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Como a pandemia ampliou a vigilância estatal e de empresas sobre as pessoas e seus dados?

Luiz PustiglioneDoutorando em educação pela UFSC e professor da Rede estadual de SC

domingo 9 de agosto de 2020 | Edição do dia

Em tempos de pandemia do novo coronavírus, até mesmo quem não era muito apegado às tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) se viu obrigado a aprender a utilizá-las para todo tipo de atividades, desde o trabalho em casa/remoto até as relações pessoais e uma série de outras atividades.

Foi assim que rodas de bar, aulas, reuniões de trabalho, de grupos de estudos, do movimento e quase tudo que fazemos cotidianamente, acabou no zoom, no hangout ou no meet do Google, no facebook, no instagram etc. Diante dessa transformação repentina da realidade, alguns debates e assuntos que antes eram restritos a pequenos grupos de “entendidos” tem a sua popularização como demanda URGENTE!

Algumas perguntas que estão no ar e precisamos conversar sobre: sabemos contra o que/quem estamos lutando quando falamos nesses assuntos? Google, Apple, Facebook (que é proprietário também do WhatsApp e do Instagram), Amazon e Microsoft, são aliados na garantia do isolamento social durante a pandemia?

No presente artigo pretendemos dar conta dessas e de outras perguntas ao redor desses temas tão presentes e delicados e que ganharam maior relevância com a pandemia e a massificação do trabalho remoto.

O Grande Irmão está no seu bolso e nas nuvens! Sua vida privada nem é tão privada assim...

Nos meios que debatem segurança/vigilância virtual, direitos dos usuários da internet, softwares livres e outros temas ao redor destes, já há uma nitidez sobre o processo de privatização profunda da internet através da centralização de serviços e estruturas nas mãos de poucas empresas.

Mas, se você não faz parte do time de entendidos vamos pensar em algumas armadilhas que muita gente não consegue enxergar:

1 – Seu plano de acesso à internet, muito provavelmente, tem acesso ilimitado a determinados sites ou aplicativos (no caso de acesso por celulares). Você é, portanto, direcionado a dar preferência ou só acessar a internet através destes. Em geral as empresas envolvidas nesse tipo de oferta são Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft (GAFAM).

2 – Com as “facilidades” de páginas “pré-montadas” e aplicativos “gratuitos”, essas mesmas empresas também monopolizam a hospedagem e boa parte da publicidade dos diferentes comércios e prestadores de serviços, forçando, nesse caso, as duas pontas (usuário e fornecedor) a trafegar somente pelos seus espaços privados.

3 – Além dos serviços ao usuário final (e individual), essas empresas também hospedam sites e dados em seus poderosos servidores físicos (conhecidos como “a nuvem”) espalhados ao redor do mundo. Agora, para além desses serviços físicos, a Google também trabalha na instalação de seus próprios cabos subaquáticos para trânsito total ou preferencialmente privado de dados – diferente da forma atual de tráfego nos cabos existentes.

Portanto, apesar dessa aparência de liberdade que a internet tem, há uma essência fortemente privada e pouca gente ganhando muito dinheiro com ela. Há cada vez menos espaços - para trafegar, hospedar dados e sites, fazer pesquisas/buscas – que não sejam controlados pelo GAFAM e a tendência não é que isso se extingua no curto prazo, ao contrário.

Essas imposições, sejam as transformadas em ofertas de operadoras de telefonia ou aquelas postas em contratos para fornecimento de todo tipo de serviço relacionado ao funcionamento e usabilidade da internet, servem então, para restringir quaisquer possibilidades alternativas que por ventura venham a surgir e permitiram que se formasse e ainda permitem que se fortaleçam verdadeiros monopólios que, rapidamente, conseguem absorver qualquer tipo de concorrência, seja adquirindo-a ou forçando sua falência/obsolescência. A situação é tão acintosa – até mesmo para os padrões do capitalismo – que os CEO’s do GAFAM foram convocados juntos para uma audiência pública no parlamento dos EUA para se explicarem sobre a ausência de concorrência e o crescimento exponencial dessas empresas.

Obviamente que não devemos depositar qualquer esperança de que o parlamento dos EUA ou que qualquer país imperialista vá atacar os monopólios constituídos em várias áreas. Não ia ser a internet que iria forçar uma alteração do processo metabólico do capital através de reformas parlamentares.

