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Apontamentos sobre Estética e Marxismo

Afonso Machado

Apontamentos sobre Estética e Marxismo

Afonso Machado

É lugar comum para um materialista histórico o fato das fantasmagorias que os homens depositam nas miragens da ideologia, ocultarem os mecanismos brutais que as classes dominantes recorrem na organização da base econômica. Entretanto, a dialética das imagens exige não apenas o diagnóstico que explica a distorção da realidade mas também uma meditação sobre as estratégias de linguagem que realizam o seu desmascaramento. Em Marx e Engels o conceito de máscara, originalmente de proveniência cênica/ literária, isto é, recurso que propicia a elaboração de personagens, é parte de um arsenal simbólico que atende ao conjunto das complexas formas de comunicação da Economia Política:

(...) “ A principal máscara sob a qual se disfarça o capitalismo, caiu por terra com a descoberta da mais valia “(...).

Esta afirmação de Engels sugere uma construção dramática no coração da ideologia capitalista. Atrás da máscara posta pelos capitalistas sobre o mundo, oculta-se uma realidade em que o proletariado é expropriado, é explorado pelo capital. O próprio processo de entendimento desta realidade, seu desmascaramento na escrita de Marx e Engels, se faz não raramente pelo recurso simbólico que estrutura o drama exposto: a metáfora torna-se, no materialismo histórico, uma estratégia para ilustrar mecanismos econômicos e a representação da história.

A existência da máscara e logo a necessidade de desmascarar as reais condições econômicas e políticas nas sociedades de classes, compreendem um fator histórico que os artistas de esquerda não perdem de vista. É precisamente o gesto de desmascaramento que observamos dentro da arte gráfica realizada pelos revolucionários espanhóis durante a Guerra Civil(1936-39). Naqueles anos em que revolucionários do mundo dirigiram suas atenções para uma Espanha que era alvo da ofensiva fascista, desmascarar a ameaça totalitária personificada na Falange do General Franco, exigia que os trabalhadores reconhecessem o fascismo por trás dos discursos políticos. Num cartaz é possível ler:

“DESMASCARAR O PROVOCADOR FASCISTA”.

“ Engajar-se“: esta foi no século passado a palavra de ordem dos artistas que não queriam reformar mas revolucionar o mundo. Certamente o marxismo passa a ser uma parada filosófica obrigatória para estes artistas. Mas diferentemente de um mero carimbo para as obras de arte, a análise materialista da Estética inaugurada por Marx exige uma meditação histórica profunda sobre as relações entre arte e política. Desmascarar a ideologia dominante, como sugere Engels, e colocar a arte como expressão do desejo de emancipação humana, pertencem a uma compreensão da arte, do pensamento e da história que vai muito além de meros rompantes. Devemos salientar que a arte possui a racionalidade da negação. A crítica marxista demonstra que tanto a arte politicamente tendenciosa quanto os exercícios artísticos libertários(oriundos por exemplo das vanguardas do século passado) participam de um grande protesto contra a realidade capitalista. Enquanto jovem pensador rebelde, Marx percebeu a importância da experiência estética no combate ao mundo da alienação.

Marx e o Romantismo

Todo esse papo sobre a participação dos artistas nos destinos da sociedade, encontra uma de suas fontes históricas na figura do artista romântico. Algum leitor mais desavisado pode até se surpreender mas Marx, quando jovem, estava nessa. A questão do Romantismo correr em parte pelas veias do jovem Marx, consiste num fato inevitável entre a maioria dos intelectuais alemães das primeiras décadas do século XIX. Embora caminhe pelo céu e não pelas duras linhas da objetividade, o romântico possui um nítido traço de insubordinação frente aos valores impostos pelas autoridades. De acordo com Michael Lowy, o Romantismo refere-se a um amplo estado de espírito que abrange diferentes tendências políticas e culturais. Pode-se dizer que estas foram disseminadas pela literatura a princípio na Europa, atingindo mais tarde vastos territórios.

