Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Da mobilização à revolução, um livro para pensar a perspectiva socialista no século XXI

Josefina L. Martínez

Entrevista com Matías Maiello

Da mobilização à revolução, um livro para pensar a perspectiva socialista no século XXI

Josefina L. Martínez

Essa semana foi publicado o livro Da mobilização à revolução (Edições IPS, 2022) simultaneamente na Argentina e no Estado Espanhol. O livro de Matías Maiello combina a análise dos processos mais relevantes da luta de classes dos últimos anos com a pergunta sobre a operacionalidade do programa socialista na atualidade. É atravessado por uma série de debates com autores como Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Donatella Di Cesare, Eric Blanc, Vivek Chibber, Bhaskar Sunkara, entre outros. Em meio a esses debates, recupera a noção de “programa transicional” sistematizado por León Trótski, mas que, como analisa o livro, vem de antes no marxismo. Como o autor aponta, o objetivo do livro é convidar ao debate sobre a perspectiva do socialismo hoje. Entrevistamos Matías Maiello sobre algumas das teses que percorrem seu livro.

Na introdução do livro você aponta que uma das questões estratégicas centrais para o marxismo é a fusão entre o movimento operário e o socialismo. Em que sentido propôs abordar essa discussão no livro?

Em Considerações sobre o marxismo ocidental, Perry Anderson disse que boa parte do século XX esteve marcado pela divisão entre a teoria socialista e a prática da classe trabalhadora. A burocratização da URSS e a consolidação do stalinismo foram fundamentais nisso. É um problema que agora se coloca em termos muito diferentes, mas que ainda persiste.

É preciso reatualizar esse debate para devolvê-lo a um lugar central da teoria e da prática do marxismo. O Muro de Berlim caiu, veio a ofensiva neoliberal, mas o novo é a queda do “muro de Wall Street” com a crise de 2008. Desde então, o panorama mundial tem mudado em um ritmo cada vez mais acelerado. A guerra da Ucrânia e suas derivações são um dos índices mais claros disso.

Novos fenômenos políticos estão se desenvolvendo à esquerda e à direita do espectro político. A discussão sobre as “novas direitas”, “pós-fascismos”, “neo-fascismos” etc. ganhou muito peso nos últimos anos e abordo esses problemas no livro. Porém, existe muito menos reflexão teórica sobre os processos de mobilização e sobre as revoltas que tem atravessado o cenário internacional há mais de uma década, que vão desde a “Primavera Árabe”, em 2011, até os processos de revolta dos últimos anos no Chile, Colômbia, Equador, Bolívia, EUA, Estado Espanhol, Hong Kong, Myanmar etc. Soma-se esse ano o Sri Lanka; o que está acontecendo no Irã é outro exemplo.

Este considero que é um tema central. Lênin em Que fazer? dizia que o elemento espontâneo é a forma embrionária do consciente, mas também que quanto mais poderoso é o boom espontâneo das massas, mais se faz necessário o desenvolvimento dos elementos conscientes, ou seja, de fortes organizações revolucionárias. Bom, estamos nesse problema: como o marxismo pode se colocar a altura da energia que o movimento de massas está começando a utilizar na luta de classes.

O livro começa com essa reflexão sobre a atual luta de classes, a relação entre revolta e revolução. Gostei especialmente de uma parte, quando analisa que acaba se configurando, por um lado, uma espécie de ecossistema de reprodução dos regimes burgueses em crise com forças de direita e extrema-direita e, por outro, neorreformismos e populismos de esquerda. Você se pergunta sobre as formas de evitar que os processos de luta de classes sejam dissipados ou canalizados na institucionalidade e dar lugar a novas revoluções no século XXI. Poderia desenvolver essa ideia?

