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Trabalho escravo | A terceirização como porta de entrada para o trabalho escravo

Os trabalhadores baianos resgatados em condições análogas a escravidão, no Rio Grande do Sul, que viraram manchete pelo país, eram terceirizados pelas vinícolas. Esta ligação entre terceirização e trabalho escravo, no entanto, está longe de ser algo novo ou fortuito.

segunda-feira 6 de março de 2023 | Edição do dia
(Foto: Bruno Fonseca/Agência Pública)

Na última semana, os relatos dos trabalhadores resgatados em situação análoga a escravidão nas vinícolas gaúchas correram por todo o país. Os 208 trabalhadores resgatados foram recrutados na Bahia para trabalhar em plantações que servem a grandes marcas como Garibaldi, Aurora e Salton, por meio de duas empresas terceirizadas.

O fato de terem sido contratados por empresas terceirizadas não é um mero detalhe, pois este é um modelo de precarização do trabalho que cresceu bastante no país durante os governos petistas e que ganhou novo gás em 2017, com uma nova legislação que permitia a terceirização irrestrita nas empresas, e que está também profundamente ligado ao trabalho escravo.

O trabalho análogo a escravidão

Em 2022, foram mais de 2,5 mil trabalhadores resgatados em condições análogas a escravidão, totalizando mais de 60 mil desde 1995, quando foram criados os grupos especiais de fiscalização móvel. Em um momento onde cresce a importância do agronegócio na economia brasileira, chega-se ao dado de que 87% dos resgatados estavam em trabalhos rurais, como o cultivo de cana, de café, pecuária e produção de carvão vegetal. Na chamada Lista Suja, feita pelo Ministério do Trabalho com empregadores condenados pelo uso de trabalho escravo, constam fornecedores para grandes empresas do agronegócio, como JBS, Marfrig e Masterboi.

No caso dos trabalhadores resgatados em ocupações urbanas, destaca-se o setor da construção civil, inclusive com diversos trabalhadores resgatados em obras para entes públicos, como a que ocorreu também nesta semana em uma obra da prefeitura de Joinville (SC).

A persistência do trabalho análogo a escravidão é um elemento do forte racismo ainda presente no Brasil, demonstrado pelo fato que 83% dos trabalhadores resgatados são negros. Além disso, funcionam como elemento de maximização de lucros para grandes empresas e como elemento da dinâmica capitalista brasileira.

A terceirização, por sua vez, atua muitas vezes como porta de entrada para o trabalho análogo a escravidão.

A terceirização no Brasil

A terceirização no Brasil já existe há décadas, mas ganhou fôlego com o Enunciado 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), de 1993, que regulamentou, na época, a terceirização apenas para as atividades-meio das empresas. Em 2017, foi aprovada no Congresso a terceirização de qualquer atividade das empresas, algo que foi ratificado por uma decisão de 2018 do STF, que reviu o Enunciado 331.

Mesmo antes da mudança legislativa, a terceirização já avançava no Brasil, representando parte importante das novas vagas de emprego geradas durante o período lulista. Em 1995, eram 1,8 milhão de terceirizados formais no Brasil, número que chegou a 4,1 milhões em 2005 e 12,5 milhões em 2014, representando cerca de 25% do mercado de trabalho formal do país, segundo dados do Dieese. Essa mesma pesquisa mostra ainda que, no período 2007-2014, o número de postos terceirizados cresceu 46,5%, contra 28,7% das contratações diretas.

O governo Lula foi um período também de avanço da terceirização no serviço público. Uma nota técnica do Ipea mostra que, durante o segundo governo Lula, os gastos estatais, das três esferas, com terceirização cresceram 61%, em termos reais, contra aumento de 24% com os servidores contratados diretamente, incluindo aposentados. Na indústria do petróleo, dominada pela Petrobras, o número de trabalhadores terceirizados cresceu mais de 630% entre 2000 e 2013, chegando a mais de 360 mil, contra aumento de apenas 121% de trabalhadores efetivos.