Não é raro encontrarmos dentro do Romantismo autores que exprimem um ponto de vista político conservador, que ora olha com as lentes da fantasia para a história, ora nega a própria história ao submergir nas pradarias do ego. Já outras inclinações românticas são reveladoras de uma posição não conformista, de uma atitude que não se sujeita ao mundo estabelecido. Se os olhos fechados caracterizaram a estrada do feudalismo imaginário em que muitos românticos cavalgaram para fugir da civilização industrial, a rota boêmia do escândalo e da contestação da cultura vigente somados ao percurso social de superação da realidade estabelecida através da ação política revolucionária, definiram a contribuição subversiva do Romantismo . O caráter político contestador do Romantismo se desenvolveu em inúmeros casos a partir de manifestações hibridas em que fundem-se a fúria individualista e a participação política, o escândalo no interior das convenções burguesas e o protesto social a favor dos oprimidos. A partir das raízes românticas podemos afirmar que a revolta e a revolução coexistem numa ampla fatia histórica da cultura contemporânea. Nesta fatia situam-se os primeiros românticos, os simbolistas, os surrealistas, os beats etc.

Dentro do chamado Romantismo revolucionário, em particular, nota-se a figura do artista “ consequente “. Ao observar, reconhecer e encontrar-se criticamente com a história, o intelectual romântico é entendido agora enquanto artista engajado. Nem é preciso dizer que o então romântico Marx já sacava que o movimento da mão do escritor segue o mesmo ritmo da revolução. Ao passo que mergulhava na filosofia de Hegel, Marx aspirava ser poeta e dramaturgo. Outrossim, se o autor escreveu episodicamente versos sobre tempestades, o amor e a revolta contra divindades, sua caserna literária definitiva estaria na sátira: será precisamente o componente satírico de Marx que resplandeceria na sua crítica devastadora contra a civilização capitalista, o que caracterizaria em termos estilísticos sua reflexão filosófica sobre economia e história. Existe um interessante movimento dialético na trajetória intelectual de Marx que vai do jovem poeta romântico ao maduro arquiteto do materialismo histórico.

Não há dúvidas de que o Romantismo revolucionário é a escola dos intelectuais rebeldes que realmente contam no século retrasado. Um dos mais significativos exemplos literários disso no mundo encontra-se na poesia de Castro Alves, o condor que busca observar o panorama social do escravista Império brasileiro para em seguida reivindicar que a praça é do povo. O poeta engajou-se no movimento abolicionista, sendo considerado por alguns marxistas como uma espécie de patrono da arte social no Brasil:

“Cai , orvalho no sangue do escravo
,Cai, orvalho, na face do algoz,
Cresce, cresce, seara vermelha
,Cresce, cresce, vingança feroz“

Jorge Amado, o romancista brasileiro que nos anos de 1930-40 empenhou-se na produção de uma literatura revolucionária e popular, escreveu uma poética biografia de Castro Alves, um dos mais importantes poetas brasileiros do século XIX. Em O ABC de Castro Alves(1941), Jorge Amado, ficcionista original e corajoso embora imerso inúmeras vezes no artificialismo estético insuportável do Realismo socialista e nas odiosas distorções históricas promovidos pelo stalinismo, cita uma pergunta feita pelo historiador marxista Edson Carneiro em relação a Castro Alves: “O poeta teria conhecido Karl Marx?“. Na mesma obra Jorge também cita Silvio Romero, que teria classificado a poesia do autor de O Navio Negreiro de “socialista“.

Pode-se dizer que Jorge Amado, Edson Carneiro e Silvio Romero exageram ao suspeitarem que Castro Alves seja marxista ou socialista, não existindo nenhum indício documental de que ele conhecera o materialismo histórico. Entretanto, e isto aproxima Castro Alves de Karl Marx, observa-se em ambos os autores uma poética voltada para os oprimidos, que no caso do primeiro dizia respeito especialmente aos escravizados de origem africana: a partir do século XVI africanos arrancados de suas culturas tornaram-se mão de obra explorada em colônias como a América portuguesa. Foram gerações de oprimidos que viveram(mas sobretudo lutaram/resistiram) entre os períodos colonial e imperial da história do Brasil. Ainda que pioneiro na denúncia da escravidão, Castro Alves não é poupado por alguns críticos: embora revele o sofrimento e a exploração, o poeta não teria retratado o negro como sujeito de suas próprias lutas contra a opressão.

