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A posse de Alexandre de Moraes e o novo pacto reacionário

Thiago Flamé

A posse de Alexandre de Moraes e o novo pacto reacionário

Thiago Flamé

Nessa semana, a posse de Alexandre Morais como presidente do TSE se transformou num grande acontecimento político que concentrou todas as atenções. O evento em si mesmo carece de importância e deveria passar despercebido, como um rito burocrático. Mas foi tomado como uma cerimônia simbólica, como consumação de um novo pacto político que está sendo selado entre os golpistas de 2016 e o PT sobre os escombros da constituição de 1988, preservando toda a obra do golpe institucional.

Em artigo recente, “Escovar a história a contrapelo: 1977 e o 11 de agosto de 2022”, Danilo Paris coloca a lupa sobre o caráter insólito do momento atual. Quando a Fiesp e a Febraban são aceitas pelos sindicatos e pelos partidos que se reivindicam de esquerda como defensoras da democracia, a própria história começa a ser reescrita mais uma vez. Retomar algumas ideias de Walter Benjamin para pensar o momento atual, como faz Danilo, ajuda a enriquecer o pensamento revolucionário numa situação em que nadamos contra a corrente. Porque o momento que vivemos é insólito, surreal, fantástico.

Tudo o que em algum momento pareceu sólido se desmancha. Organizações que se reivindicam de esquerda estão “enriquecendo” seu arsenal com o apoio da aliança com Alckmin. A esquerda adaptada aos novos tempos proclama a Rede Globo, a emissora do golpe de 1964, junto com qualquer entulho da ditadura que defenda as urnas eletrônicas, aliados democráticos fundamentais. Nem se questiona mais, que democracia é essa que se está defendendo, em que o papel político de primeiro plano é colocado no arquirreacionário TSE e STF. No pacto atual, conserva-se o papel político, o caráter bonapartista, das instituições sem voto, da justiça. E se preserva todo o terreno conquistado pelo bonapartismo militar, nisso consiste o pacto e o grande significado da posse de Alexandre de Morais. Os aspectos mais reacionários do pacto de transição no fim da ditadura se tornam o eixo de novo regime, a constituição é rasgada, sem que se precise fazer uma nova.

O golpe institucional de 2016 e o governo Bolsonaro levaram a uma ofensiva brutal do capital sobre o trabalho, sobre o povo negro e os povos indígenas, contra as mulheres e todos os que não se enquadram na estrutura heteronormativa da família tradicional. Agora, quando a política burguesa coloca no centro a necessidade de conservar o conquistado e se utiliza do lulismo para cumprir esse papel reacionário, o que está sendo golpeado a cada dia é o pensamento marxista e revolucionário, ou mais, a ideia de um inconformismo radicalmente anticapitalista, ou até de qualquer inconformismo. Vote. É a palavra de ordem mais radical oferecida à juventude nos dias de hoje. Amanhã, a palavra de ordem do progressismo no governo será paciência, como defenderam Marilena Chauí e Lula na USP. E, veremos, como a repressão mais brutal vai recair sobre setores impacientes das massas que teimem em se radicalizar.

E Benjamin ajuda, principalmente se seguimos o caminho de colocá-lo em diálogo com o marxismo de Trótski e da III Internacional antes da sua estalinização. Porque além de ser simpático a Trótski ambos têm um fundo em comum, teórico e estratégico: conceber o marxismo não como uma coleção de postulados ao modo de Bukharin, ou ao modo da esquerda atual, que caminha às cegas, sem teoria, num pragmatismo terrivelmente metafísico e ahistórico. Benjamin fala da revolução como freio de emergência, Trótski, diretamente, coloca as esperanças na vitória da revolução espanhola, como última chance da humanidade evitar o cataclismo da guerra imperialista. A guerra, que na sua crueza desmistifica muito da ideologia burguesa, mostrou o caráter imperialista do progressismo, entendido como a ideia força de toda política que espera conter o pior do capitalismo, por dentro do próprio capitalismo.

E essa é também a ideia básica do gradualismo lulista, avançar lentamente em melhorias nos níveis de vida, sem incomodar a classe dominante, institucionalizando a luta de classes. Como expressão de uma nova correlação de forças, ou talvez se antecipando a essa mudança, a burguesia se vê obrigada a reincorporar no regime do golpe, para garantir sua legitimação, Lula, os sindicatos e uma luta de classes controlada e restrita à luta econômica. Porém, não podemos nos enganar. A mudança em curso se deve ao medo das classes dominantes de uma explosão de revolta depois de tantos ataques. O pacto em curso, ao mesmo tempo que expressa o reconhecimento da burguesia dessa mudança, é também sua resposta reacionária a essa nova situação. Na medida em que o novo pacto que está sendo costurado garante um retorno à certa normalidade democrática, sem dúvida um respiro depois de quatro anos de ameaças golpistas, esse novo normal será o de uma democracia muito mais restringida do que já era a da Nova Republica, com o bonapartismo judicial e militar fortalecido, com uma extrema direita atuando abertamente. Pensando numa escala histórica e não da conjuntura imediata, foi das condições criadas pelo pacto de transição e pela Constituinte de 1988 que surgiu o golpe de 2016. O que surgirá deste novo pacto?

