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A lógica da escalada e as múltiplas frentes da guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

A lógica da escalada e as múltiplas frentes da guerra na Ucrânia

Claudia Cinatti

O texto original foi escrito em 09/10/2022. Nesta última semana ocorreram novos desdobramentos do conflito militar na Ucrânia igualmente dignos de posterior análise. Apesar deles indicarem o aprofundamento de algumas das tendências que nos detemos a analisar, o artigo busca apresentar uma visão de conjunto do conflito e suas consequências, apresentando uma perspectiva independente da classe trabalhadora enquanto alternativa à guerra.

O primeiro dia dos 70 anos do presidente russo, Vladimir Putin, começou com uma péssima notícia. Na manhã de 8 de outubro, uma explosão destruiu parcialmente a ponte sobre o estreito de Kerch, que une a Rússia continental com a Península da Crimeia. Trata-se de uma obra de infraestrutura estratégica: em tempos de paz, porque conecta o Mar de Azov com o Mar negro; em tempos de guerra, como o atual, porque é a principal rota de reabastecimento e fornecimento das tropas russas estacionadas na região leste e sudeste da Ucrânia. Por essa razão, foi uma das posições mais defendidas pelo exército russo. O impacto militar é inegável e complica a vulnerável logística russa. O golpe também é moral. A ponte, inaugurada em 2018 pelo próprio Putin dirigindo um caminhão, é considerada pelo Kremlin como um símbolo do prestígio da Rússia e suas ambições de grande potência (nem a Wehrmacht nem o Exército Vermelho conseguiram cruzar o estreito durante a Segunda Guerra Mundial).

Não está claro quem realizou o ataque e não faltam hipóteses e especulações, entre elas, a de que se trataria de uma fração dissidente do próprio exército russo. O governo ucraniano oficialmente não reivindicou a autoria, embora tenha celebrado o atentado e reconheceu extraoficialmente as impressões digitais de suas unidades especiais. Essas formações irregulares já vinham realizando ataques terroristas atrás das linhas russas na Crimeia e outras localidades, antecipando talvez a combinação de guerra convencional e assimétrica que pode continuar por um tempo ainda incerto.

Se até o sexto mês de guerra a especulação dos analistas militares era se o exército russo havia atingido seu “ponto culminante” e, portanto, passaria para uma posição preeminentemente defensiva, hoje o foco está em qual será o “ponto culminante” da contra ofensiva ucraniana.

Este ataque às portas da Crimeia faz parte de uma série de reveses táticos para a Rússia desde que, em meados de agosto, o exército ucraniano, equipado pelos Estados Unidos e pela OTAN, decidiu iniciar uma contra ofensiva que ainda está em curso. Essa ofensiva começou com o deslocamento das tropas russas em Kharkiv e na frente noroeste e continuou sua marcha ao sul, com o objetivo aparente de recuperar a cidade de Kherson. O presidente ucraniano, Volodomyr Zelensky, usou essa ofensiva para redobrar a propaganda de guerra (“Ucrânia pode ganhar”) e pressionar as potências ocidentais, em primeiro lugar os Estados Unidos, para melhorar a qualidade ofensiva do armamento que generosamente o Pentágono lhe provê. Entretanto, até o momento o governo Biden não cruzou a “linha vermelha” de equipar a Ucrânia com armamento de precisão que possa alcançar o território russo.

O presidente Putin respondeu essa ofensiva, por enquanto, com uma escalada incremental de meios militares convencionais. Em 21 de setembro anunciou a mobilização parcial de reservistas (300 mil seria o primeiro objetivo). E no dia 30, decretou a anexação de quatro territórios na região sudeste da Ucrânia – Luhansk, Donestk, Kherson e Zaporizhzhya – à Federação Russa, embora a quase imediata perda de cidades importantes como Lyman demonstra uma disparidade entre a estratégia política e a realidade militar, uma vez que o exército russo evidentemente não tinha capacidade para consolidar essas posições anexadas.

A implicação política da anexação é que, em teoria, um ataque nessa região seria considerado pelo Kremlin como um ataque direto da OTAN em território russo. Mas a teoria e as ações militares concretas são mediadas por uma série de fatores. Portanto, os ataques como em Lyman ou Kherson não desencadearão automaticamente um ataque da Rússia a algum país da Aliança Atlântica, como especulam alguns analistas.

A alusão de Putin ao uso de armamento não convencional (“não estou blefando”, disse) ante o que poderia considerar uma ameaça existencial da OTAN contra a Rússia, atualizou a possibilidade de que a guerra se transforme em um conflito nuclear. O governo norte-americano aproveitou essas declarações para fins de propaganda. Aliás, Putin fez também algo parecido quando lembrou que o único país que rompeu o “tabu nuclear” foi ninguém menos que os Estados Unidos com o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki.