Na associação política entre abolicionismo e república, a geração romântica condoreira de Castro Alves redime historicamente a Revolta dos Alfaiates(1798), a Revolução pernambucana (1817) e a Confederação do Equador(1824). Os sentimentos expressos na poesia de Castro Alves, a bravura dos seus versos, acabam por atualizar as lutas de personagens históricos revolucionários como João de Deus, Cipriano Barata e Frei Caneca. Já Marx, que exprimiu-se sobretudo através da prosa histórica, anteviu no antagonismo entre burguesia e proletariado na Europa, o capítulo final da história das lutas entre opressores e oprimidos. Embora Marx não tenha se dedicado de modo sistemático sobre os problemas da Estética, o autor também traz uma contribuição revolucionária neste terreno filosófico.

Estética e trabalho

Na obra de Marx a estética existe enquanto menção, citação, que integra-se ao conjunto da sua teoria do conhecimento. Em sua obra de juventude Manuscritos Econômico- Filosóficos (1844), Marx realiza a partir da crítica aos limites idealistas da filosofia hegeliana, uma análise da vida humana na sociedade regida pelo capitalismo. Estes cadernos de anotações que seriam publicados postumamente quase um século depois, mostram que a propriedade privada é a origem do trabalho alienado. O produto do trabalho torna-se sujeito, uma força estranha/independente do trabalhador. Perdendo sua energia física o operário perde sua liberdade espiritual, as possibilidades de realizar-se, expressar-se. O empobrecimento material e espiritual, uma unidade indissociável em que a primeira determina a segunda, é o resultado da deformação do trabalho empreendida pelo capitalismo.

Ainda que filosoficamente preso a algumas inclinações que remetem ao hegelianismo de esquerda, Marx já esboça em 1844 uma crítica materialista que desembocaria anos mais tarde na Economia Política. Pode-se dizer, como aponta Adolfo Sanches no seu estudo As Ideias Estéticas de Marx(1965), que nos Manuscritos Econômico- Filosóficos Marx propicia uma análise sobre a essência do estético. Ainda que não fosse o objeto central de sua análise, apoiada antes na reflexão sobre a influência do processo econômico no pensamento filosófico, Marx aciona a dimensão estética.

Os Manuscritos Econômico- Filosóficos tratam da relação peculiar entre sujeito e objeto. A criação, a assimilação artística da realidade, consiste na transformação do objeto. É precisamente a relação dialética entre sujeito e objeto(matéria dada), que gera o objeto artístico e logo explicita a riqueza humana do sujeito, sendo a natureza desta relação estética do homem com a realidade uma relação social. De acordo com circunstâncias históricas específicas, ou seja, de acordo com as relações de produção existentes, o homem produz objetos. No capitalismo a produção de objetos é inseparável da mercantilização da vida. Atualmente, como vem demonstrando autores como Ursula Huws, a produção da mercadoria não consiste apenas no objeto físico mas no processamento de informações. A exploração do trabalhador no regime capitalista refere-se a um mesmo retrato de séculos em que encontram-se tanto o operário que golpeava a bigorna com um martelo no século XIX, quanto o chamado proletário digital que vive a escravização online hoje. Em todas estas etapas produtivas da história do capitalismo, as considerações estéticas de Marx fazem ecoar a reivindicação do sujeito histórico, portanto do produtor consciente, configurando a mais bem acabada crítica ao estado de alienação e pilhagem burguesa do trabalho, seja ele manual ou digital.

Se a construção do homem e a análise da sua própria história explicam-se mediante o trabalho, ou seja a capacidade humana de transformar a natureza de acordo com as necessidades e interesses do próprio homem, a criação artística consiste numa forma de trabalho superior. Liberto da utilidade material mas inseparável das condições materiais de produção(Sanchez), o esforço artístico está enraizado no desenvolvimento da realidade histórica dos povos. Como refere-se Sanchez, Marx rompe com as concepções estéticas predominantes na história da filosofia: o estético como revelação do espírito, ou seja, o Belo transcendente que nega o papel da realidade material pré-existente; e o estético como algo inerente aos objetos, quer dizer, a fonte da beleza estaria nas propriedades do objeto em si. Não tendo sua fonte no mundo ideal e nem na natureza em si, a arte enquanto necessidade de expressão existe a partir das determinações da história.