Quando a história tanto do golpe militar de 1964, como da transição pactuada dos anos oitenta é resgatada das mistificações em que caiu, nos mostra que sempre as alianças da classe trabalhadora com a burguesia favorecem a última. Como Benjamin ressalta no trecho que Danilo retoma, o passado se volta para as batalhas do futuro, como as flores se voltam para o sol, também as gerações passadas nos enviam seu mandato imperioso. Somente o marxismo revolucionário pode escutar e recolher esse mandato do passado, preservando-o do perigo que “ameaça tanto conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo único é o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la.”

Contra qualquer conformismo, num momento que não está aberto para grandes mobilizações de massas, a tradição do passado recente e do mais distante é uma poderosa lanterna para iluminar o futuro. As lutas grandiosas da classe operária e os debates políticos e teóricos que as acompanham, sussurram um caminho aos nossos ouvidos e desmascaram o futuro que querem nos oferecer. Nos lembram que a classe trabalhadora e o povo podem ser mais fortes que a burguesia e seu estado, podem derrotar os militares, podem inclusive rachar as forças armadas e soldar a aliança de soldados e marinheiros com a classe trabalhadora e o povo. E nos fazem chegar o alerta: perseguir a aliança com setores da burguesia, ou com toda a burguesia como hoje, aceitar um pacto que estabiliza ataques brutais, estrategicamente não prepara nada mais do que derrotas mais profundas.

Resgatar o passado, preparar o futuro

Até hoje, a história oficial daqueles anos do fim da ditadura, colocava na rebelião operária e na forma política que assumiu com a mobilização de massas da campanha das Diretas já a responsabilidade pelo fim da ditadura. Todas as frentes amplas que se tentaram, se apoiaram no exemplo das Diretas.

Essa já era uma mistificação da história. Nos cursos sobre a história do Brasil do MRT, estamos fazendo o esforço para resgatar o sussurro que nos chega das gerações anteriores. Suas vozes quase apagadas comunicam todo o potencial revolucionário que permaneceu latente naqueles anos e que, graças ao pacto social com a burguesia e os militares, nunca se realizou.

Esse pacto da transição foi considerado um passo adiante, inclusive pela esquerda que se reivindicava trotskista, mas já mostrava para quem quisesse de fato ver a falência da ideia de um avanço progressivo da realidade rumo a um mundo melhor, que naquele momento era encarnada por um PT recém surgido do ascenso operário e ideias de reformas sociais profundas a serem feitas por um futuro governo popular. Para manter sua dominação, a burguesia foi obrigada a reconhecer a classe operária e suas organizações como parte do regime político e a oferecer na constituinte um plano ousado de reformas sociais, que permitiram que fosse apelidada de “constituição cidadã”. Mas essa incorporação, se de fato pode ser considerada uma conquista porque permite melhores condições para a organização da classe operária, ao se dar pela via da transição pactuada, pela aceitação por parte das organizações operárias em manter sua luta nos limites aceitos, a impede de usar essas conquistas a seu favor. O caráter reacionário do pacto de transição se revela em toda sua profundidade histórica no bolsonarismo, herdeiro direto das forças de repressão da ditadura que tiveram sua impunidade assegurada.

No que tem de contraditório esse pacto, entre o reconhecimento que a classe operária impôs para a burguesia com a sua força e seus elementos reacionários, o caráter reacionário do pacto é o predominante. Para aproveitar a seu favor as conquistas impostas na constituição de 1988, a classe operária precisava romper com a transição pactuada e questionar as próprias bases do novo regime. A burguesia se apoiou diretamente nessas bases para desenvolver a ofensiva neoliberal, enquanto o PT impediu que a classe operária usasse as posições conquistadas para fortalecer o seu enfrentamento ao conjunto do regime. Sempre os pactos do movimento operário com a burguesia cumprem um papel reacionário. Ou, em outras palavras, o progressismo, ou a ideia de um avanço histórico gradual sem questionar as bases do sistema capitalista, é sempre uma ferramenta das classes dominantes, ao impedir que ideologias revolucionárias tomem corpo nas classes dominadas, impede também que a classe trabalhadora use suas próprias conquistas para preparar a vitória definitiva da sua luta. Porque a democracia foi conquistada pelas greves a partir de 1978, que não liquidaram a ditadura, mas conquistaram na prática as liberdades democráticas para as massas. Os exilados voltaram, os jornais de esquerda puderam circular e as organizações clandestinas passaram a atuar à luz do dia. O progressismo da época serviu para recompor uma nova forma de dominação burguesa, frente à crise completa da anterior pela ação independente das massas, o que abria a possibilidade de que a ditadura fosse derrubada por uma greve geral ou grandes mobilizações e com o desenvolvimento do processo, uma situação revolucionária se colocasse.