A questão é que os processos de revolta, com a massividade que tiveram, com a força que demonstraram, não se desencadearam em novas revoluções. Quando falo de ecossistema político, minha intenção é retratar um tipo de mecânica política que vemos em muitos processos. Sem ir muito longe, ocorreram mobilizações enormes no Chile a partir de 2019, contra Piñera e o regime pós-pinochetista. Em 12 de novembro de 2019 ocorreu uma paralisação geral histórica. Ela foi parcial, mas paralisaram, por exemplo, a maioria dos portos. Houve piquetes nas periferias e muitos enfrentamentos com os carabineiros [polícia chilena, NdT] e o exército. As direções sindicais e dos movimentos sociais cumpriram um papel fundamental para salvar Piñera, e o regime lançou acordos de paz e uma constituinte totalmente manipulada. O neorreformismo de Boric emergiu com força e chegou à presidência. O resultado é que os problemas levantados por aquela revolta de 2019 seguem hoje sem resolução. Este é um exemplo entre muitos.

Portanto, existe um problema fundamental, que é como romper essa relação circular entre os processos de mobilização e de institucionalização. Para abordá-lo precisamos analisar muito bem esses processos, fazer uma análise concreta de suas características, dos novos problemas que levantam. Por que prevalece a dinâmica de revolta? A que responde a disposição geográfica dos pontos de concentração desses processos? Que características a ocupação do “espaço público” adota? Que forças operam para que os movimentos se expressem de determinada maneira? E que problemas políticos e estratégicos tudo isso coloca para a luta por uma perspectiva socialista e revolucionária na atualidade?

Donatella Di Cesare, em um livro muito interessante, O tempo da revolta – sobre o qual escrevemos com vocês no Ideas de Izquierda e que retomo no meu livro – levanta que muitas vezes, no pensamento político, a relação entre revolta e revolução é vista como uma antinomia, e nisto tem algo de certo. Não é preciso existir uma abordagem estática do problema, nem pensar que toda revolução começa necessariamente como revolta. A questão é como problematizar a passagem da revolta à revolução no século XXI.

Uma tese que atravessa meu livro é a de que a questão da hegemonia da classe trabalhadora é central para romper esse círculo entre mobilização e institucionalização. Obviamente, isso leva a muitas outras perguntas, começando por como desenvolvê-la nas condições atuais após anos de ofensiva neoliberal, restauração capitalista etc. São problemas cada vez mais atuais e urgentes. Não apenas pela guerra e por todas as consequências de um capitalismo que nos leva ao abismo social e à destruição do planeta, mas também porque a classe trabalhadora começa a ter maior protagonismo. Na Europa viemos da histórica greve do transporte no Reino Unido e está ocorrendo agora, na França, um processo de greve muito importante, com centro nas petroleiras, que está mudando a situação de conjunto; nos EUA existe um profundo processo de organização e luta protagonizado pela chamada “geração U”, de Union (sindicato em inglês) etc. Fenômenos como esses parecem indicar que estamos no início de um novo empoderamento da classe trabalhadora.

Os primeiros capítulos polemizam com as respostas que três diferentes tradições teórico-políticas da esquerda contemporânea dão a essas questões…

Sim, no livro esses temas são desenvolvidos ao redor de uma série de debates com três aproximações que agrupo, grosso modo, como a “autonomista”, a “populista” e a “social-democrata”. O que atravessa todas essas polêmicas é a pergunta sobre a operatividade do programa socialista para a prática política na atualidade, ligada aos recentes processos da luta de classes e a uma recuperação que procuro fazer da noção de “programa transicional”, sistematizada por Trótski em sua época.

Na polêmica com Laclau e Mouffe, referências do populismo de esquerda, você desenvolve vários debates. Quero te perguntar sobre um ou dois para dar uma ideia da discussão. Uma questão muito interessante que levanta é sobre como concebem a articulação das demandas. Para Laclau, trata-se fundamentalmente de uma articulação simbólica e, ali, sua realização efetiva perde importância. Qual é a diferença com a forma como Trótski aborda essa questão?