Se todo e qualquer aspecto do conhecimento é visto pelo marxismo através do processo histórico, o estudo da percepção humana não poderia se dar de outra maneira. O conhecimento sensível fornece dados importantes acerca de uma série de fenômenos e objetos que integram-se aquilo que podemos definir como experiência humana. Entretanto, estes dados precisam ir além dos aspectos superficiais da realidade, daquilo que confere apenas um contato não aprofundado com os elementos externos da natureza. O melhor da crítica marxista iria demonstrar que na imagem sensível de um objeto estão unidos o essencial e o não essencial, o necessário e o casual, o geral e o singular(Rosental E Straks). Tendo como instrumental de análise as leis, a ciência procura conhecer objetos/fenômenos de acordo com a conexão interna e necessária destes. A percepção do mundo através dos órgãos humanos, representa o primeiro nível no processo de conhecimento da realidade. Um nível mais avançado, isto é complexo, diz respeito ao pensamento teórico(Rosental E Straks) . Recorrendo a generalizações, a teoria estabelece um aprofundamento do conhecimento. Porém, isto não seria possível sem o estágio inicial do conhecimento sensível. Historicamente o surgimento das formas de consciência corresponde a um momento no qual o homem, em plena aurora do período Paleolítico Superior, separa-se da natureza por meio do trabalho.

A separação entre sujeito e objeto, e consequentemente a relação dialética entre ambos na historicização da natureza a partir da criação/produção de objetos humanos/humanizados, flagra a formação da consciência humana nas primeiras comunidades de caçadores e coletores. As imagens da arte rupestre exprimem em figuras de animais, a conexão mental entre caça e magia, mistério e representação, economia e estética, ou seja, a materialização do objeto de desejo do grupo: a caça. A produção da imagem nasce assim no contexto ritualístico. Nos primeiros passos da humanidade a arte é um objeto mágico de caráter utilitário.

Beleza e miséria

O conhecimento sensível é uma dimensão da ação transformadora do homem na realidade. As próprias zonas do conhecimento são explicadas através da trajetória do desenvolvimento mental dos seres humanos. Ao passo que outros animais possuem apenas o primeiro sistema de sinalização da realidade(ou seja, só percebem de modo imediato a realidade através da ação do meio externo sobre os órgãos sensoriais ), o homem eleva-se a um segundo sistema de sinalização da realidade(Rosental E Straks). Segundo Marx:

(...) “ O homem apropria-se do seu ser universal de uma maneira universal, portanto, como homem total. Todas as suas relações humanas com o mundo, isto é, ver, ouvir, cheirar, ter paladar, tato, pensar, olhar, sentir, querer, agir, amar, em suma, todos os órgãos comuns, são, na sua relação objetiva, ou seu comportamento diante do objeto, a apropriação desse objeto. A apropriação da realidade humana, a maneira como esses órgãos se comportam diante do objeto, constitui a manifestação da realidade humana “(...).

A este segundo sistema de sinalização corresponde a complexa condição do humano no reino da natureza. O sistema mais complexo de interação com a realidade é constituído pela linguagem e sua capacidade de elaborar conceitos, desenvolver o pensamento abstrato. A experiência sensível com o mundo concreto, a profusão de formas que deitam processualmente sobre o leito da imaginação, assumindo inclusive pelo dado da fantasia novas formas, são intrínsecas ao conhecimento da realidade. Portanto os órgãos dos sentidos possuem necessariamente no contexto humano um caráter histórico e social:

(...) “ O olho tornou-se olho humano quando o seu objeto se tornou objeto social humano, vindo do homem e destinado ao homem. Na prática, os sentidos tornaram-se, portanto, diretamente teóricos. Relacionam-se com a coisa por amor da coisa, mas a coisa é, ela própria, uma relação humana objetiva como ela própria , com o homem e vive versa. A necessidade ou o espírito perderam, portanto, a sua natureza egoísta e a natureza perdeu a sua simples utilidade pelo fato da utilidade ter-se transformado em utilidade humana “(...).