Para honrar Zumbi, combater o pacto reacionário

“É uma imagem do passado que ameaça se perder a cada novo presente”. As palavras de Benjamin ressoam na cabeça neste momentos de retrocesso ideológico, que, nos arriscamos a afirmar, é sem precedentes pela amplitude da adaptação teórica e ideológica da esquerda revolucionária ao progressismo que se prepara para ser o partido da ordem mais uma vez.

A cada pacto reacionário, é como se Palmares caísse de novo, ao ter sua voz ignorada. Pois se a história do Quilombo dos Palmares foi a história da luta revolucionária do povo negro no Brasil, que mostrou a falsidade da ideia de progresso inscrita em negro e vermelho na bandeira nacional, pois desenvolveu uma agricultura com uma produtividade maior que a dos escravocratas, foi também a história da luta contra a conciliação com os senhores, expressada pela orientação de Ganga Zumba, que tentou até o fim um acordo impossível com o senhores, substituída pela de Zumbi, com eixo em se preparar para o que estava colocado: um combate de vida ou morte.

Fica evidente a relação entre esse parêntesis histórico e o significado da posse de Alexandre de Morais. A situação atual, por como ela se desenvolve, por como a burguesia encontra dificuldade para estabilizar os ataques dos últimos anos, deveria ser uma injeção de ânimo para os revolucionários. A burguesia, ao acenar com um novo governo Lula, mostra que teme a possibilidade de revoltas que não poderia controlar. O progressismo, cristalizado em política com a carta em defesa da democracia e de um futuro governo Lula/Alckmin que se coloca como defensor da constituição de 1988. Na verdade, sendo rigorosos, no processo eleitoral já se transformou na ideia dominante, em torno da qual o partido da ordem se aglutinou. Isso é um índice da debilidade da dominação da burguesia, estrutural, não conjuntural. A burguesia se prepara para os grandes momentos estratégicos, por assim dizer. Aqueles em que a grande política suplanta os pequenos acontecimentos do dia a dia.

O novo pacto é um pacto em defesa da ordem capitalista, ainda que seja preventivo. Em nome de combater a extrema direita, aliás, combater o bolsonarismo numa frente que inclui setores de extrema direita que se mascararam por um momento de progressistas, o PT oferece a aceitação dos ataques de Temer e Bolsonaro e se compromete (ver a fala de Mercadante na Fiesp) com novos ataques se a situação e a manutenção dos lucros da burguesia assim o exigirem.

Um novo regime político está se consolidando. Um regime com um peso das instituições sem voto que será muito maior do que antes. Algo muito parecido com o que sonhavam os generais da transição lenta gradual e segura. Não é nada acidental a reivindicação da carta de 1977. Pois ela era a exigência de uma transição segura, sem a eclosão da revolta de massas. É como se a burguesia recorresse a sua tradição, não só para liquidar com as tradições dos oprimidos, mas para alertar os militares e os setores burgueses que ainda apoiam Bolsonaro, de que se não se caminha para um pacto, como não se caminhou em 1977, o próximo passo pode ser a eclosão da revolta operária.

Esse novo regime político se equilibrar entre um governo que incluirá no seu gabinete as forças políticas que rivalizaram o regime de 1988 e na oposição conservará a extrema direita bolsonarista e militar como um ativo importante, tanto para a justificação ideológica do governo, como para ser usado caso a contenção petista falhe. A luta pela democracia vai seguir na ordem do dia, assim como as ameaças golpistas, pois a extrema direita seguirá atuante. Uma estratégia independente nesse contexto terá que se colocar do ponto de vista do golpe à extrema direita e aos poderes bonapartistas, mas não para defender o regime do golpe, ou uma forma de democracia muito mais degradada. A luta por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, imposta pela mobilização das massas, articulada com um conjunto de demandas econômicas e sociais, recobrará mais força.


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Thiago Flamé

São Paulo
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