Há uma passagem citada por Lenin em “Imperialismo, fase superior do capitalismo” na qual há sólidos elementos a serem considerados nesse debate: “Nem em todos os ramos da indústria existem grandes empresas; por outro lado, uma particularidade extremamente importante do capitalismo chegado ao seu mais alto grau de desenvolvimento é a chamada combinação, ou seja, a reunião numa só empresa de diferentes ramos da indústria, que ou representam fases sucessivas da elaboração de uma matéria-prima (por exemplo, a fundição do minério de ferro, a transformação do ferro fundido em aço e, em certos casos, a produção de determinados artigos de aço) ou desempenham um papel auxiliar uns em relação aos outros (por exemplo, a utilização dos resíduos ou dos produtos secundários, a produção de embalagens, etc.). “A combinação - diz Hilferding - nivela as diferenças de conjuntura e garante, portanto, à empresa combinada uma taxa de lucro mais estável. Em segundo lugar, a combinação conduz à eliminação do comércio. Em terceiro lugar, permite o aperfeiçoamento técnico e, por conseguinte, a obtenção de lucros suplementares em comparação com as empresas ’simples’ (isto é, não combinadas). Em quarto lugar, fortalece a posição da empresa combinada relativamente à ’simples’, reforça-a na luta de concorrência durante as fortes depressões (dificuldade nos negócios, crise), quando os preços das matérias-primas descem menos do que os preços dos artigos manufaturados”.

Guardadas todas as proporções históricas e as diferenças das indústrias analisadas por Lenin e as do GAFAM, o que pode-se notar com clareza é que essas últimas são uma expressão inequívoca desses dois elementos postos na passagem: da monopolização e da combinação.

Exemplos práticos da monopolização da internet: a entrega (paga) de dados do Estado de SC ao Google!

O contrato assinado no primeiro dia do mês de abril de 2020 entre o Estado de SC e o Google, previsto em mais de R$13 milhões e que já teve mais de R$6,5 milhões empenhados prevê, na prática, que todos os dados, sites, e-mails, sistemas (incluídos os de prevenção de desastres da defesa civil, por exemplo) do Estado passarão a ser administrados pela Google. Ou seja, informações sensíveis e que, em muitos casos, são sigilosas ao público em geral e para a maior parte dos servidores públicos estaduais, serão administradas pela empresa. Significa que, numa situação hipotética, mas possível, a empresa decida não fornecer mais os dados que determinada secretaria estadual precise para dar conta de certa demanda, esses servidores não terão acesso aos dados!

Ocorre que todos esses serviços que serão prestados agora pela Google já eram antes executados. O CIASC é uma empresa pública estatal (ou seja, órgão do Estado) que existe há muitos anos e, além do reconhecimento pela competência dos serviços prestados, é (ou pelo menos já foi) um importante espaço de organização dos trabalhadores e que reunia parte significativa da vanguarda do SINDPD/SC.

Por trás do marketing da “melhor solução” que o Google representaria para justificar a assinatura desse tipo de contratos está, na realidade, uma opção política nítida: fortalecer uma megaempresa em detrimento de fazer mais concursos e melhorar as condições de trabalho e infraestrutura do CIASC. É o Estado burguês cumprindo seu papel de “turbinar” a classe dominante enquanto golpeia a classe antagônica. Esse é o cerne da questão e, por isso, inclusive, que pode ocorrer às custas de informações sensíveis e serviços essenciais não só ao próprio Estado, mas, principalmente, para a população, como no caso da prevenção de desastres naturais, só pra ficar no mesmo exemplo e num que é sensível para um território que já sofreu diversos como Santa Catarina.

Esse é, no entanto, apenas UM exemplo entre MUITOS possíveis se formos analisar contratos estabelecidos Estado a Estado no Brasil e se amplia ainda mais quando pensamos no número de países que estão submetendo-se e reforçando essa monopolização da internet e dos serviços ligados às TIC’s.

O Marketing importa

Se você não sabia das informações mais básicas e elementares mencionados no texto anterior, mas se preocupou com algumas delas e agora se pergunta, talvez um tanto apavorado: será que há alguma solução pra fugir desse funil tão largo na entrada (dado o número enorme de pessoas que usam a internet) e tão estreito na saída e evitar o fortalecimento das empresas do GAFAM? Felizmente a resposta é sim, mas, infelizmente, não é tão fácil assim.