A produção de objetos humanos insere-se num processo de humanização da natureza em que os próprios sentidos humanos são historicizados(Sanchez). Marx afirma precocemente em 1844:

“ O desenvolvimento humano dos cinco sentidos é obra de toda a história anterior. O sentido subserviente às necessidades grosseiras possui apenas uma significação limitada. Para um homem faminto, a forma humana do alimento não existe; só existe o seu caráter abstrato de alimento. Ele poderia existir mesmo na mais tosca das formas; e neste nesse caso, não se poderia dizer em que a atividade do homem ao se alimentar seria diferente da do animal. O homem premido pelas necessidades grosseiras e esmagado pelas preocupações imediatas é incapaz de apreciar mesmo o mais belo dos espetáculos “.

Esta passagem direciona o problema estético para uma questão ética. Se ao longo de sua história o homem desenvolve seus sentidos criando objetos para si e sujeitos para os objetos criados por ele(uma pintura ou um instrumento musical existem para o homem, espectador supremo de suas próprias realizações), qual seria a relevância de falar em Estética ou mesmo em obras de arte quando a exploração do homem pelo homem é a marca central da história das civilizações? O que a arte representa para um homem faminto? O que importa a experiência estética para aqueles que sobrevivem desesperadamente? Marx é um defensor da gratuidade dos exercícios dos sentidos, logo das capacidades humanas de expressão enquanto finalidades em si. Neste sentido a arte seria um fim em si mesma, quer dizer, o florescimento do conhecimento e as riquezas da arte são alcançados a partir das suas leis, daquilo que Marx definiu como “ leis da beleza “. Porém, como atingir a plenitude da expressão artística/do conhecimento sensível quando as relações materiais de produção negam, a partir da propriedade privada e do trabalho alienado, a beleza desinteressada?

Glauber Rocha, principal realizador e ideólogo do movimento Cinema Novo dos anos de 1960, aproxima-se de maneira impressionante das reflexões do jovem Marx em seu longa Deus e o Diabo na Terra do Sol(1964). Ao buscar uma alternativa existencial para a fome, para a miséria no sertão nordestino, o casal de personagens camponeses do filme, Manuel e Rosa, adere ás experiências de rebeldia popular do beatismo e do cangaço. Neste último contexto, quando Manuel integra o bando de cangaceiros liderado por Corisco, observa-se uma cena em que o primeiro esmaga com uma garrafa de cachaça um bolo de noiva. Numa outra cena, Corisco golpeia as teclas de um piano com o cabo de um rifle. A forma do bolo e o espetáculo musical proporcionado pelo piano, não possuem sentido para homens famintos, desprovidos de condições materiais para atenderem suas necessidades básicas. De acordo com Glauber no seu Manifesto da Estética da Fome, de 1965:

(...) “ Pelo cinema novo; o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo(...). Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender , pelo horror, a força da cultura que ele explora “(...).

O espaço subversivo da imagem

A crítica anticapitalista de Marx sugere um paradoxo acerca do sentido social da arte. Para que a atividade artística seja um fim em si, para que o homem possa gozar de uma existência sensual em que o pensamento estético testemunhe a riqueza dos sentidos e a plenitude do conhecimento sensível, se faz necessário converter o conhecimento em instrumento político revolucionário. Para contemplar a gratuidade da arte são necessárias antes transformações históricas que destruam a propriedade privada e o trabalho alienado. Ou seja, a preservação das leis da beleza coexiste com a necessidade de uma prática artística instrumental: o sentido social da arte insere-se na produção de um conhecimento revolucionário necessário para impulsionar a luta política revolucionária.

Entretanto, no tocante aos problemas da produção artística, o pensamento de Marx inclina-se a valorizar a um só tempo o caráter cognoscitivo da arte e o engajamento político das obras de arte. Quer dizer, tanto um artista de esquerda quanto um artista conservador são uteis para a crítica materialista, pois ambos podem produzir obras que apresentam em sua lógica interna os elementos históricos fundamentais da época em que foram criadas. Ambos fornecem o conhecimento do humano. Foi Leon Trotski em Literatura e Revolução(1923) quem apontou para o fato da crítica marxista ser capaz de explicar o significado das manifestações artísticas na história a despeito das posições defendidas pelos artistas:

(...) “ a arte, do ponto de vista do processo histórico objetivo, é sempre um servo social, historicamente utilitário. Encontra o ritmo da palavra necessário para exprimir humores obscuros e vagos, aproxima o pensamento do sentimento, ou opõe um ao outro, enriquece a experiência espiritual do individuo e da coletividade, apura o sentimento, torna-o mais flexível, mais sensível, dá-lhe mais ressonância, aumenta o volume do pensamento, graças á acumulação de uma experiência, que ultrapassa a escala pessoal, educa o individuo, o grupo social, a classe e a nação. E não importa de modo algum se, numa determinada situação, ela aparece sob a bandeira da arte pura ou de uma arte abertamente tendenciosa ‘(...).

