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Crônica | Chuvas de verão, escolas alagadas e o caos generalizado do ensino público no Brasil

sábado 18 de março de 2023 | Edição do dia

Poderia ser apenas mais um dia normal na rotina de uma escola da grande São Paulo, e de fato, o que ocorre nesses dias de fechamento do verão, não espanta, nem deveria surpreender ninguém. Todos os anos acontece da mesma forma. As chuvas torrenciais, que caem praticamente todos os dias nessa época, são conhecidas por todos, ainda que, ano após ano, tornem-se cada vez mais arrebatadoras. Este ano, não diferente dos demais, os grandes jornais já anunciaram suas sentenças ao clima diante das inundações, desabamentos, deslizamentos e tragédias. Dizem que se a culpa não é do clima, então é da população pobre, com acesso negado aos direitos mais básicos para sobrevivência, formada em sua maioria por negros e negras, na negligência racista de nossa sociedade, que não possuem nem mesmo casas seguras para se abrigar, improvisando moradias em barracos, nas encostas de morros, em áreas de risco. Toda grande mídia se esforça para camuflar o óbvio: nenhum desses desastres é natural e a culpa não é do clima, nem da população. É do capitalismo!

Nas escolas da cidade de Osasco, antes das 7 da manhã já se encontram a postos as professoras, prontas para pegar suas turmas de alunos em fila no pátio, de onde partem conduzindo crianças sonolentas pelos corredores em direção às suas respectivas salas de aula. Entre as filas de turmas, uma delas parece ser a mais desanimada, e um pequeno aluno me dá a mão perguntando: “Professor, hoje vai ter aula na quadra?”. Antes mesmo que eu volte o rosto pra lhe responder, uma colega já logo exclama por detrás: “Mas é claro que não, não está vendo que a quadra está molhada?”, e com uma frustração já acostumada, nos dirigimos também para nossa sala. Na EMEF Tobias Barreto, no bairro do Ayrosa, a cobertura da quadra pouco adianta. Com a escola construída sobre uma enorme ladeira, basta uma chuva um pouco mais forte para que boa parte d´água escorra para dentro da quadra no fim do terreno. Um problema que está longe de ser o pior nessa escola, que, ainda que esteja distante de figurar entre as piores escolas da rede, também conta com diversos problemas estruturais, com professores e profissionais da educação mal pagos e exaustos, cumprindo duplas jornadas de trabalho para pagar suas contas através de seus empregos, num sistema de ensino atacado pela lógica neoliberal em que professores terceirizados realizam atividades no contraturno dos alunos nos espaços apertados que lhes sobram, apesar das tentativas da gestão para acomodá-los numa tenda espremida no fundo do estacionamento, enquanto o dinheiro público é transferido para iniciativa privada sem maiores questionamentos - e faltam quadras, faltam canos, faltam calhas... Foi nessa escola que nessa semana tivemos mais um dia desses que, apesar de diferentes do normal, não geram maiores surpresas, e são incorporados entre os flagelos cotidianos de nossas vidas.

No fim da tarde, mais uma vez, um trovão dá o tom do que ainda estaria por vir. Uma chuva daquelas! Do corredor que leva à sala dos professores, avistei para fora do portão uma “corredeira” que se formava com as águas que vinham das escadarias e agora transbordavam para dentro do prédio em que estávamos. Alguns dos meus colegas empurravam de volta, com seus rodos pegos às pressas, a água que invadia o recinto. Não demorou para que o pátio ficasse todo alagado, parecendo uma enorme piscina de barro. Não houve maiores estragos para nós que nos acostumamos com as goteiras nos dias de chuva, e que já vimos no início de 2020 o teto do refeitório desabar com a força da tempestade, felizmente, se é que assim podemos dizer, sem fazer nenhuma vítima. O que ocorreu ontem certamente irá se repetir enquanto a prefeitura não providenciar a adequada canalização para o escoamento da água - algo pouco esperado pelos funcionários da manutenção e da limpeza que, em suas péssimas condições de trabalho, se tornam responsáveis por limpar toda a lama que desaguou -, e suscitou em nós reflexões mais profundas sobre as condições atuais do nosso ensino público.