Este é um ponto importante. Em termos gerais, podemos dizer que a abordagem de Laclau e Mouffe passa, em boa medida, por articular discursivamente aquilo que, em minha opinião, está dividido historicamente, produto dos resultados da luta de classes e das formas que a dominação capitalista adquiriu nas últimas décadas. Em um primeiro momento, eles utilizam esse enfoque para fundamentar um projeto de “democracia plural radical”. A partir de 2002, com A razão populista, Laclau o desenvolveu em função de uma perspectiva populista. Levado ao terreno dos fenômenos políticos atuais, podemos dizer que expressa, na teoria, uma abordagem bastante similar com os chamados “populismos de esquerda”, por exemplo, os que se desenvolveram na América Latina a partir do início do século ou os “neorreformismos”, como Podemos e Syriza, entre outros.

Na obra de Laclau, em particular, há uma forte presença de Trótski, não apenas por sua biografia política e sua passagem pela “esquerda nacional” de Abelardo Ramos, mas também teoricamente. Em geral, analisou muito suas referências a Gramsci mas analisou pouco as que faz à obra de Trótski, que se referem a aspectos muito importantes de sua teoria. No livro, problematizo a interpretação da obra de Trótski que Laclau realiza, de sua teoria da revolução permanente e do desenvolvimento desigual e combinado. Porém, o faço com uma intenção específica, a de comparar o enfoque de Laclau quanto a articulação das demandas, com a que desenvolve Trótski no Programa de Transição.

Voltando a sua pergunta, para Trótski, diferentemente do que sugere Laclau, as demandas não se esgotam em sua dimensão simbólica, mas muitas delas, sobretudo se são capazes de impulsionar a mobilização coletiva, contêm uma dimensão que podemos chamar “existencial”, que diz respeito às condições da vida e, em alguns casos, a própria sobrevivência física (por exemplo, frente a uma guerra ou a uma crise) daqueles que sustentam as demandas. Ou seja, enquanto para Laclau o problema se circunscreve a uma articulação simbólica das demandas que possam se cristalizar em uma identidade popular, Trótski dá peso central às vias para a “realização integral e efetiva” das demandas. Por que isso é fundamental? Por muitas razões. Entre elas, porque vistas desde o ponto de vista de sua realização efetiva, existem demandas que podem ser articuladas e outras não, porque respondem a interesses de classe contrapostos. Mas também porque, se a questão passa pela realização efetiva das demandas, ela te leva a perguntar pela articulação das forças sociais e políticas que são capazes de realizá-las e pelas considerações estratégicas que tudo isso traz consigo.

Interessa-me que você explique um pouco a crítica que faz a Laclau e Mouffe quando apontam que o campo político não se divide – ou não se deveria dividir – segundo circunstâncias ou critérios de classe e que consideram que, no terreno das democracias ocidentais, os alinhamentos são puramente contingentes.

A dicotomização do espaço político em contextos de polarização é evidente, o problema, obviamente, está em quem divide quem. Em certo sentido, a dinâmica da articulação puramente contingente de demanda é comum em momentos de relativa estabilidade dos regimes burgueses, ou em situações que permitem, como mínimo, certa administração do antagonismo suficiente para manter a ordem social. O problema são as crises, sejam políticas, econômicas, sociais etc.

Um exemplo que Laclau gostava de usar é o da Argentina nos anos 1970. Em seus termos, ao redor do significante “Perón retorna” se produzia uma acumulação cada vez maior de demandas insatisfeitas, era um significante que unia o “campo popular”. Bom, quando Perón efetivamente voltou, já não era um significante vazio, mas se tornou presidente e não pôde absorver individualmente essas demandas, e é nesse ponto que o peronismo foi disputado entre a direita peronista e os Montoneros. A tese de Laclau chega até aqui. Porém, o que esses exemplos mostram é que, ainda que seja possível articular simbolicamente esses interesses contraditórios, eles não são articuláveis historicamente. Por isso o Pacto Social fracassou, por isso a Triple A foi criada e, logo após a morte de Perón, com a crise, ocorreu a primeira greve geral política contra um governo peronista em junho-julho de 1975. Ou seja, em determinado momento, a articulação populista teorizada por Laclau mostrou seus limites e irrompeu o problema de classe. Quando chega esse momento, a questão é se existe um programa alternativo e se foi possível construir previamente uma organização revolucionária capaz de estar à altura da crise.