Há o que se chama de software livre que existe em todo tipo de formato e utilidade e que não necessariamente é gratuito. Seus códigos-fonte (“mecanismos” que fazem um programa ou página da internet funcionarem) são abertos e qualquer pessoa com domínio de programação pode estudá-lo e modificá-lo, ou seja, qualquer eventual problema em um código de um software livre – como a inclusão de meios maliciosos de espionar os dados do usuário – pode ser descoberto, denunciado e revertido com relativa facilidade.

Aqui é importante entender a diferença do software livre do software proprietário, mas “gratuito” que você baixou, instalou e usa no seu computador ou celular. Afinal de contas, você nunca se perguntou como se sustentam as empresas e os empregados destas que disponibilizam seus produtos para serem usados “gratuitamente” (mas, sem disponibilizar o código-fonte que pode permitir que se conheça exatamente o software que está sendo usado)? Aquela velha máxima que diz que “não existe almoço grátis” também vale para esse caso!

O que esses códigos-fonte não divulgados pelos proprietários dos softwares e aplicativos gratuitos escondem são mecanismos para capturar seus dados enquanto você utiliza o programa e vendê-los para quem tenha interesse. E tem muita gente interessada nos seus dados, afinal, conhecendo tão bem o seu comportamento através do seu celular que te acompanha até mesmo na hora de dormir, fica muito mais fácil manipular (ou pelo menos influenciar) suas compras, suas escolhas de leituras e, até mesmo o voto nas eleições ou referendos populares.

O caso do Brexit, mas também as eleições de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil, tornaram-se notórios casos de manipulação da opinião pública (ou pelo menos de parte decisiva dela) através da utilização desse tipo de artifício tecnológico baseado em informações capturadas através dos mais diferentes sites e aplicativos que você usou e segue a utilizar! Os documentários “Privacidade Hackeada” (disponível no Netflix – que também é parte desse pequeno aglomerado de empresas proprietárias de softwares que geram milhões em lucros) e “Sujeito a Termos e Condições” dão uma boa dimensão do problema através desses exemplos citados, em especial sobre o Brexit e a atuação da Cambridge Analytics, uma empresa cuja única matéria-prima eram seus/nossos dados. É fundamental entender também o quanto é fácil para essas empresas capturarem esses dados, uma vez que nós mesmos aceitamos os “termos e condições” que os entregam fácil e gratuitamente a eles quando instalamos e utilizamos determinados softwares e aplicativos.

É, portanto, vendendo a ideia de que oferecem um produto gratuito e com o layout e usabilidade mais acessíveis a todas as pessoas – através de publicidade pesada e agressiva, à qual os desenvolvedores de software livres, em geral, não têm – e contando com a falta de conhecimento da ampla maioria das pessoas sobre esses assuntos, que as empresas do GAFAM conseguem pagar seus caros almoços.

Há uma dificuldade expressiva para que iniciativas baseadas em softwares livres popularizem-se ao nível de alcance do GAFAM e não há qualquer perspectiva positiva possível se pensarmos em avançar individualmente para conseguir burlar os massivos softwares proprietários. Aos trabalhadores, usuários comuns dessas tecnologias, não será facilmente acessível o conhecimento necessário para esse enfrentamento. Mas, do ponto de vista coletivo, já passou da hora de as organizações de trabalhadores levarem, também, esses debates a sério e procurarem produzir esse conhecimento, bem como dedicar parte de sua militância a estudar esses assuntos e propor saídas coletivas ao conjunto da classe, assim como fazem com tantos outros temas.
Esse movimento será decisivo para superar a atual inevitabilidade da utilização de alguns desses softwares proprietários e possibilitar a crítica, bem como a autocrítica, em relação ao uso indiscriminado destes, dando assim, uma solução compatível com a importância econômica, social e política que tem o problema.

Se, no Programa de Transição, Trotsky dava grande importância à necessidade do conjunto da classe conhecer os livros de contas e entender como funciona uma fábrica, afinal, “ss operários não possuem menos direitos que os capitalistas em conhecer os "segredos" da empresa, do truste, do ramo de indústria, de toda a economia nacional em seu conjunto”, nos dias de hoje, podemos afirmar que segue válida a afirmação de que “o “segredo" comercial é sempre justificado, como na época do capitalismo liberal pelas exigências da concorrência”. Podemos dizer que, no caso do GAFAM o tal “segredo comercial” são os códigos-fonte desses softwares proprietários mencionados ao longo desse texto.

