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No contexto da crise sanitária provocada pelo COVID-19, a saúde reprodutiva foi declarada como serviço essencial. O que acontece com os contraceptivos e o aborto legal na pandemia?

Celeste MurilloArgentina | @rompe_teclas

quinta-feira 28 de maio de 2020 | Edição do dia

Texto publicado originalmente em La Izquierda Diario Argentina

O acesso a métodos contraceptivos e saúde sexual no contexto da pandemia alertou sobre o potencial retrocesso em matéria de direitos e saúde reprodutiva. Não se trata de riscos relacionados diretamente com o vírus COVID-19, senão com o acesso de direitos que os Estados nacionais e locais devem garantir a métodos contraceptivos, saúde reprodutiva em geral e formas seguras de interrupções voluntárias da gravidez.

O Guttmacher Institute (um centro de estudos especializado em direitos reprodutivos) calculou uma queda de apenas 10% no uso de contraceptivos reversíveis a curto e longo prazo, “resultaria que 49 milhões de mulheres veriam insatisfeita sua necessidade de contracepção moderna em países de baixa e média renda”. Esse número se somaria aos 232 milhões que, por falta de acesso ou informação, não utilizavam métodos contraceptivos (antes da pandemia) para evitar uma gravidez indesejada.

A queda da utilização de métodos contraceptivos poderia resultar, segundo informou o Fundo de População da ONU, em 15 milhões de gravidezes não desejadas a mais. Isso, por sua vez, aumenta a possibilidade de abortos inseguros e, como consequência, um maior índice de mortalidade entre mulheres e pessoas com capacidades de gestar.

O que acontece com o aborto legal

Em muitos países, a interrupção voluntária da gravidez é legal como resultado de anos de mobilizações do movimento de mulheres. Mas, nos últimos anos setores conservadores vem impulsionando restrições e proibições. Por esse motivo, esse direito democrático está na mira de governos e partidos políticos de direita e extrema-direita, e resultou no aumento de abortos inseguros.

Os Estados Unidos se transformou em um dos novos epicentros da pandemia de COVID-19 e já superou os cem mil mortos. Nesse país, a maioria da população enfrenta a crise sanitária sem saúde pública e, nesse contexto, alguns estados utilizam a crise para avançar na sua agenda anti-direitos. A direita conservadora, as igrejas católica e evangélica e organizações contra o aborto legal juntam esforços para restringir ou proibir diretamente o acesso à interrupção voluntária da gravidez.

Ao contrário dos preconceitos reproduzidos por setores conservadores, o aborto legal é indispensável também em um contexto de crise sanitária. E o desenvolvimento de práticas como o aborto farmacológico ajudam a reduzir os riscos na saúde das mulheres e pessoas com capacidade de gestar como também, a não colapsar os sistemas de saúde.

Nos Estados Unidos, entre março e abril, o número de abortos farmacológicos com assessoria médica (telefone ou via internet) duplicou, essa prática, legal desde o ano de 2000, nasceu das estratégias das organizações que defendem o direito ao aborto para evitar as restrições em muitos estados. Hoje, se transformou em uma alternativa para não saturar clínicas e hospitais. A porcentagem de pessoas que devem visitar um centro de saúde depois de um aborto farmacológico é mínima.

No Reino Unido, o guia publicado pela Royal College of Obstetrics and Gynecology (associação de especialistas em ginecologia e obstetrícia) sustenta que, “o aborto é um serviço essencial à saúde. Esses serviços devem se organizar para minimizar os atrasos no atendimento”. E agrega que “a prioridade é o fornecimento de atenção segura às mulheres, incluindo aquelas que são casos suspeitos ou confirmados de COVID-19”.

Em países com leis restritivas como a Polônia (a mais restrita da Europa), a pandemia multiplicou os obstáculos para se esquivar da clandestinidade. Muitos abortos (clandestinos) são realizados no Reino Unido ou Alemanha. Ao fechar as fronteiras, mulheres na Polônia ficaram expostas a maiores riscos. A reforma impulsionada pelo governo ultraconservador ficou em suspenso em abril ao não ser tratada no Parlamento. Apesar do confinamento, houve protestos em automóveis contra as leis reacionárias.

