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Entre a estratégia institucional e a luta de massas: duas estratégias na esquerda, em debate com Guilherme Boulos

Diana Assunção

Vitória Camargo

Entre a estratégia institucional e a luta de massas: duas estratégias na esquerda, em debate com Guilherme Boulos

Diana Assunção

Vitória Camargo

No dia 1° de Fevereiro, quando tomou posse como deputado federal mais votado por São Paulo, Guilherme Boulos, do PSOL, concedeu uma entrevista à Jacobin Brasil buscando abordar os desafios que vê para a construção de uma “estratégia socialista”, sob o título “Entre a estratégia institucional e a luta de massas”. Consideramos que se trata de uma matéria ilustrativa de alguns dos principais debates colocados hoje na esquerda brasileira e latino-americana, passando por temas como o balanço do primeiro ciclo de governos “progressistas” na América Latina, o papel dos movimentos sociais e concepções de socialismo. Neste marco, o terceiro governo Lula, eleito a partir de uma frente ampla com Alckmin, com apoio do imperialismo dos Estados Unidos e composto por diversos setores burgueses, mas também por representantes de sindicatos e movimentos sociais, é integrado também pelo PSOL. É a partir dessa localização que a entrevista expressa uma determinada relação entre o que o líder do MTST do PSOL denomina como "estratégia institucional" e a "luta de massas". Para Boulos, a luta de massas deve auxiliar o governo para que ele “possa ir mais longe”, administrando o capitalismo brasileiro, o que, ao contrário de construir uma “estratégia socialista”, está a serviço de limitar o programa que se levanta e desviar as lutas em prol dos interesses das instituições que sustentam esse sistema de exploração e opressão.

A entrevista de que tratamos, realizada por Lucas Oliveira, tem o mérito de abordar algumas das questões mais atuais diante do novo governo e da chamada nova “onda rosa” na América Latina, recorrendo a reflexões do passado. Já no início da entrevista, se Boulos parte de reconhecer o elementar, que é o fracasso do sistema capitalista para responder aos dilemas da humanidade, também define que está "entre aqueles que não acreditam que o melhor caminho [ao socialismo] seja simplesmente através da propaganda, da agitação socialista ou de uma cultura acadêmica que eleve o socialismo a uma abstração teórica". Entretanto, a entrevista, e mais ainda sua prática política, ilustram o oposto disso. "Socialismo" termina sendo, para o deputado do PSOL, uma combinação entre um discurso em defesa da ampliação de direitos via Estado (capitalista) e, justamente, a mais pura abstração sobre “construir o nosso próprio caminho democrático ao socialismo”, que encontra na realidade o "grau zero da estratégia" [1] para alcançá-lo. Ou seja, o “socialismo” propagado - ocasionalmente - por Boulos serve para cobrir pela esquerda uma estratégia de administração do capitalismo em chave reformista, que neste momento já começa a se mostrar concreta com a entrada do PSOL no governo Lula-Alckmin.

Efetivamente, hoje o PSOL tem cargos no governo com Sônia Guajajara à frente do Ministério dos Povos Indígenas e o Pastor Henrique Vieira na vice-liderança do governo na Câmara dos Deputados. Esses cargos estão exatamente no mesmo governo onde tem não somente Geraldo Alckmin, mas também o ex-Arena José Múcio e a amiga dos milicianos Daniela “do Waguinho”. Assim, embora alas do PSOL um dia tenham tentado fazer parecer que os filiados do PSOL compondo o governo não estivessem fazendo isso em nome do PSOL, essa manobra está cada vez mais difícil de ser sustentada. Com o Pastor Henrique assumindo a vice-liderança da Câmara, o partido afirma: “a indicação para a vice-liderança do governo reforça a importância do partido [o PSOL] [...] na elaboração de propostas para reconstruir o Brasil”, bem como recentemente parabenizou Lula por suas medidas em nota da Executiva Nacional do Partido. O próprio Boulos, no último mês, apareceu como propositor na imprensa de uma “convivência democrática” com Arthur Lira, ex-aliado do bolsonarismo e articulador de vários ataques, que retornou à presidência da Câmara com o apoio do PT, que, por sua vez, agora é representado na vice-presidência da Câmara pelo PSOL. O fato de o PSOL não ter votado em Lira não passou de jogo de cena.

