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EXPOSIÇÃO EM SÃO PAULO | Abramović, o fim do limite entre obra, público e artista

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

terça-feira 24 de março de 2015 | 16:20

FOTO: EFE

Marina Abramović chegou ao Brasil, no SESC Pompeia, e tomou os outdoors das estações de metrô, pontos de ônibus, as páginas das revistas, e os noticiários populares entre o resultado do jogo de futebol e a notícia sobre o trânsito na cidade de São Paulo. Com ares de super exposição, que já passou pelo MoMA – Museu de Arte Moderna de Nova York - nos Estados Unidos, ao Serpentine Galery, em Londres; a intenção é que nos dois meses de exposição as obras da artista atraia massas. Ainda mais com o chamariz, que é ter a artista presente oferecendo oficinas. Se ela não era popular é agora vendida com o status, sim, de artista popular.

Ao entrar no grande galpão do SESC Pompeia, e encontrar a primeira obra de Marina Abramović, lê-se que a artista sempre tentou a aproximação com o público. Talvez seja isso, que faça com que ela seja vendida como uma artista popular. Mas para além de como estão tentando vendê-la, esse é o aspecto que torna sua obra inovadora em tempos em que, aparentemente, a arte encontra-se estagnada e sem rupturas.

Encontra-se na obra de Marina a incapacidade de ser crítico dissipando a experiência pessoal em estar na exposição. É tão preciso que o observador esteja presente e exista no recinto de algumas das obras, a ponto de a arte em si só existir através da experiência do observador, que se torna o artista que constrói a obra e é a obra em si. Em síntese, o limite "artista-obra-público" rompe-se em Abramović. Ao mesmo tempo em que ela é a artista que faz a obra, ela é a obra, precisa do observador para que a obra exista; ou chega-se ao extremo de não existir obra e nem artista e o público em um espaço vazio ser a arte. Está posta a necessidade de o público ser sujeito da arte de Marina.

O publico que conhecia Abramović de antemão sempre se lembra do choque que foi uma de suas exposições em que ela se colocava diante de um publico a disposição de que eles fizessem aquilo que quisessem com ela. Em uma plateia majoritariamente masculina, a despiram, tocaram seu corpo e chegaram a ferí-la. Em palavras simples: a disposição de Marina em estar frente a um público desarmada deu vazão a um machismo que independente do contexto se vê no direito de fazer o que bem entende com o corpo de uma mulher, sem que seja necessário que nos questionemos se o mesmo seria feito com um homem. A documentação dessa intervenção não veio ao Brasil, por um motivo que apenas a curadoria poderá explicar; podemos apenas especular.

O machismo foi algo que Marina teve que enfrentar no início da carreira quando fazia suas intervenções acompanhada de seu companheiro, Ulay. Algumas dessas intervenções, que aparecem na retrospectiva de sua carreira em vídeos, eram tidas sempre como ideia de seu companheiro e ela era vista apenas como a mulher que o acompanhava; sendo sempre ele o real artista. O tempo mostrou que Marina era uma artista independente de seu companheiro.

A primeira obra presente na exposição no SESC Pompeia é "A artista está presente". A intervenção feita no MoMA, em Nova York, em 2010. Aqui vemos a mesa a qual se sentou Marina Abramović convidando o publico a sentar-se em frente a ela e encará-la. Em torno da mesa em dois grandes telôes temos a filmagem do rosto da artista, à direita, e do espectador-artista que aceitou encará-la pelo tempo que quisesse, à esquerda. A postura de Marina é reta, as mãos sempre sobre as coxas, o cabelo trançado de lado e o rosto sério. Em meio a todos os vídeos há um, que chama especial atenção, em que Abramović respira e ensaia um sorriso em meio a tantas faces sérias de si mesma. A artista propõe um contato visual de longa duração e o silêncio. Reparar no outro, manter contato é aparentemente doloroso. Somos bombardeados pela realidade em que não conseguimos reparar no outro, tão enclausurados estamos em nós mesmos. Mas o sorriso que quase se mostra na face de Marina nos lembra de que pode também ser prazeroso lembrar que não estamos sós e perceber o outro ao nosso redor.

Esse expor-se ao outro se repetirá em Casa com vista pro mar. A intervenção que foi apresentada na Sean Kelly Gallery em Nova York, em 2002, mostrou Marina vivendo por doze dias em uma casa com três cômodos em que não havia parede separando a área interna da área externa. Dormir, tomar banho, comer, ir ao banheiro; todas atividades tão privadas foram expostas ao outro. Aqui no Brasil vemos algumas fotos feitas dessa intervenção, objetos utilizados durante esses doze dias e podemos ouvir Abramović descrevendo cada ato feito dentro da casa com vista pro mar, deixando para o ouvinte a ação de imaginar o que foi a intervenção; com a imaginação do ouvinte criando imagens sobre a palavra da artista uma segunda intervenção é criada em cima da segunda. Novamente é imprescindível o observador para que a obra se realize.