Ao longo do itinerário filosófico do materialismo histórico, artistas e críticos marxistas colocaram a questão estética, seu sentido histórico, de diferentes maneiras. Dentro do materialismo histórico é possível encontrar diferentes tendências estéticas. Alguns teóricos defendem o estímulo ao engajamento político do escritor/artista e a crença no potencial artístico/intelectual do proletariado. Em outros momentos, a crítica literária/artística oriunda de Marx e Engels salienta o entendimento de que a arte retrata o desenvolvimento objetivo da história, o que leva a não endossar propriamente a tese política na obra de arte, mas antes uma proposta realista(tipo o romance oitocentista) que carrega internamente a tendência objetiva dos processos sociais no plano artístico.

Esta ambiguidade para uma estética definida no seio do materialismo histórico, culminaria no século XX tanto no Realismo clássico e maleta de Gerog Lukács quanto nas mais variadas correntes da arte revolucionária. Mas lançando luz sobre os problemas da expressão artística nos dias que correm, deve-se considerar as possibilidades dialéticas da imagem no mundo digital. Neste mundo, em que o sentido da visão se impõe sobre todos os outros, o significado revolucionário da arte encontra-se numa produção múltipla, inserida na vida cotidiana das comunidades( nas redes sociais por exemplo) e que não está necessariamente filiada aos preceitos filosóficos do marxismo(o que não impede por sua vez que o marxismo submeta a uma crítica severa os artistas que tentam fugir da objetividade histórica).

Temos o marxista de carteirinha e o artista rebelde que não dá muita bola para as soluções teóricas do materialismo histórico. Para ambos, que possuem em mãos forças produtivas digitais por onde inquietações artísticas são expressas, o capitalismo é insuportável. Tanto um quanto o outro desejam atuar sobre a percepção da coletividade. Esta postura, que se propõe a arrancar as pessoas da apatia, pressupõe uma ação no campo da imagem: o desaforo, o escândalo, a abertura de horizontes/temas e a recusa da moral burguesa coexistem artisticamente com a crítica/ denúncia social e o engajamento político. De acordo com as diversas soluções estéticas de enfrentamento a imagem revela um espaço nada confortável, de dilaceração da ideologia dominante e de desconstrução do corpo educado pela sociedade burguesa.

A arte que se quer revolucionária acompanha de maneira independente a intensificação das lutas sociais. Esta arte realiza a interpenetração entre o corpo coletivo e o espaço das imagens(Benjamin), provocando enervações naquele corpo(Benjamin). Este trabalho negativo da arte, comum a um marxista e a um artista que não quer saber de rótulos políticos, complementa-se dentro da militância cultural com a educação do proletariado que deve apropriar-se dialeticamente da cultura do passado.

A arte na história das civilizações

A crítica marxista é unânime ao constatar que foram as classes dominantes que depositaram ao longo da história barreiras para a completa fruição estética, fazendo da arte expressão da divisão social do trabalho e dos sistemas ideológicos destas mesmas classes que controlam o Estado. A posição crítica sobre a história obriga o materialista histórico, nas palavras de Walter Benjamin, a olhar com distanciamento e desconfiança o conceito de cultura. Escreve Benjamin em suas Teses Sobre o Conceito de História(1940):

(...) “ Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bem culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento pois todos os bens culturais que ele vê tem uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como á corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie “(...).