A tendência, após as mudanças legislativas, é que a terceirização avance cada vez mais rápido, em uma recuperação do mercado de trabalho, pós-pandemia, marcada por aumento cada vez maior da precarização. A Pesquisa de Gestão de Pessoas na Pandemia de Covid-19, feita em 2021 pela Fundação Instituto de Administração (FIA), mostrou que 94% das empresas pesquisadas afirmaram que passaram a contratar mais trabalhadores terceirizados.

A terceirização é intimamente ligada a piora das condições de trabalho, salários mais baixos, maior índice de acidentes e negação de direitos trabalhista. Dados do DIEESE, de 2014, mostram que os terceirizados recebem, em média, 23,6% a menos que os trabalhadores efetivos, podendo a diferença ser ainda maior em determinados ramos. Em 2021, o mesmo STF que tinha ratificado a terceirização irrestrita votou a favor de permitir a diferença salarial entre funcionários diretos e terceirizados, ainda que exercendo a mesma função.

Existem ainda outros fatores na questão da terceirização. As empresas contratantes minimizam e externalizam seus custos, para empresas terceirizadas que muitas vezes somem, ou são trocadas, para evitar o pagamento de férias, FGTS e outros direitos. No caso do serviço público, os terceirizados atuam sob um regime jurídico diferente, sem direito a estabilidade.

A maior pressão sobre os trabalhadores, fruto da maior rotatividade, empurra a que se aceitem piores condições e salários. A terceirização ainda cria uma camada de “trabalhadores de segunda classe”, quase invisibilizados, como um elemento que divide os trabalhadores, enfraquece laços de solidariedade e gera uma fragmentação sindical, diminuindo a própria capacidade dos sindicatos de fiscalizar as condições de trabalho e dos trabalhadores de defenderem seus direitos.

Esses últimos fatores contribuem para explicar a ligação da terceirização com o trabalho análogo a escravidão. Corroboram essa tese dados do IBGE de 2015, que mostraram que 4,5% dos trabalhadores terceirizados tinham dívidas com seus patrões que os impediam de sair do trabalho, contra 2,5% dos trabalhadores empregados diretamente. Além disso, dados compilados pelo pesquisador Vitor Araújo Filgueiras, analisando os dez maiores resgates feitos a cada ano de trabalhadores em condições análogas a escravidão, entre 2010 e 2013, mostraram que 84,3% dos trabalhadores resgatados eram terceirizados.

Esta tese é também levantada por Ronaldo Fleury, então Procurador-Geral do Trabalho, em entrevista de 2017, onde afirma que a terceirização é responsável por 92% dos casos de trabalho análogo a escravidão no Brasil, e afirma diretamente: “a terceirização hoje é condição sine qua non para o trabalho escravo”.

Através da terceirização, as empresas que se beneficiam do trabalho escravo podem se isentar de qualquer tipo de responsabilização legal, além de buscar se descolar desta prática, como fazem as empresas gaúchas agora com suas notas hipócritas onde dizem não saber de nada e repudiam o trabalho escravo, sem abrir mão dos lucros que irão auferir com o trabalho dos funcionários resgatados.

Vê-se, então, a ligação do trabalho análogo a escravidão, forma mais perversa da exploração capitalista hoje, com a terceirização, uma das principais formas do avanço do trabalho precário no Brasil, e que atinge em especial as mulheres e o negros.

Como maneira de enfrentamento ao trabalho escravo, é fundamental que se ataque a raiz desse problema na terceirização, defendendo que o conjunto dos sindicatos e das Centrais tomem como suas as lutas dos trabalhadores terceirizados, ao invés de assumir posturas corporativas, e que se lute para que todos os terceirizados sejam incorporados enquanto trabalhadores diretos, sem necessidade de concurso no caso do serviço público, bem como a revogação da Reforma Trabalhista, que abriu cada vez mais espaço para uberização e pejotização, e que o Governo Lula-Alckmin não irá revogar.

Somado a isso, que se desmascare a hipocrisia das empresas como Salton, Aurora e Garibaldi que dizem não saber de nada, e se exproprie todas as empresas e fazendas que se utilizam do trabalho escravo, as colocando sob controle dos próprios trabalhadores. Caso contrário o trabalho de resgate de trabalhadores nessas condições seguirá apenas enxugando gelo de um problema que se perpetua pela própria necessidade do capitalismo.




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