Podemos dizer que, com a crise, chega o momento da verdade. Em particular, é nas situações revolucionárias que os antagonismos políticos adquirem sua maior intensidade, quando irrompe o sentido mais profundo das demandas. Um traço distintivo das revoluções é a divisão das classes dominantes. Essa divisão, mais cedo ou tarde, chega às classes intermediárias e à própria classe trabalhadora com expressões diversas. Que essa divisão do espaço político não seja apresentada comumente no início dos processos como uma fratura que segue claramente as linhas de divisão entre interesses de classe, não expressa o caráter contingente das próprias classes, mas sim a fortaleza relativa das lideranças e organizações políticas. Os atores sociais e políticos resultantes estão longe de serem “indeterminados”. Ou melhor, o fato de se apresentarem como “indeterminados” desde o ponto de vista de classe é o objetivo de certas estratégias políticas.

O ponto de partida do marxismo revolucionário é, ou deveria ser, lutar para “ordenar” o cenário político nos termos de interesses de classe, ou seja, de luta de classes. A construção de uma vontade coletiva a partir desse ângulo não é voluntarista. O que, a partir de uma perspectiva a-histórica, aparece como pura “contingência” é, na realidade, que em determinados momentos, os fatores mais subjetivos, como os partidos, os programas, as estratégias, adquirem um peso decisivo. Pode-se dizer que a arte da política no marxismo revolucionário consiste em atuar sobre a discordância entre os tempos da economia, da política e da subjetividade de massas e dos setores de vanguarda, para estabelecer pontes, para ligar essas diferentes temporalidades através de uma abordagem estratégica.

Me interessa recuperar a abordagem do Programa de Transição, porque é pensado justamente para isso. Busca estabelecer pontes entre as demandas que surgem do atual estado do movimento de massas e as consignas que são “necessárias” para que a classe trabalhadora e os setores populares possam enfrentar um determinado cenário de crise.

Vamos deixar por aqui a polêmica com Laclau, assim podemos seguir com outros temas. No caso da corrente neokautskista, que tem um centro de elaborações na revista Jacobin, a negação da hegemonia operária vem de outro ângulo. Aqui retornam à separação de programa mínimo e programa máximo para um futuro indeterminado. Em base a que eles fundamentam essa posição?

Há alguns anos existe uma espécie de revival de Karl Kautsky. Um de seus impulsionadores foi o acadêmico norte-americano Lars Lih, com quem discutimos bastante no livro que escrevi com Emilio Albamonte Estratégia socialista e arte militar. Em Da mobilização à revolução me concentro especialmente em alguns temas desse revival, relacionados com a problemática do programa socialista. Essa espécie de “giro Kautskiano” ocorre especialmente nos Estados Unidos, ligado à ideia de construir uma social-democracia “das origens”. Vem sendo motorizado por autores como Eric Blanc, Bahskar Sunkara e Vivek Chibber, pela revista Jacobin, que é vinculada ao DSA (Democratic Socialist of America), uma organização de esquerda que ganhou influência nos últimos anos, mas que está cada vez mais integrada ao Partido Democrata.

Com isso quero dizer que não é uma discussão puramente teórica. Tem um correlato na esquerda norte-americana, em um momento em que ocorrem fenômenos como o chamado “socialismo millennial”, movimentos como o Black Lives Matter e há novos ares no movimento operário com a “geração U”, que mencionamos antes. Ao mesmo tempo, é um laboratório para muitos debates que vão além desse caso específico.

