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Como surgiram os bailes soul no Brasil?

Renato Shakur

Como surgiram os bailes soul no Brasil?

Renato Shakur

Os anos 1970 sem sombra de dúvida foram marcados por importantes processos da luta de classes pelo Brasil inteiro. Logo vem na memória as imagens do ascenso operário de 1978. Centenas de milhares de operários e operárias se enfrentando contra a ditadura militar. Mas se nas fábricas lutavam contra seu inimigo, na cultura esse embate não seria diferente. Frente ao racismo e ao reacionarismo do regime militar, os trabalhadores passaram a organizar seus primeiros bailes soul.

Não dá pra compreender o surgimento dos bailes soul no Brasil em meados dos anos 1970 sem olhar para as mudanças importantes na geopolítica internacional e na economia mundial, isto é, sem olhar para os impactos da crise de superprodução naquele período e a crise de hegemonia dos Estados Unidos. A crise de superprodução, que teve uma expressão importante na crise do petróleo de 1973 e a derrota dos EUA na guerra Vietnã, debilitaram a principal potência capitalista à época e isso teve um impacto decisivo no Brasil.

Com a retração do mercado mundial, a expansão de capital de países capitalistas centrais para o Brasil e os subsídios para expansão da indústria de bens de consumo duráveis, o crescimento econômico brasileiro cessou e com ele o “milagre econômico”. Além disso, processos de luta de classes na Ásia, África e na América Latina e as fortes greves no proletariado europeu e norte americano, mostrava que a classe trabalhadora surgia como sujeito político independente com seus métodos de luta para dar uma resposta à crise econômica mundial. Os EUA decidiram naquele momento mudar sua política para a América Latina, adotando uma tática que que abria espaço a uma transição pactuada do regime com medo de que a luta de classes pudesse virar um elemento decisivo no Brasil.

A legitimidade do regime militar estava baseada no crescimento econômico do país, quando este acabou, a classe média deixou de apoiar o regime militar e a classe trabalhadora passou a organizar sua resistência através das oposições sindicais e comissões de fábrica. O ano de 1973 é marcado por essa inflexão na mobilização da classe operária com seu métodos clássicos de luta como greves, paralisações, piquetes, etc. Além disso, foi nesse momento em que os trabalhadores não apenas questionaram o elemento fundamental para o regime militar que era o arrocho salarial, eles também passaram a questionar outros elementos bastante valiosos para o regime como o racismo. Esses trabalhadores passaram a sentir a identidade e cultura de outra forma, com o fim do milagre econômico, eles também passaram a questionar a democracia racial. Os bailes soul surgidos a partir desse momento foram um fenômeno nacional e de massas que representava um setor que não suportava mais a carestia de vida e o racismo. O surgimento dos bailes soul foram expressão de uma inflexão subjetiva de massas nos trabalhadores brasileiros.

Em Porto Alegre, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Brasília, Pernambuco e Maranhão surgiram bailes black ou como no caso deste último, a radiola [1]. Os bailes soul enquanto um movimento de massas e que representava uma reivindicação coletiva da identidade negra colocou na ordem do dia o questionamento sobre o racismo no regime militar. A carestia de vida, somados ao cotidiano de violência e ao racismo perpetrado pela ditadura, também impulsionou setores de massa a questionarem o racismo, reivindicando a cultura e a identidade negra. Sob a dura repressão dos militares, os bailes soul e as radiolas surgiram e exigiam dos frequentadores e organizadores um certo nível de auto-organização e enfrentamento. Muitos quando parados pela polícia na entrada, saída ou durante o baile eram agredidos, presos e muitas vezes seus cabelos cortados. Mas mesmo assim, todo final de semana os trabalhadores e trabalhadoras estavam lá. No Rio de Janeiro, num final de semana, os bailes soul chegavam a reunir 1,5 milhão de pessoas [2]. Se nos processos de reorganização da vanguarda, sobretudo a metalúrgica, no final dos anos 1970, o proletariado mostrava uma força imparável que pôde iniciar o processo do fim da ditadura, na cultura eles também mostraram toda sua força e construíram, talvez, o maior movimento da cultura negra até os dias de hoje, os bailes soul.


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FOOTNOTES

[1Radiolas são as caixas de som que formam um “paredão” de caixas, semelhantes aos sound systems jamaicanos. Era com elas que os trabalhadores e trabalhadoras maranhenses podiam dançar nas festas que tocavam reggae durante a ditadura militar.

[2Ver; “1976: Movimento Black Rio”, Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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