Vejam como são as coisas. Assim como as tragédias evitáveis e obscurecidas pelo capitalismo são chamadas de “desastres naturais”, na tentativa de normalizar a irracionalidade deste sistema incapaz de preparar nossas condições até mesmo para aquilo que faz parte do calendário anual como característica inerente da estação do ano na região, as debilidades extremamente comuns nas escolas públicas também são normalizadas, mas se tornam mais evidentes nestas épocas de chuvas, que em São Paulo e em diversas outras regiões do país, não escapam das consequências da alteração climática causada pelo capitalismo, e são cada vez mais agressivas em sua periodicidade e no volume arrebatador de precipitação.

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As turmas escolares que possuem em média 30 crianças, muitas delas acometidas pelos mais diferentes problemas sociais, contam com alunos de inclusão, apesar de não haver funcionários suficientes que possam oferecer apoio aos professores que durante as aulas, muitas vezes, se sentem mais como “cuidadores” que educadores, sem condições materiais para realização adequada de sua prática. E por falar em falta de funcionários, um terço das crianças na escola em que leciono está sem aulas de Educação Física, por não termos professores para todos na rede de ensino, que tem na liderança de sua prefeitura Rogério Lins, filiado ao Podemos, partido reacionário que deu força aos brutais ataques contra os direitos trabalhistas do governo Bolsonaro, e que atualmente disputa espaço dentro da frente ampla governamental.

Se extrapolarmos o apagão do ensino público para além dos municípios, os trabalhadores da educação e estudantes, sobretudo nas escolas estaduais, enfrentam uma batalha pela revogação da reforma do Ensino Médio que está precarizando o trabalho docente e a qualidade da educação dos alunos. Esta reforma foi aprovada durante o governo golpista de Temer - fato que parcialmente explica o porquê deste crápula ter encerrado seu mandato com recorde de rejeição -, mas a conjuntura ainda estaria por piorar com Bolsonaro, cujo governo foi responsável pela implementação do Novo Ensino Médio. Sua corja composta por Damares Alves e Abraham Weintraub foi arquiteta de uma verdadeira devastação ideológica à frente dos ministérios de Direitos Humanos e da Educação, respectivamente, aparelhando-os com as vis ideias da extrema direita e suas propostas nefastas de homeschooling e “Escola Sem Partido”, que se somaram à devastação que representou nosso governo anterior, possibilitando ao neoliberalismo da chapa Lula-Alckmin uma maior aceitação entre a esquerda que corretamente queria se ver livre do bolsonarismo. Eis aqui, talvez, a maior contradição para nós, professores preocupados em sepultar de vez toda essa corrosão das tempestades cíclicas que o capitalismo nos impõe com suas extremas direitas mundo afora: após a saída de Bolsonaro, o bolsonarismo continua se fortalecendo dentro do governo Lula-Alckmin, que troca “favores” com estes golpistas no Congresso, no Senado e nos governos estaduais e municipais. São exemplos disso as figuras de Lira, Pacheco e, mesmo no poder Executivo, somente o União Brasil cacifou 3 ministérios para extrema direita, numa composição com espaço até para Daniela Do Waguinho, vinculada às milícias do RJ. Essa era a esperada trégua pros dilúvios de nossos tempos?