Nesse cenário, se dá essa nova demanda da divisão do programa marxista em um programa mínimo e um máximo, que remonta ao Programa de Erfurt da Social-democracia alemã do final do séc XIX. Em que consiste concretamente essa divisão? Bem, colocado de forma muito sucinta, em que, por um lado, o programa se limita a consignas mínimas e democráticas para a prática cotidiana. Por exemplo, em determinado momento era o sufrágio universal, a igualdade de direitos para as mulheres, a educação laica e gratuita, direitos trabalhistas, a jornada de 8 horas etc. E cuidado que “mínimas” não significa que sejam fáceis de conseguir (para conseguir as 8 horas, os trabalhadores alemães primeiro tiveram que fazer a revolução de 1918), mas que não vão além do capitalismo. Por outro lado, as consignas que vão diretamente contra a propriedade privada capitalista ficam completamente relegadas no programa “programa máximo”.

Mesmo alguns autores com quem debato no meu livro ligam essa divisão à ideia de que é preciso levantar um programa de “reformas não reformistas”, uma ideia que André Gorz levantou na sua época. No caso de Peter Frase, ele o vincula à ideia de “renda básica universal”. Nancy Fraser, por exemplo, associou-o ao programa de Bernie Sanders, com demandas muito sentidas como o salário mínimo de 15 dólares por horas, “Medicare para todos”, matrículas gratuitas nas universidades, liberdade reprodutiva etc. Mas a questão central é que o fazem sob a consideração de que hoje não se pode falar de socialização dos meios de produção porque seria uma retórica esgotada ou, no mínimo, inoportuna.

O problema é que o vínculo entre determinadas demandas “mínimas” e o questionamento da propriedade privada capitalista não é uma questão meramente retórica. Ela abre as possibilidades de realização efetiva daquelas demandas “mínimas” diante de um capitalismo em crise cada vez mais voraz, que é uma máquina de produzir desigualdade, de destruir o planeta, de provocar novas guerras. Supõe-se que limitar o programa a “demandas mínimas” o faria mais “realista”, mas não é isso que ocorre. Isso é provado na atualidade pelas poucas ou nulas reformas substanciais que foram conquistadas a partir dessa abordagem, apesar de que, em muitos países, e os Estados Unidos não são a exceção, tiveram processos de mobilização muito importantes no último período.

Você aponta que, diferentemente de Laclau, para quem a chave é a construção de uma identidade popular sem delimitação de classe, para os neokaustskianos, a questão da identidade de classe é pensada no sentido oposto, como algo dado. O que isso quer dizer?

Na tradição neokautskiana, a política de classe acaba sendo uma espécie de reflexo da consciência atual do trabalhador médio. Mas as classes são heterogêneas e estão dilaceradas por antagonismos internos. Cada classe é composta por diferentes setores, razão pela qual um partido pode se apoiar sobre diversas frações de classe. Esse é um ponto fundamental que torna relativa a autonomia de uma política socialista.

As situações podem ser mais ou menos evolutivas, mais ou menos revolucionárias, e isso determina se um programa transicional pode ter uma função mais “propagandista”, semeando certas ideias, ou mais “agitativa” e orientada para uma ação imediata. Mas a questão é, em todos os casos, se a articulação aponta para uma política hegemônica ou a nega, se a luta ideológica e programática tem também como correlato práticas hegemônicas que visem superar o que Gramsci descreveu como a “grande política” da burguesia, que consiste em limitar todo o movimento à “pequena política” da rotina sindical ou dos movimentos sociais ou eleitorais em si.

O problema das abordagens que se limitam ao programa “mínimo” é que o “sujeito” termina sendo, implícita ou explicitamente, o Estado capitalista. Porque nenhuma hegemonia pode surgir da soma de programas mínimos, muito menos em um cenário como o atual, com a fragmentação da classe trabalhadora, em que as burocracias sindicais são garantias dessa fratura de classe e em que se desenvolveram novas formas de burocratismo ligados aos “movimentos sociais”.

A diferença com a abordagem do programa transicional é que este último aponta para a vinculação direta do programa à articulação de uma força social e política capaz de realizá-lo sem se deter nas formas de institucionalização que o Estado capitalista busca impor. Tanto que Trótski dizia diretamente que a função de todo o programa de transição era preencher os espaços entre as condições atuais e os sovietes do futuro.

