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SEMANÁRIO

Demissões e baixa de salários: os usos da crise e a “doutrina do choque”

Esteban Mercatante

Demissões e baixa de salários: os usos da crise e a “doutrina do choque”

Esteban Mercatante

Com o dia após a quarentena na mira, os empresários pensam em menos salários e mais exploração As imposições de “proibições” não impedem os ataques.

“Somente uma crise, real ou percebida, abre espaço para uma mudança verdadeira”, afirmava Milton Friedman no prefácio da reedição de 1982 do Capitalismo e liberdade. Uma citação que virou célebre provavelmente desde a edição da Doutrina do choque, de Naomi Klein. Ainda que Friedman se referisse às irrupções da magnitude de eventos capazes de quebrar a “inércia, uma tirania do status quo” - que em sua opinião caracterizava os “arranjos privados e sobretudo os governamentais” para impor grandes empreendimentos, como foi seu estabelecimento das políticas neoliberais como o novo status quo que reinou de forma verdadeiramente tirana nas últimas décadas - as patronais de todo o mundo estão lhe conferindo, desde o começo da pandemia do COVID-19, um sentido mais prosaico. O colapso da economia, cujo alcance real é ainda uma conjectura, mas que com toda certeza superará o que foi vivido na a crise da década de 1930 (o pior momento até agora na história do capitalismo), está impulsionando as empresas à descarregaram desde já os custos sobre os assalariados. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 195 milhões de empregos poderão sofrer as consequências neste segundo trimestre do ano, nada menos que 7% da força de trabalho mundial.

Nos EUA, estamos vendo cabalmente o verdadeiro significado da flexibilização trabalhista que tanto idolatram os liberais em todo o planeta. Em apenas três semanas, 17 milhões de solicitações de seguro desemprego foram registradas, algo que não ocorreu nesse ritmo em nenhum momento da história. “Em vez de salvar os empregos, os EUA estão se apoiando em seguros desemprego reforçados para proteger os trabalhadores demitidos da catástrofe econômica”, afirmam Emmanuel Saez e Gabriel Zucman em um artigo do The New York Times. Contrastam isso com o que ocorre na Europa, onde os países pagam as empresas para que sustentem seus empregados; mas já vimos lá durante a Grande Recessão de 2008-2010 como, depois da crise que derivou em um salto no endividamento público, a austeridade agravou a recessão e continuou a destruição do emprego. Não existem motivos para pensar que o mesmo (mas em escala muito maior) não vá acontecer agora. No Brasil, que já é objeto de inveja das patronais argentinas pela reforma trabalhista implementada por Michel Temer em 2017, Jair Bolsonaro tentou ir um passo além e assinou um decreto que autorizava as empresas a suspender o contrato de seus trabalhadores por até quatro meses sem salário, ainda que precisou dar marcha ré em 24 horas. Mas regulamentou outro que permite a redução da jornada e do salário ou a suspensão dos contratos por dois meses, com remuneração através do seguro desemprego.

Ainda que a partir de algumas fábricas ideológicas do grande capital antecipam que não será possível retomar a normalidade prévia depois desta crise, resignadas em aceitar algumas reformas em prol de assegurar a preservação da ordem social, os donos dos meios de produção mostram, dos seus postos de comando da economia, que não vão deixar passar a oportunidade desta crise para impor um novo avanço por cima da força de trabalho.

Karl Marx apontou o caráter necessário de um “excesso populacional operário” que não consegue o privilégio de ser explorada pelo capital. Este conforma o que ele definia como “um exército industrial de reserva à disposição do capital”. Não se trata de algo que acontece somente com as crises, mas um traço permanente e necessário do funcionamento desse modo de produção que “cria, para as necessidades variáveis de valorização do capital, o material humano explorável e sempre disponível, independentemente dos limites do aumento real experimentado pela população” [1]. Porém, hoje ameaça se transformar em um exército verdadeiramente massivo, graças às grandes demissões e aos fechamentos de empresas. Pela via deste “automatismo” econômico, o capital impõe sua disciplina. Assim o expõe Marx:

“Durante os períodos de estancamento e de prosperidade média, o exército industrial de reserva, ou superpopulação relativa, exerce uma pressão no exército operário ativo, limitando suas exigências durante os períodos de sobreprodução e de paroxismo. A sobrepopulação relativa, portanto, é o plano de fundo sobre o qual se move a lei da oferta e da demanda de trabalho. Comprime o campo de ação desta lei dentro dos limites que convém de maneira absoluta à ânsia de exploração e ao afã de poder do capital" [2].