Em um evento de arrecadação de fundos do partido democrata, Biden falou do “Armagedon nuclear” e disse que a ameaça era a mais séria desde a crise dos mísseis de 1962. Ainda que provavelmente o objetivo de Biden fosse de advertir o governo russo para que desistisse da ideia, e a própria inteligência militar norte-americana disse que não tem nenhuma evidência de que Putin esteja planejando um ataque nuclear, a profecia de Biden possibilitou a discussão dos setores mais belicosos sobre a oportunidade de uma “mudança de regime” no Kremlin, ou seja, uma receita para a escalada aos extremos.

Embora no momento a probabilidade seja baixa, e tanto a Rússia quanto a Ucrânia ainda tenham uma ampla margem para escalar sem recorrer a meios não convencionais, apenas a incorporação do perigo nuclear ao discurso oficial fala por si só sobre a magnitude que adquiriu a guerra, que cada vez mais adota um caráter de “guerra por procuração” dos Estados Unidos e da OTAN contra a Rússia através do bando ucraniano.

A imprensa ocidental se apressou em definir a ofensiva ucraniana como um ponto de inflexão, refletindo a debilidade russa. Mas, como se sabe, a informação é parte da maquinaria de guerra para ganhar os “corações e mentes” da opinião pública e evita a “fadiga de guerra” tão temida pelos governos das potências da OTAN. E, enquanto as debilidades da estratégia russa são cruamente expostas (e evidenciadas em seus retrocessos militares), as dificuldades do esforço de guerra da Ucrânia são mascaradas pela sustentação militar e econômica do imperialismo norte-americano e europeu.

Qual é a real situação? Impossível saber ao certo. Depois de meses de relativa estagnação, com um avanço muito tortuoso e lento do exército russo sobre o Sudeste, a ofensiva ucraniana mudou a dinâmica e acelerou os ritmos da guerra. Porém, não o suficiente para pôr fim ao conflito. Nem o bando da Ucrânia/OTAN está disposto a conceder, tampouco está a Rússia, que está longe de ter sido derrotada. Segundo o politólogo “realista” John Mearsheimer, é isso que determina a lógica da escalada, que pode ser catastrófica mesmo que não use meios nucleares.

No imediato, se abriu uma nova conjuntura político-militar muito fluida, uma fase transitória marcada pela colisão de duas temporalidades: a pressa da Ucrânia (e da OTAN) para avançar o máximo possível antes que o clima faça estragos e a Rússia consiga por novas tropas no terreno; e a necessidade oposta da Rússia de prolongar o máximo possível a situação, esperando que o inverno dificulte a logística militar e, sobretudo, divida as frentes das potências ocidentais, em particular da Europa, que é hoje o epicentro da crise energética. Ambos com a perspectiva de um conflito que ainda tem pelo menos alguns meses pela frente.

As duas frentes de batalha

Os reveses militares abriram amargas disputas no aparato estatal e no regime bonapartista de Putin. Nos últimos meses, as críticas dos setores mais belicosos e nacionalistas tornaram-se mais vocais que, a partir de shows de TV e redes sociais, questionam os comandantes militares (e em última instância o Kremlin) por terem uma estratégia tímida que leva à derrota. Este setor, cujos porta-vozes são o líder checheno Ramzan Kadirov e o oligarca Yevgeny Prigozhin, fundador do grupo mercenário Wagner, estão em uma cruzada contra o ministro da defesa, Sergei Shoigu, que está em uma posição cada vez mais vulnerável. Essas disputas pioram o clima na direção política da guerra.

A outra fonte de conflito interno para Putin é a mobilização de reservistas. Até o dia 21 de setembro, a política de Putin para conservar o consenso da população para sua “operação militar especial” era duplo: reprimir duramente os opositores (até 15 anos de prisão) e evitar que a guerra invadisse a vida cotidiana dos russos, em particular, das classes médias das grandes cidades, que continuaram a levar sua vida quase com normalidade, salvo por não poder comprar em alguma loja internacional de luxo ou entrar em uma lanchonete do McDonald’s com os laços e o palhaço tradicional na porta. A mobilização de reservistas pôs fim a esse consenso silencioso. Milhares de russos (alguns contabilizam uns 200 mil), especialmente aqueles que têm poder aquisitivo e recursos, fugiram para evitar serem recrutados. O mais chamativo é que foram vivenciadas cenas de descontentamento e até de rebelião nos centros de recrutamento nas repúblicas mais negligenciadas da Federação, como Daguestão, de onde os recrutas militares vêm desproporcionalmente.

Segundo algumas pesquisas citadas por C.Trontin em uma nota recente, o fato de pelo menos os setores médios, os estudantes, os profissionais e todos que não tem instrução militar básica estarem isentos dessa rodada de mobilização patriótica, e do discurso patriótico defensivo de Putin (Rússia está ameaçada pelo Ocidente) para justificar esse giro na guerra a partir da anexação, permitiram conservar, por enquanto, uma base de sustentação do regime. Entretanto, os reveses militares somados às sanções econômicas teriam um impacto direto. Sem falar, obviamente, de uma derrota, que como apontou Gramsci, se transforma em crise política e de autoridade estatal, em particular quando a classe dominante convocou as massas populares para sustentar essa empreitada fracassada.