A servidão coletiva na Antiguidade Oriental, a escravidão na Antiguidade Clássica, a servidão feudal durante a Idade Média, a escravidão moderna na época do Colonialismo e a exploração da classe operária na era Imperialista( que ainda está rolando!) testemunham que a cultura é historicamente inseparável da barbárie: a arquitetura de palácios e templos ocultam as mãos anônimas que os ergueram. Obras de arte registraram muitas vezes massacres durante expansões imperiais. É por estas e outras que a arte esteve a serviço do deleite e dos interesses das classes proprietárias, dos regimes políticos que fizeram da cultura luxo e patrimônio de poucos. As classes em luta realizam através da sensação, do conhecimento sensível da história , um desvio político. O espaço cultural para as inclinações sensuais(Terry Eagleton) permite com que as classes dominantes realizem a inserção da lei e da moral estabelecida nos corações e nas mentes das massas(Marx). Impérios e povos conquistadores deixaram registros estéticos , monumentos históricos , após as batalhas ganhas.

Pirâmides, templos, esculturas de deuses e reis/imperadores, palácios, colunas, arcos de triunfo, cerimonias e espetáculos públicos, pinturas religiosas, narrativas históricas/literárias de fundo religioso e político-militar, harmonizaram ao longo da história a percepção das massas com a existência de um modelo político de Estado, legitimando e reproduzindo ao longo dos tempos a memória histórica das vitórias das classes que o controlam. O Arco de Tito, por exemplo, registra o saque dos romanos em Jerusalém no dia 28 de agosto do ano 70. O Exército romano invasor, que se considerava expressão de uma cultura superior e proclamava aos quatro ventos que os romanos eram os senhores da Terra, queimou, destruiu e pilhou as riquezas do Templo de Javé . Atualmente muitas histórias de super heróis realizam, a partir da fantasia nascida dos quadrinhos, a apologia bélica do Exército norte americano, capaz de queimar países inteiros. Todavia, um futuro incerto é anunciado para o império norte americano, visto que China, Rússia, Índia, Irã e Turquia são uma ameaça oriental para a hegemonia ocidental de séculos.
Se a tradição cultural(que envolve a transmissão das obras de arte) nos provoca horror, cabe ao materialista histórico construir uma tradição cultural revolucionária capaz de se comunicar com a classe trabalhadora. A posição histórica do proletariado exige uma relação específica com a arte.

Arte e os interesses históricos do proletariado

Perante a histórica mobilização ideológica dos recursos estéticos empreendida pelas classes dominantes, o proletariado representa em contrapartida e, aos olhos de Marx, a classe que poderá ressignificar o papel histórico da arte dentro de uma cultura liberta da dominação de classe. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels assinalam o peso da organização do trabalho na vida cultural:

(...) “ A Concentração exclusiva do talento artístico em alguns indivíduos e o seu aniquilamento nas grandes massas – que resulta desta concentração- é um efeito da divisão do trabalho. Se mesmo, em certas condições sociais, cada um pudesse vir a ser um pintor excelente, isso não impediria que cada um também fosse um pintor original, de maneira que, também neste caso, a diferença entre o trabalho “ humano “ e o trabalho único “ vem a dar no absurdo. Com uma organização comunista da sociedade termina, em todos os casos, a sujeição do artista à estreiteza local e nacional- que provém unicamente da divisão do trabalho – e a sujeição do individuo a uma determinada arte, o que faz dele, exclusivamente, um pintor, um escultor etc. Por si só, estas qualificações já exprimem suficientemente a estreiteza do seu desenvolvimento profissional e a sua dependência da divisão social do trabalho. Numa sociedade comunista não há pintores, mas quando muito, homens que, dentre outras coisas, fazem também pintura “(...).

Marx e Engels fazem com que conceitos como genialidade artística caiam por terra na medida em que são as condições de produção, a divisão social do trabalho, os obstáculos históricos para o desenvolvimento da personalidade artística no seio da coletividade. Todos os homens seriam potencialmente artistas, sendo o comunismo o contexto em que as potencialidades artísticas podem desabrochar. Na sociedade comunista os ruídos, a exaustão e o esgotamento das energias seriam inexistentes e, respectivamente, substituídos por melodias, cores e o gozo da criação. Trotski aprofundaria o raciocínio de Marx sobre as condições culturais na sociedade comunista do futuro com incomparável vigor poético e inabalável energia utópica:

(...) “ A construção social e a auto educação psicofísica tornar- se- ao duas faces de um só processo. E todas as artes – Literatura, Teatro, Pintura, Escultura, Música e Arquitetura – darão a esse processo uma forma sublime. Mais exatamente, a forma que revestirá o processo de edificação cultural e de auto educação do homem comunista desenvolverá ao mais alto grau os elementos vivos da arte contemporânea. O homem tornar-se-á incomparavelmente mais forte, mais sábio e mais sutil. Seu corpo tornar-se-á mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa “(...).