“A abolição do segredo comercial" é o primeiro passo em direção a um verdadeiro controle da indústria.” (Trotsky)

A pandemia aumentou o alvo nas costas da educação

Se a Educação à Distância já se consolidava como uma tendência a ser amplamente majoritária, em especial em algumas áreas como a formação de professores, a pandemia do novo coronavírus pode ser a oportunidade que o setor precisava para acelerar o processo e lucrar ainda mais.

Alguns dados ajudam-nos a entender do que estamos falando: “Das novas matrículas privadas no Ensino Superior brasileiro, em 2018, 46% foram na modalidade EaD. A expansão dessa modalidade foi tão forte no setor privado que, faltaram somente 20.970 matrículas para ultrapassar as públicas presenciais. No caso das Licenciaturas, das 1.628.676 matrículas públicas e privadas 816.888 (50%) eram na referida modalidade.

Com a imposição do distanciamento social e a suspensão das aulas presenciais já ocorreu uma debandada às centenas de milhares de estudantes do ensino presencial das instituições privadas e as universidades públicas com seu “ensino” remoto também deverão impor uma evasão histórica em um breve espaço de tempo se a resistência estudantil organizada não der conta de resistir.

A invasão dessas empresas do GAFAM na área educacional que já era, portanto, altamente relevante, passa a ter um espaço de ampliação ainda maior com esse arremedo de EaD que se vulgarizou chamar de “ensino” remoto e que já é ofertado para uma grande parcela dos matriculados em cursos presenciais.
Considerando, então, que um dos mais lucrativos negócios dessas empresas são os dados que os usuários permitem que elas acumulem e utilizem sobre si, essa expansão sobre a educação tende a render excelentes dividendos para elas. Em recente pesquisa, disponível no site educacaovigiada.org.br há dados que comprovam que “70% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação no Brasil estão expostas ao chamado "capitalismo de vigilância", termo utilizado para designar modelos de negócios baseados na ampla extração de dados pessoais via inteligência artificial para obter previsões sobre o comportamento dos usuários e com isso ofertar produtos e serviços.”
Portanto, a resistência contra o ensino remoto não é somente uma luta em torno de um projeto pedagógico diferente do pretendido pelo capital para os jovens, que pretende “aproveitar a oportunidade” para enxugar a universidade a adequá-la, assim como a escola básica, ao “novo normal” – que de novo não tem nada, vide o projeto do Future-se ou da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Ensino Médio Inovador que são bem anteriores à pandemia. É uma luta contra um projeto que pretende eliminar a universidade como a conhecemos e diminuir substancialmente os “gastos” com a manutenção de escolas públicas para oferta de ensino presencial.

Por motivos bastante conhecidos, esses problemas começam por atingir aos filhos da classe trabalhadora e, entre estes, aqueles pertencentes aos setores mais vulneráveis como cotistas e bolsistas, entre os estudantes e trabalhadores terceirizados, entre os trabalhadores. Enganam-se, porém, aqueles que podem imaginar que os mais nefastos reflexos dessa situação não chegarão a atingir servidores docentes e técnico-administrativos que já vêm seus salários ameaçados pelos projetos de emenda constitucional em tramitação na câmara e no senado federal.

É sabido que nas escolas e universidades há uma forte tradição de mobilização e resistência contra todo tipo de ataques e seríamos injustos com diversos processos se tentássemos listar apenas alguns para ilustrar esse argumento. Com essa consideração somada ao fato de que o jogo ainda está em andamento e que é sempre no terreno da luta de classes que se decidem os rumos reais da coisa, torna-se fundamental debatermos e construirmos as mais diversas iniciativas para enfrentar o projeto do capital para a educação e que pretende utilizar-se de uma emergência sanitária global para impor-se em definitivo.

Por fim, mas, não menos importante: é fundamental que a classe trabalhadora comece a travar essas batalhas de forma conectada como elas de fato se apresentam na realidade. As lutas dos trabalhadores ligados às plataformas digitais (entregadores e motoristas de aplicativos, por exemplo), servidores públicos estáveis, trabalhadores terceirizados e de estudantes de diversos níveis de ensino, estiveram poucas vezes na história da humanidade tão conectadas como agora.

O inimigo é enorme e nos obriga a saber lutar diversas lutas ao mesmo tempo. É exatamente por isso que é fundamental entender quais são os reais problemas a serem superados (e seus tamanhos) para que possamos elaborar um programa de transição e formas concretas de dar conta da tarefa que já era iminente e agora torna-se URGENTE!




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