Indo aos debates sobre o Programa de Transição, você aponta que este não é um livro de receitas de consignas para ser aplicado em qualquer hora e lugar, mas uma determinada abordagem sobre como articular o programa que tem, ao menos, uma função dupla. Como isso funciona?

Para não me estender muito, vou direto para um exemplo, muito atual e que desde o PTS temos dado muita importância. Um primeiro bloco do Programa de Transição se refere à “escala móvel de salários e escala móvel de horas de trabalho”. Por um lado, a “escala móvel de salários” está associada à necessidade de garantir o aumento automático dos salários segundo o aumento dos preços, e se opõe às duas políticas monetárias da burguesia: a inflacionária e a de “estabilização” monetária. Na Argentina e em muitos países, os governos estão debatendo entre ambas. Por outro lado, a “escala móvel de horas de trabalho” visa acabar com o desemprego e evitar a degradação da classe trabalhadora. Ou seja, que o trabalho disponível seja repartido entre todos os trabalhadores e trabalhadoras. Nosso companheiro Pablo Anino calculou que, com a redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais, somente nas 12 mil maiores empresas da Argentina poderiam ser criados quase um milhão de novos postos de trabalho. Aplicado a toda a economia se poderia acabar com o desemprego.

Trótski, ao explicar essas posições aos dirigentes do SWP norte-americano, dizia que “a escala móvel das horas de trabalho”, na realidade, era o modo de distribuir trabalho na sociedade socialista, onde o número total de horas de trabalho se divide pelo número de trabalhadores. Porém, acrescentou que apresentar dessa forma poderia parecer abstrato para os trabalhadores. Por isso defendia que era necessário defendê-la como uma solução diante da crise. É o programa do socialismo, dizia, mas apresentado de forma popular e sensível. Neste sentido, Trótski dá muita importância à articulação discursiva do programa, para apresentá-lo da forma mais popular possível, mas o faz sem deixar de levar em conta os problemas de fundo aos quais o movimento operário enfrenta e cuja solução excede em muito o programa mínimo.

Retomando o debate sobre a dicotomização do campo político e o caráter das consignas. Você toma o exemplo da Revolução Russa para explicar que sempre há uma disputa pelo significado dela. O que significavam as consignas de paz, pão e terra? Que disputas políticas ocorriam em torno de seu significado?

Sim, é todo um tema que analiso bastante no livro. Não dá para desenvolver tudo aqui, mas me parece importante ressaltar que todas as questões que fomos conversando sobre o programa transicional não são questões que se resolvem no vazio. Há determinadas consignas que podem condensar todo um conjunto de antagonismos que atravessam a sociedade, como era o caso de “paz, pão e terra” na Revolução Russa. Mas o papel que vão cumprir não está determinado de antemão. Os bolcheviques deram uma enorme luta política em torno dessa consigna para que adquirisse o significado que finalmente teve. Sempre existe uma tendência, que podemos chamar de “tendência Laclau”, de esvaziá-las de significado sob o argumento de que é a única forma de transcender o particularismo.

Embora haja um nível em que é essencial o empobrecimento do sentido de uma demanda capaz de aglutinar todas as outras, é aí que o problema começa. A questão é desenvolver o conteúdo particular, histórico, de cada uma das demandas na situação concreta, expor as condições para sua realização e extrair todas as conclusões que decorrem dela. Nessa luta pelo sentido, a abordagem transicional pode cumprir um papel muito importante. Para dar um exemplo mais próximo, aqui na Argentina “fora FMI” é uma consigna central. Bem, mas o significado não é o mesmo se na consciência de setores de massa essa consigna é associada a alguma espécie de calote (a burguesia fez isso em 2002 e acabou destruindo o salário, gerando mais pobreza e confiscando os pequenos poupadores), o que está associado à necessidade de nacionalizar os bancos privados, o comércio exterior etc., como parte de um programa de fundo para que os capitalistas paguem pela crise.