Nos países onde o direito ao aborto é legal existem múltiplos cenários. Ao ser considerado um tema de saúde pública, contemplam-se protocolos especiais. “O aborto é um serviço essencial à saúde. Esses serviços devem se organizar para minimizar os atrasos no atendimento”, sustenta um guia publicado pela Royal College of Obstetrics and Gynecology do Reino Unido.

Medidas como essa colocaram em alerta setores reacionários que tentam aproveitar a pandemia para obstaculizar esse direito. A gota d’água foi a declaração conjunta de 59 países para a “proteção da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos”. A declaração, assinada por ministras e ministros da Saúde, Desenvolvimento Social e chanceleres, reconhece a necessidade de garantir os direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas.

O comunicado se refere também ao aumento dos abortos inseguros: “Nesse contexto, os serviços de saúde sexual e reprodução são essenciais. O financiamento da saúde e os direitos sexuais e reprodutivos deve seguir sendo uma prioridade para evitar o aumento do número de mortalidade materna e neonatal, o crescimento das necessidades não atendidas de anticoncepcionais e um maior número de abortos inseguros e infecções de transmissão sexual”.

Entre os países da América Latina que assinaram o documento se encontram Argentina, Costa Rica, Equador, México, Uruguai e Peru. Em muitos, o aborto está criminalizado com exceções (violação e risco à saúde e a vida da pessoa gestante), mas a clandestinidade é um denominador comum, como na Argentina, onde segue traduzindo-se na morte de mulheres pobres.

Os anti-direitos não descansam na quarentena

Os movimentos anti-direitos, as igrejas católicas e evangélicas, não descansam na quarentena. Organismos como o Centro para a Família e Direitos Humanos (C-Fam), conhecido grupo anti-direitos, antes chamado Instituto Católico para a Família (mudaram seu nome para ampliar seu alcance) reagiu à declaração dos 59 países. “Ambas resoluções se baseiam em um informe de política do Secretário General da ONU (...) O informe busca designar uma lista de políticas prioritárias para proteger as mulheres na pandemia, entre elas ‘serviços de saúde sexual e reprodutiva’”.

Na América Latina, a Igreja Católica não esperou para fazer seu repúdio. Um grupo de arcebispos do Peru rechaçaram a assinatura do Ministro da Saúde Víctor Zamora, ao qual acusaram que “aproveita a crise do coronavírus para impulsionar o aborto no país”. No México, um conhecido deputado anti-diretiros, Juan Carlos Leal, foi o porta-voz do repúdio: “Há coisas mais importantes como o tema da Covid-19, os suplementos para os médico ou apoiar realmente os que estão doentes e não estar promovendo políticas abortivas”. Porém, não se escutou declarações em relação ao estado crítico do sistema de saúde nesse país, que está quebrando em meio à crise sanitária.

Na Argentina, a Igreja Católica não se pronunciou sobre a declaração em um claro sinal de trégua que mantém sobre esse tema com o governo nacional. Durante o Te Deum de 25 de maio, não houve pronunciamentos contra a legalização do direito ao aborto, como foi feito no último 8 de março, quando organizou uma demonstração pública contrária.

Por sua vez, a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas da República Argentina (ACIERA), a federação mais importante do país, publicou um comunicado contra a legalização do direito ao aborto. A carta aberta ao presidente Alberto Fernández responde às declarações sobre uma futura apresentação de um projeto próprio do Poder Executivo sobre o aborto legal (no qual, não se sabe nenhum detalhe). Além da carta, incentivaram convocatórias de romper a quarentena obrigatória contra o aborto legal.

O reconhecimento da saúde sexual e reprodutiva como um serviço essencial é uma medida básica e indispensável para a saúde integral das mulheres e as pessoas com capacidade de gestar. Enquanto a interrupção voluntária da gravidez está criminalizada e a maioria dos abortos sejam em condições inseguras, qualquer crise sanitária só representará maiores riscos para a saúde das mulheres.




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