Desta forma, o PT se propõe a manter o legado dos mais brutais ataques aos trabalhadores aplicados pelos governos golpistas anteriores, e é assim também na educação. Estamos vendo em curso a continuidade do Novo Ensino Médio, enquanto os professores e estudantes, e nisso nos somamos nós, do Movimento Nossa Classe Educação, deixam claro que não aceitarão consultas fakes de um governo que se recusa a revogar esta reforma integralmente. Política que, no estado de SP, corrobora a deflagração da precarização na qual vivem os educadores, implementada por João Dória e décadas de gestão tucana, e aprofundada pela asquerosa extrema direita do governo de Tarcísio de Freitas - que, contrariando a suposta expectativa de ser uma versão “moderada” do bolsonarismo, já demonstrou sua firmeza em seguir o legado de ódio aos professores, sendo capaz inclusive de renomear a futura estação da Linha 2 do Metrô para homenagear um bandeirante assassino e racista como Fernão Dias ao invés do educador Paulo Freire, e garantindo a continuidade da Nova Carreira docente, mais uma brutalidade contra o ensino público. São milhares de professores categoria O, humilhados por seus contratos precários e desempregados por não conseguirem atribuir aula. A imensa maioria dos alunos na rede pública de ensino não se encontram em condições para se preparar para ingresso nas universidades públicas do país, também atravessadas por um processo de desmonte e privatização. Muitos, em uma situação um pouco menos pior, recorrem às faculdades particulares, de qualidade de ensino duvidosa, onde se endividam através de programas de financiamento estudantil como Prouni e Fies, que são aportes gigantescos de dinheiro público responsáveis por expandir e consolidar imensos monopólios privados do ensino superior, dentre os quais a Kroton-Anhanguera se tornou o maior do mundo. Esses setores, com ações abertas nas bolsas de valores contando com forte participação de capital imperialista, tiveram como principal fomentadoras as políticas educacionais nos mandatos anteriores do PT, com Fernando Haddad à frente do MEC, que, apesar da insuficiente expansão das vagas nas universidades federais por meio do Reuni, contribuiu fortemente para o atual caos generalizado de nossa educação, incapaz de promover a classe trabalhadora em nosso país a condições mais dignas de existência.

Das águas que inundam, emerge a urgência das nossas necessidades mais urgentes para agora. Construirmos nossa luta pela educação de forma independente do governo Lula-Alckmin e de sua frente ampla com a extrema direita e os grandes burgueses, apoiada pelo imperialismo. Não podemos esquecer, em nenhum instante, que além de fortalecer esses imensos monopólios privados de ensino, Haddad foi em 2007 o ministro do plano de metas “Compromisso Todos Pela Educação”, fruto do maior movimento empresarial a abocanhar as suntuosas verbas das política educacionais, subordinando a base curricular nacional aos interesses do grande capital, tendo como seus principais representantes o Bradesco, o Itaú, o Unibanco, a Telefônica/Vivo, a Natura e a Fundação Lemann. É muito claro que o atual governo não está ao lado dos trabalhadores, e é por isso que é incapaz de garantir as revogações das reformas do Ensino Médio, trabalhista e previdenciária. O que está em evidência é um projeto de permanência das condições de um Brasil de capitalismo dependente atrasado, agroexportador, preparando a juventude para trabalhos “uberizados” e terceirizados cada vez mais degradantes. Algo que demonstra que as cenas de diversas escolas alagadas são sintomáticas do caos generalizado do sistema nacional de ensino a serviço do insaciável lucro burguês.

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É justamente por isso que nossa luta pela educação só pode ser efetiva se buscarmos unir toda classe trabalhadora, que compõe também as comunidades escolares, sendo mães, pais e familiares dos nossos alunos, e os estudantes com independência de classe, lutando pela efetivação de todos os professores e profissionais do ensino que hoje enfrentam a precarização e a terceirização do trabalho em suas funções. As centrais sindicais devem ser pressionadas por nós para que rompam seus laços com governos municipais, estaduais e federais, cessando sua paralisia para mobilizar as categorias junto às comunidades escolares, por uma educação à serviço da nossa classe contra a exploração capitalista, a exemplo das lutas de classe no Peru e na França, cada qual com suas lições que demonstram, de forma mais viva que nunca, que os jovens e trabalhadores não estão dispostos a aceitar pagar com a precarização de suas vidas pela crise dos capitalistas.




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