Essa é a aposta de Biden e das potências ocidentais, embora, para dizer a verdade, um setor do próprio imperialismo que aconselha a saída negociada prefere preservar Putin a enfrentar o caos e a ingovernabilidade da segunda potência nuclear do planeta.

Guerra energética, disputas geopolíticas e luta de classes.

Se toda a guerra é travada para além do campo estritamente militar, no caso da guerra da Ucrânia a extensão do campo de batalha é mundial e abarca a economia, a política, a geopolítica e inclusive a luta de classes.

A invasão e a guerra da Rússia na Ucrânia produziu um terremoto geopolítico que até agora deu origem a dois grande blocos que de certo modo recriam os bandos da Guerra Fria: por um lado, a aliança ocidental liderada pelos Estados Unidos através da OTAN, na qual se somaram aliados como Japão e Austrália e que estão por trás da Ucrânia; e pelo outro, uma aliança incômoda, mas enfim uma aliança entre China e Rússia, com uma série de potências regionais importantes como a Índia, que não se alinharam com os Estados Unidos e, a sua maneira, estão mais próximas do bloco euroasiático, sem apoiar abertamente a guerra da Rússia na Ucrânia. A cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai, realizada no final de setembro em Samarqanda (Uzbequistão), expôs tanto as contradições desse bloco informal – tanto Xi Jinping como o primeiro-ministro indiano Narendra Modi fizeram Putin saber de suas preocupações com a guerra – como a confluência objetiva de interesses, em particular dos marginalizados da “ordem neoliberal” norte-americana.

Nas últimas semanas, dois acontecimentos graves trouxeram à tona as consequências estratégicas da guerra na Ucrânia. O primeiro foi o ataque contra os gasodutos Nord Stream 1 e 2, que transportam o gás russo à União Europeia. Ninguém reivindicou o ataque. Há uma disputa aberta entre Estados Unidos e Rússia, que se acusam mutuamente de sabotagem. Um ex-funcionário do governo polaco tuitou uma foto do gasoduto fumegante com a legenda “Thank you America” e depois excluiu. O episódio é muito opaco, mas a verdade é que destacou a capacidade de realizar ataques submarinos com relativa facilidade no Mar Báltico, o que põe em risco uma grande rede de infraestrutura que corre sob os mares.

Outro fato significativo foi a decisão da OPEP+ (o cartel dos países exportadores de petróleo) de cortar sua cota diária de produção para subir o preço internacional do petróleo bruto. Nada menos do que a proposta da Arábia Saudita e da Rússia. Essa medida responderia à decisão da União Europeia (sugerida pelos Estados Unidos) de pôr um teto no preço do petróleo russo, reforçando assim as sanções econômicas.

Segundo o secretário geral da OPEP, a motivação é exclusivamente vil. Disse que “tudo tem um preço” e que, portanto, “a seguridade energética também tem um preço”, e que eles estavam apenas tomando uma medida preventiva para evitar o colapso do preço em caso de recessão ou crise (como aconteceu em 2008). Mas a carga geopolítica é evidente. Sem dúvida, essa decisão da OPEP é uma ajuda para Putin e destaca a diminuição da capacidade de Washington de alinhar seus aliados rebeldes, como a monarquia saudita. A Casa Branca esteve fazendo lobby para evitar essa medida, o que torna ainda mais patético o sentimento de humilhação, ao mesmo tempo que complica os esforços de Biden para baixar a inflação (o índice da gasolina é muito sensível) na corrida contra o tempo para as eleições de novembro.

As consequências para a economia mundial são eloquentes: aumenta a pressão inflacionária e aprofunda a crise energética que afeta sobretudo a União Europeia, aumentando as tensões e disputas internas. O cume de Praga da “Comunidade Política Europeia” – um novo grupo informal proposto pela UE integrado por todos os países do continente, com exceção da Rússia e da Bielorrússia –, foi mais uma vez cenário dessas disputas, com a Polônia e outros países do leste acusando a Alemanha de “egoísmo” por sua política energética, que inclui subsídios milionários. Sem falar das crises de longa data como o Brexit, que voltaram à agenda. Em última instância, o que tensiona a União Européia é a renovada liderança dos Estados Unidos sobre as potências ocidentais através da OTAN, que, como coloca o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, relegou as ambições de “soberania estratégica” transformando a UE em “auxiliar civil” da OTAN.

A crise energética e, de maneira mais geral, as consequências da guerra, impactam diretamente nas condições de vida de milhões em todo o mundo, no marco de um cenário de alta inflação e perspectivas recessivas. Essa situação está dando origem a um panorama convulsivo em que a crise dos partidos burgueses tradicionais e a polarização social e política se combinam com uma tendência inicial, mas persistente, de maior luta de classes. Em suma, o esgotamento da hegemonia globalizante neoliberal e a crise da democracia liberal abriram uma etapa histórica marcada pelas crises, pelas rivalidades imperialistas, pelas guerras e, também, pelas perspectivas de revolução.


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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