Colocando a arte/ literatura no solo concreto da história, destacando o sentido de objetivação do homem na criação artística, Marx nos fala das leis da beleza ameaçadas pelo capital. Submetendo todas as necessidades humanas ao dado da sobrevivência e da aquisição do dinheiro, o capitalismo converte o valor estético não em realização do homem, mas em expressão da sua própria alienação:

(...) “ Shakespeare destaca no dinheiro suas propriedades: 1- é a divindade sensível, a transmutação de todas as propriedades humanas e naturais no seu contrário, a confusão e a inversão universal de todas as coisas(...) do dinheiro, tudo isso provém da sua essência enquanto ser genérico que se aliena, exterioriza e se vende, o dinheiro é o poder alienado da humanidade “(...).

Por não responder aos desígnios do desenvolvimento da economia capitalista, a arte só poderia existir neste sistema enquanto mercadoria. A história do capitalismo é pois a subordinação do conjunto da produção espiritual aos imperativos da esfera do lucro. Já no Manifesto Comunista(1848) , Marx e Engels referem-se ao processo de conversão da cultura em mera mercadoria. Um mundo alienado que emerge das congelantes e desumanas águas do lucro, condena a vida humana ao “ pagamento em dinheiro “, responsável por transformar o poeta em mero assalariado. É Marx ainda quem define posteriormente na obra História Crítica do Pensamento Econômico, a condição do escritor no sistema capitalista:

(...) “ O escritor é um trabalhador produtivo não porque produz ideias, mas porque enriquece o editor que publica suas obras; consequentemente, é produtivo enquanto trabalhador assalariado de um capitalista “(...).

A mercantilização das obras de arte e a conversão das mercadorias em obras de arte, evidenciam uma cultura alienada. Marx não sistematiza mas sugere uma estética humanista a partir do entendimento da arte enquanto trabalho criativo. Perante o processo de desumanização verificado no trabalho alienado, na polarização entre trabalho e capital, a arte surge como forma avançada de trabalho, uma força que reivindica as potencialidades criativas do humano: o atrofiamento da imaginação no trabalho alienado choca-se com a atividade criadora da arte. Marx também constata que sendo o capitalismo hostil “ a certos ramos da atividade espiritual “, a própria arte torna-se igualmente uma atividade alienada na sociedade capitalista.“ Muitos são os artistas que atuam através de meios de produção que não controlam mas sim os controlam. Segundo Brecht:

"Essa falta de clareza reinante entre músicos, autores e críticos sobre sua situação tem consequências terríveis e que são pouco observadas. Pois, ao imaginar que estão de posse de um aparato que, em realidade, os possui, acabam por defender um aparato sobre o qual não tem mais controle, que não é mais, como ainda acreditavam, um meio para os produtores, mas que se tornou um meio contra eles".

Este estado de coisas, esta situação constrangedora que perverte a necessidade da arte, acabaria por aprofundar o traço da revolta e do inconformismo social entre escritores e artistas do mundo contemporâneo. Imersa na realidade profana da modernidade e afetada pelo antagonismo de classe entre burguesia e proletariado, a arte não poderia esquivar-se das questões levantadas pela revolução socialista. Estas questões ainda não foram solucionadas na medida em que o capitalismo ainda está de pé, reprimindo inclusive as potencialidades artísticas da população. Para todos os efeitos, existe um duplo papel a ser desempenhado no front da cultura: trabalhar para que o proletariado se aproprie e participe da construção de uma tradição artística revolucionária e, ao mesmo tempo, produzir aquelas imagens libertárias que atuam sobre a percepção da coletividade. Num mundo imagético a dialética possibilita que a imagem se instale como negação revolucionária. Desmascarar, transgredir, informar, construir: estes elementos devem ser considerados para que as “leis da beleza” entrem algum dia em vigor.


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