Um dos pontos de apoio das ofensivas burguesas das últimas décadas foi a possibilidade de contar com uma forte ampliação deste exército de reserva. O desmantelamento das políticas que durante os anos do boom do pós-guerra tinham pretendido que poderiam sustentar o pleno emprego, algo em que acabaram fracassando pelo seu impacto negativo nas taxas de lucro, nos investimentos e na inflação, que foi central nesse sentido. Também foram as sucessivas medidas de flexibilização trabalhista (que não significam outra coisa senão precarização), aplicadas invariavelmente em todos os países nas últimas décadas, que cumpriram um papel chave para potencializar esse império das leis econômicas que servem ao capital (e que não tem nada de natural, diferentemente do que pretende a economia mainstream). Como dizíamos em outra oportunidade, a precarização de amplos setores da classe trabalhadora

divide as forças da classe trabalhadora, colocando travas na sua capacidade de arrancar melhoras na disputa com o capital pela divisão do “bolo”. A informalidade trabalhista permite sobretudo segmentar os estratos mais baixos e pobres na economia informal em benefício das patronais dos setores menos produtivos, que trabalham mais perifericamente e compensam degradando ainda mais as condições de trabalho e pagando salários muito menores que os trabalhadores registrados. “Para cada setor empresarial, uma condição de trabalho que atenda a seus requisitos" poderia ser o lema…

Sem esse avanço do capital contra as condições de trabalho, não haveria sido possível o salto que deu a massa de lucros (a porção do produto social que é levada pelas patronais, e que não tem outra origem a não ser o trabalho não pago apropriado como mais-valia pelo capital do todo de valor que produzem os trabalhadores sob suas ordens) na divisão do “bolo”, ou seja da produção social. O tamanho dessa massa de lucros cresceu quase continuamente desde o fim da década de 1970, e o fez às custas da massa dos salários. Graças à ofensiva patronal, durante esses anos os frutos do aumento de produtividade não se traduziram em um aumento dos salários reais (que continuaram estancados) nem em uma redução das jornadas de trabalho que, pelo contrário, tenderam a aumentar. Como mostrou 2008, e como sustentava Friedman, as crises são momentos de grande oportunidade para esses avanços. Haverá outra rodada disso depois da pandemia de 2020? É o que os patrões estão tentando impor.

Alberto, o grande simulador

Na Argentina dos miseráveis, as demissões estão proibidas desde a semana passada pelo Decreto 329/20. Mas, aparentemente, não tanto assim. Tecpetrol, a empresa de Paolo Rocca que há algumas semanas desatou a ira presidencial por avançar com 1.500 demissões, concretizou elas na última segunda-feira com aval do sindicato e homologação do Ministério do Trabalho. Na mesma segunda-feira, Dánica, a tradicional produtora de margarina, fechou sua fábrica como medida de lock-out para não reincorporar trabalhadores demitidos. Ainda que na última sexta-feira a empresa tenha anunciado que retomava suas atividades, advertia em um comunicado que o fazia “com o compromisso das autoridades trabalhistas de reestabelecer de forma urgente o procedimento de prevenção de crise, que se encontra paralisado desde janeiro pela intransigência sindical”. Representantes da empresa não se privaram de declarar que as desvinculações não podem ser consideradas “proibidas”.

Antes de chegar à (aventurada) conclusão de que as patronais estão se revelando contrárias à disposição de Alberto Fernández, era preciso observar o que aconteceu em Quilmes, na quinta-feira. O dono do frigorífico Penta, empresário amigo do peronismo, entrou em lock-out para não pagar salários e impor demissões. Rapidamente foram colocadas em ação forças policiais de Buenos Aires. Para reprimir o empresário que desrespeitava o decreto oficial? Não, para reprimir os operários que rechaçavam o fechamento e queriam cobrar seus salários. A jornada acabou com um operário hospitalizado que passou várias horas em terapia intensiva. Para o Ministro de Segurança da província, Sergio Berni, assim como para o governador Axel Kicillof e a prefeita Mayra Mendoza, esquivou da responsabilidade sobre a repressão, se tratou de toda forma de uma ação completamente justificada, ainda que com um "método" incorreto. Uma confissão a parte…

O mapa feito pelo Observatório de Demissões durante a Pandemia do La Izquierda Diario, registra, desde o dia 20 de março, mais de 10 mil demissões e suspensões. O informe do levantamento adiciona que estas duas medidas “não são o único mecanismo por meio do qual as empresas pretendem preservar seus lucros às custas dos trabalhadores”. Em mais de 20 casos “o ataque aos trabalhadores é exercido por meio da redução de salário”. As porcentagens de descontos na folha de pagamento oscilam de 25% a 85%, e inclusive registram casos nos quais os pagamento são diretamente suspensos. “Férias adiantadas, pagamentos parcelados de salários atrasados pelos meses já trabalhados, e outras variantes da mesma miséria patronal completam o panorama”.

