crise econômica. Que as reformas continuem, e com o apoio de Lula e do PT, que escalaram Alckmin como "superministro de campanha" para convencer o grande capital de que a reforma trabalhista de Temer seguirá de pé. Nenhum desses atores, nem a chapa de conciliação com a direita orquestrada por Lula, pode enfrentar a extrema direita. Bonner e Vasconcellos, a Globo e a grande imprensa, são meras funções desse jogo eleitoral que busca deixar as coisas como estão e integrar o bolsonarismo no interior do regime, sem suas arestas mais desagradáveis aos capitalistas.

Como viemos dizendo nesse Esquerda Diário, derrotar Bolsonaro, os militares e a direita se dá no terreno da luta de classes, para revogar todas as reformas e os ataques. Devemos unir forças para exigir das direções majoritárias do movimento de massas, em primeiro lugar da CUT, CTB e UNE, que impulsione um verdadeiro plano de luta contra Bolsonaro e suas ameaças golpistas e pela revogação de todas as contrarreformas e ataques, para convocar à luta pelas demandas econômicas da classe trabalhadora contra a carestia de vida e a fome. Não aceitemos atos eleitorais junto com os grandes banqueiros, industriais e líderes do regime político, que vão definir o programa dessas ações de acordo com seus interesses. Isso não é um “combate contra o golpismo”. É necessária uma política de independência de classe, e impor às direções burocráticas um plano de luta efetivo, organizado a partir de assembleias de base nos locais de trabalho e estudo, alentando a auto-organização pela base, para colocar a classe trabalhadora como sujeito ativo na cena política, para que essa tome o controle da situação.

A defesa da independência de classe é fundamental. Essa batalha por ela, contra a conciliação, é parte fundamental das nossas pré-candidaturas do MRT pelo Polo Socialista Revolucionário com um programa para que os capitalistas paguem pela crise. Chamamos estudantes e trabalhadores a discutir essa perspectiva, e não compartilharmos bandeiras com nossos inimigos na luta contra Bolsonaro e os militares.




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