A luta pela hegemonia da classe trabalhadora consiste, em boa medida, na capacidade de um partido socialista revolucionário de reconfigurar o espaço político em termos de antagonismos de classe, de luta de classes, o que significa, ao mesmo tempo, romper as articulações alternativas de projetos hegemônicos das classes dominantes. Os modos de utilização das consignas e sua articulação, com o fim de expor os discursos do adversário e fazer compreensíveis os próprios objetivos, é uma arte política sobre a qual a abordagem transicional tem muito o que dizer.

Há muitas coisas que ficaram para trás que queria te perguntar, tanto sobre os debates na III Internacional sobre o programa de transição, que mostram que a ideia de um programa de transição vai muito além da elaboração do próprio Trótski, como sobre os desenvolvimentos que faz sobre o fascismo, muito atuais frente aos debates que a ascensão da extrema-direita vem gerando em vários países. Para não nos estender, melhor deixar para outra oportunidade e, em todo caso, volto a recomendar a leitura do livro. Para encerrar, gostaria de voltar à posição de Trótski quando diz, sobre o programa de transição, que “é o programa do socialismo, mas em uma forma muito popular”. Que relevância tem isso no momento atual em que alguns setores começam a perceber cada vez mais que o capitalismo leva a desastres e catástrofes, mas, ao mesmo tempo, ainda é mais fácil pensar no fim do planeta do que no fim do capitalismo.

A questão é que com programas limitados a rendas universais, economias populares, planos de reconversão ecológica nos limites do capitalismo, ou proposições utópicas de que o socialismo virá automaticamente graças ao avanço da tecnologia, não vamos a nenhum lugar. Não se pode “humanizar” o capitalismo. Hoje, a guerra está de volta na Europa, com consequências que vão muito além da Ucrânia. O militarismo das grandes potências está na ordem do dia. Voltou-se a discutir abertamente a utilização de armas nucleares. O capitalismo é cada vez mais contraditório com a vida, com a sociedade e com a natureza. O que precisamos urgentemente é, como diria Benjamin, ativar o freio de emergência. O Programa de Transição foi concebido originalmente para isso, para ativar o freio de emergência frente a um capitalismo que nos leva ao desastre.

Os atuais enormes avanços da ciência e da cooperação do trabalho, que sob o capitalismo estão colocados em função de aumentar os lucros, arrancados da mão do capital poderiam contribuir para liberar as faculdades criadoras do ser humano e conquistar uma relação mais harmônica com a natureza. Mas, para isso, precisamos atualizar a perspectiva socialista no século XXI, a de um socialismo que seja a partir de baixo, baseado na auto-organização da classe trabalhadora que, diferentemente de um século atrás, hoje é majoritária em grande parte dos países e pode aglutinar em torno dela o conjunto dos oprimidos. Um socialismo que tem que ser revolucionário porque nenhuma classe dominante na história renunciou a seus privilégios pacificamente. E tem que ser internacionalista, entre outras coisas, porque, como mostrou o século XX, a ideia do “socialismo em um só país” não leva a lugar nenhum senão à derrota.

Agora a direita diz que todos são socialistas ou comunistas. Para Trump, Obama era socialista; para Bolsonaro, Lula é comunista; para Milei, Larreta é socialista; Chávez chamou, em determinado momento, o estatismo nacionalista burguês de “socialismo do século XXI”. Nada disso é socialismo, mas faz alguns anos que o socialismo voltou a aparecer como um fantasma que percorre o mundo, como dizia o Manifesto Comunista. Quem pensa que isso é uma coincidência me parece estar errado. O problema é se conseguimos fazer esse fantasma ganhar corpo, se somos capazes de construir a vontade coletiva que encarne essa perspectiva. A intenção deste livro é contribuir para esse debate.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[Revolução Permanente]   /   [Socialismo]   /   [Trotskismo]   /   [Comunismo]   /   [Programa de Transição]   /   [Revolução]   /   [Revolução Russa]   /   [Marxismo]   /   [Teoria]

Josefina L. Martínez

Madrid | @josefinamar14
Comentários