Mas como que, de acordo com o próprio decreto 329, os salários não poderiam ser afetados? Não é assim. O artigo do decreto foi uma grande guinada das mesmas patronais contra quais Alberto Fernández buscou se mostrar duro. Sob as condições previstas pelo artigo 22 da Lei de Contrato de Trabalho, as próprias suspensões que são “proibidas” no título do decreto ficam habilitadas no caso da diminuição do trabalho ou de força maior. Graças a tal “exceção”, que, como de costume,é uma “letra miúda” que define em grande medida o espírito da norma, as empresas podem aplicar suspensões que sejam pactuadas individualmente ou coletivamente entre o empregador e o empregado, e que então sejam homologadas pelo Ministério de Trabalho. Como resume o Observatório de Demissões, efetivamente em quase todos os casos, as suspensões “foram pautadas em convênio com as cúpulas sindicais”.

Como observa Matías Aufieri, advogado integrante do Centro de Profissionais pelos Direitos Humanos (CeProDH):

Neste marco de impossibilidade de mobilização que estabelece a quarentena decretada, e das centrais sindicais desmobilizadas por decisão própria, a situação mais do que nunca parece ficar livre do arbítrio do Ministério de Trabalho, mediante os Procedimentos Preventivos de Crise que são historicamente homologados em prejuízo aos trabalhadores, sem maior análise. Ou em casos individuais, como o é na maioria das empresas que não contam com representação sindical, os processos trabalhistas são perfilados individualmente, daqui pros próximos anos.

A impossível arte da conciliação de classes em tempos de crise

Sob o rótulo de “proibir demissões”, a pretensão real do governo aponta então à espalhá-los no tempo, deixando, enquanto isso, as portas abertas para suspensões em massa. Alberto Fernández havia prometido que na sua presidência acabariam os rebaixamentos salariais que primaram nos tempos de Macri, mas sob o peso de uma nova recaída na crise não farão mais que se aprofundarem. Os cortes impostos hoje pelas patronais, sob o amparo do artigo 223 (e enquanto o Estado banca generosamente uma parte dos salários e corta as contribuições patronais) atuarão como parâmetro para as discussões salariais que venham depois da emergência sanitária, tempos onde a recessão seguramente continuará por longo tempo.

Nos marcos de uma economia mundial que se dirige a um terreno desconhecido e no qual reina a incerteza, a destruição em massa do emprego e a forçada convivência com níveis de desemprego de mais do que o dobro dos registros prévios à crise, buscarão ser apresentados como uma “catástrofe natural”, algo tão fatalmente inevitável quanto a pandemia. Mas se essa narrativa não se aplica para o Covid-19, que é o mais grave (até agora) de uma longa série de surtos virais massivos cujo aumento foi possível pelas condições criadas pelo capitalismo, muito menos sustentável é o manto ideológico que busca encobrir as consequências da devastação econômica no emprego.

Como advertia Trotsky no Programa de Transição, “o proletariado não pode tolerar a transformação de uma multidão crescente de operários como desempregados crônicos, em miséria e que vivem as migalhas de uma sociedade em decomposição”, sob a “pena de se entregar voluntariamente à degeneração”. A defesa das fontes de trabalho e dos salários contra os ataques patronais não vai ser assegurada por nenhum decreto, mas depende da mobilização e a luta da classe trabalhadora. Sob o peso da crise, apelando à inexorabilidade das leis econômicas, as patronais afirmarão que não podem ser garantidos os empregos e salários. Assim como antecipava Trotski nos anos posteriores à Grande Depressão:

Os proprietários e seus advogados demonstrarão “a impossibilidade de realizar” estas reivindicações. Os capitalistas em menor quantidade, sobretudo aqueles que marcham rumo à ruína, invocarão também seus livros de contabilidade. Os operários rechaçarão categoricamente estes argumentos e estas referências. Não se trata aqui do choque “normal” de interesses materiais opostos. Trata-se de preservar o proletariado da decadência, da desmoralização e da ruína. Trata-se da vida e da morte da única classe criadora e progressiva e, por isso mesmo, do porvir da humanidade. Se o capitalismo é incapaz de satisfazer as reivindicações que surgem infalivelmente dos males por ele mesmo engendrados, então que morra.

Na Argentina e em todo o mundo, está colocada para a classe trabalhadora uma dura luta de autodefesa, frente à decadência, à ruína e ao risco à nossa saúde que nos prometem os capitalistas. Rechaço às demissões, exigência de salário de quarentena para todos os setores precarizados de pelo menos $30.000 [o suficiente para para viver, no Brasil, levantamos a exigência de no mínimo R$2.000; NdT], retomar o exemplo das gestões operárias e ocupar e colocar em atividade toda fábrica que feche ou demita, são algumas das respostas fundamentais (que exigem disputar a direção dos sindicatos com a burocracia sindical) como parte de um programa de saída para a crise que descarregue os custos da mesma na classe dos exploradores capitalistas.

[1] Karl Marx, El capital. Crítica de la economía política, México, Siglo XXI Editores, 1976, pp. 786-787.

[2] Ibidem, p. 795.


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