Desse ponto de vista, se, Boulos demonstra, na entrevista, a inconsistência de suas ideias, com as quais debateremos aqui; queremos remarcar que, em sua atuação prática veio endossando a eleição e a participação em uma frente ampla com a direita e burgueses, estando distante até mesmo de algumas de suas próprias proposições. São frases que terminam servindo para tentar apresentar concepções que parecem ser mais de esquerda e pintá-lo como “socialista” quando, na prática, integra-se cada vez mais ao regime nascido do golpe de 2016 e que preserva muitas figuras desse golpe no próprio governo atual. Um golpe institucional que enfrentamos fortemente desde 2016 e que abriu espaço justamente para essa extrema direita odiosa que leva adiante todo tipo de ataque bolsonarista e ameaças, como a absurda ameaça de morte no último mês contra Boulos pelas redes sociais por parte de um fazendeiro, que rechaçamos por completo nos somando a toda campanha de solidariedade.

Nesse contexto, no qual seguem havendo expressões da extrema-direita, mais do que nunca é preciso debater as estratégias na esquerda. E por isso consideramos elucidativa a entrevista de Guilherme Boulos na Jacobin, sendo representativa de uma determinada fórmula defendida por parte da esquerda atual no Brasil. Essa fórmula parte de apresentar uma “estratégia institucional”, integrando e/ou sustentando o governo, que estaria aliada à “luta de massas”, sendo esta última uma auxiliar da própria estratégia institucional. Isto é, a luta de massas não deve ser negada nem “faz o jogo da direita”, como dizem alguns, mas deve estar a serviço da estratégia institucional, que consiste em dirigir e administrar o Estado na busca de “ampliação de direitos”. Boulos formula isso em termos próprios, buscando se contrapor à noção de que agora “o papel do movimento social seria unicamente defender o governo” no Brasil, dado que há uma extrema direita que serve como argumento permanente para “não lutar”, ou seja, para “deixar o governo trabalhar” e não provocar embates nas ruas. Essa lógica, em tese, Boulos classifica como “suicida”. Para ele, “é justamente o movimento social forte e atuante que tem condição de fazer o contraponto, de fazer a disputa para que esse tipo de governo possa ter mais avanços, possa ir mais longe no enfrentamento às desigualdades estruturais do capitalismo”. Na prática, o que Boulos está dizendo é que, diante do governo Lula-Alckmin, supostamente “em disputa”, as mobilizações sociais podem até criticar o governo, mas com o objetivo de pressioná-lo e melhorá-lo para fortalecer sua gestão, o que significa evidentemente uma gestão capitalista. Mais uma vez, a noção de “socialismo” se apresenta como uma cobertura à esquerda para uma estratégia institucional de reforma do Estado Burguês, nesse sentido complementar ao “suicídio” político dos que defendem somente fortalecer o governo sem luta, já que todos os caminhos (não lutar ou lutar para pressionar) servem para a contenção de qualquer saída independente que busque se contrapor ao Estado de conjunto, portanto, que possa ser efetiva.

Os ciclos de “governos progressistas” na América Latina

Mas quais lições Boulos extrai da primeira onda dos chamados governos progressistas na América Latina? Os anos 2000 no subcontinente foram palco, segundo ele, de “uma onda de governos progressistas, muitos deles com forte viés anti-imperialista, e bem diversos entre si (...). Alguns avançaram, mas outros foram mais tímidos nos seus avanços, mas, de fato, tiveram um limite, um teto nos marcos institucionais do Estado capitalista.” Diante disso, Boulos propõe três lições desse ciclo. A primeira é: “o descuido em não apostar tão intensamente em formas de poder popular, formas de participação popular direta que aprofundassem a democracia”. Nas suas palavras, ao não apostar em mobilização e nessas formas de “poder popular”, esses governos ficaram “reféns” da velha governabilidade com as elites. A segunda é: “faltou disputa cultural e disputa de valores”, permitindo em países como o Brasil o avanço da extrema direita e diluindo a noção de “cidadãos” em “consumidores”, o que retoma parafraseando o ex-presidente uruguaio Mujica. E a terceira é que: “houve muitos limites no enfrentamento do conflito distributivo”.