O terceiro recinto da exposição apresenta a obra 512 horas em que o público no museu Serpentine Gallery, em Londres, em 2014, era convidado a entrar em uma sala vazia e fazer atos simples, como andar lentamente, separar grãos, entre outras coisas; isso era tudo. Não havia obra e nem artista, o público em um espaço vazio fazendo coisas que lhe pediam para fazer era a obra em si. Se até então, Marina nos levara a perceber o outro agora ela nos leva a perceber a nós mesmos. Além disso a artista também nos sugere que as pessoas que participaram dessa obra entraram em um transe profundo e que uma energia coletiva se formou ali. Abramović tem uma ligação muito grande com uma energia mística; foi isso que a levou a viajar ao Brasil em busca de minerais que irradiam energia. Mas mesmo ao espectador mais cético é possível depreender uma experiência de sua obra que não perpassa por essa crença em uma energia mística.

Essa experiência de notar a si mesmo - assim como a energia - será o mote de "Objetos transitórios para uso humano", onde o espectador em contato com esses objetos criados por Marina, sempre com minerais, é levado a uma espécie de meditação onde através do silêncio e da imobilidade em relação aos objetos toma-se consciência do próprio ser.

Em meio a essa retrospectiva da obra de Abramović há a Galeria de retratos em vídeo; catorze obras em vídeo feitas entre 1975 e 2000. Em uma fileira de televisores observamos a artista em primeiro plano em diversas imagens; sempre a artista em foco em frente à câmera. Na primeira filmagem temos a artista deitada em frente ao mar, a calma do mar ao fundo, ao mesmo tempo da angústia de que a onda seguinte cubra a artista deitada na imagem cinza. Seguimos os vídeos: a imagem azul da artista mordendo a ponta dos dedos causando irritação no espectador; o charme dos pequenos gestos silenciosos da artista sobre a luz vermelha; Marina coberta por cristais que vão caindo e revelando-a, os lábios vermelhos e o som de sua respiração; ela se escondendo com as próprias mãos pouco a pouco; a imagem de Abramović falando invertida e o som de sua fala ecoando; ela comendo cebola compulsivamente enquanto os olhos lacrimejam com a ardência do alimento; apenas a imagem de seus lábios falando; um esqueleto e a artista ao fundo, para no filme seguinte mostrá-la lavando os dentes do mesmo esqueleto; Marina parada com cobras serpenteando em sua cabeça como um turbante; ela falando novamente, agora com a imagem na posição correta e em preto e branco; a imagem dela gritando de dor, que pode também ser ela gemendo de prazer – novamente nota-se algo na obra de Marina Abramović, que pode ser doloroso e prazeroso ao mesmo tempo -; e por fim, a artista escovando os cabelos, hora de maneira calma, hora de maneira desesperada. Cada filme acorda no espectador alguma sensação, que vai de calma a angústia e desespero; é esse o jogo que a artista propõe.

No fim da exposição tem-se a possibilidade ver Abramović nos Vídeos de 1974 a 2010. Aqui vemos as primeiras obras de Marina junto com seu ex-parceiro, Ulay, como "Os amantes: a caminhada na grande muralha", em que é mostrada paralelamente a caminhada de Marina e de Ulay pela grande muralha da China, cada um iniciando sua caminha em uma extremidade da muralha: "cada um de nós caminhou 2 mil quilômetros para dizer adeus"; ou Travessia do mar noturno, que possui duas fases, a primeira em que o casal se senta em uma mesa redonda com um monge e um aborígene e ficam por dias se encarando, e uma segunda fase em que o casal senta-se em uma mesa retangular sempre com um terceiro espectador – era o embrião do que seria anos depois "A artista está presente" -; o chocante e desesperador "Energia de repouso", em que Ulay segura o arco e Marina segura a flecha apontada para o próprio peito e a tensão entre os dois é o que mantém a flecha longe de acertar o coração dela, a respiração dos dois aumentando conforme a tensão entre os dois vai diminuindo e a flecha se aproximando de acertá-la até que o filme é cortado quando a tensão se rompe; o "Relação no espaço", em que os dois correm nus se cruzando até que se colidem; e "Inponderabilia", quando os dois se colocaram nus na entrada de um museu forçando os visitantes a passarem por eles e ter que encarar a nudez deles para terem que entrar – intervenção que em pouco tempo foi proibida por atentado público ao pudor. Há também nessa série o vídeo em que por horas Marina se mantém na mesma posição desconfortavelmente contando histórias para um burro que o tempo todo a encara; e outro vídeo em que ela dança nua com o cachecol enrolado no rosto ao som de tambores africanos até cair de exaustão.

Apesar de todas as experiências que "Terra Comunal" consegue apresentar ao público, ela é uma exposição de retrospectiva da obra de Marina. Tudo o que está exposto aqui no Brasil é o relato das intervenções que ela fez em outros países. O público que criou uma maior expectativa sai um pouco desapontado ao ver que a artista não está presente; o que está presente é a documentação do que foram suas principais intervenções ao longo de sua carreira. Ainda assim, é impressionante ver a documentação de uma artista que rompeu com o limite entre o artista e o público; que no início de sua carreira já se colocava desarmada na frente da câmera sem se resguardar e que passou a se expor em nome do que acredita ser sua arte, sendo uma das criadoras do que chama-se hoje de intervenção de longa duração, onde o artista não fica mais guardado em seu ateliê e apenas sua obra tem contato com o público; tudo aqui é subvertido e a arte é criada com a artista presente necessitando do seu observador.




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