Esse “teto nos marcos institucionais do Estado capitalista” categoricamente foi uma marca determinante dos governos “pós-neoliberais” na América Latina, cujo resultado da primeira onda ocorreu após uma série de intensas mobilizações em distintos países, ignoradas por Boulos em sua análise. Entretanto este “teto” não foi um “acaso” ou uma “insuficiência” dessa primeira onda, mas parte constitutiva da estratégia desses governos progressistas. Na Bolívia, citada na entrevista como um exemplo de certa articulação entre um “partido movimento” e formas de “democracia popular”, o triunfo eleitoral do MAS teria sido muito difícil sem os cinco anos de intensa mobilização de massas, desde a “Guerra da água” [2] ao levantamento de Outubro e as Jornadas de Junho ali [3]. Nesse momento, primaram tendências de enfrentamento direto com o regime neoliberal, com levantes, expressões de guerra civil e o auge de um combativo movimento de massas popular, camponês e indígena. Frente a esses processos, o MAS de Evo Morales (com a inestimável ajuda da burocracia sindical da Central Obrera Boliviana, a COB) atuou segurando a mobilização da vanguarda dos mineiros e outras categorias operárias, sustentando a “continuidade constitucional” para bloquear o desenvolvimento do processo revolucionário, sempre em nome de “passar do protesto à proposta” dentro dos marcos da ordem existente. Isso significou manter a subordinação da Bolívia ao imperialismo, que depois seria parte de articular o golpe de 2019 e alimentar a extrema direita racista nesse país. Já no Brasil, a chegada de Lula ao poder pela primeira vez, em 2002, teve um sentido “preventivo” para a burguesia, já que aqui o processo de luta de classes não estava na mesma intensidade que em outros países latino-americanos. Isso para dar apenas alguns exemplos.

Assim, se por um lado podemos dizer que esses governos “pós-neoliberais” da chamada “onda rosa” foram uma expressão distorcida de uma determinada correlação de forças da luta de massas contra as políticas neoliberais e também ancorados posteriormente num ciclo econômico excepcional do boom das commodities, também podemos trabalhar com o conceito de que a primeira onda produziu a passivização daqueles processos de mobilização, como apontava Gramsci, ou seja, de uma desmobilização e subalternização das massas, com um movimento duplo: realizar concessões parciais, tomando demandas que vinham das camadas mais populares, sem sua raiz mais radical ou disruptiva e mantendo o essencial da estrutura neoliberal. Também se deu um processo de "cooptação de vanguardas de luta" que viraram chavistas, evo moralistas, kirchneristas, lulistas e começaram a reivindicar o “socialismo do século XXI”, um nome falso, porque nunca existiu socialismo nesses governos, senão apenas algumas reformas sociais que foram sendo atacadas na crise. A combinação desses fatores contribuiu para abrir caminho ao ascenso da direita, como vimos posteriormente. Para seguir analisando, o caso boliviano também nos remete à reflexão apresentada por Álvaro Garcia Linera, que foi vice-presidente da Bolívia. Em seu livro, Garcia Linera revela a defesa de uma política de governar através da convivência e negociação com as classes dominantes, que só poderiam ser “contidas, e não derrotadas”, o que significava governar sem atacar nenhum dos problemas estruturais de cada país, o que para o próprio Garcia Linera foi também o motivo da decadência da primeira onda.

Isso significa que, ao mesmo tempo em que um “movimento social forte e atuante”, como propõe Boulos, pode alterar a correlação de forças para obter maiores concessões se a situação econômica assim permitir, também o “teto nos marcos institucionais do Estado capitalista” impõe limites claros ao programa que se busca alcançar. Os exemplos tratados explicitam que não se trata de que esses governos “descuidaram” da mobilização e das “formas de participação popular direta”, como sugere o deputado. Pelo contrário, esse era o objetivo final. A chegada ao poder dessa primeira onda de governos exigiu a pacificação das lutas na América Latina porque se tratava de conviver e negociar apenas contendo excessos das classes dominantes, mas nunca se tratou de derrotá-las. Por isso, para chegar e se manter no poder, era necessário anular a força social que essas variantes progressistas representavam de forma distorcida. Ainda assim, quando Boulos aponta certos “limites” da chamada onda progressista, localiza-se por dentro da mesma estratégia que tem como centro a recuperação e manutenção do controle do poder do Estado, inclusive definindo que a chave é também “a disputa dos espaços do Estado e da política, das políticas públicas do Estado, do orçamento público”. Mas a essa altura é importante remarcar que a tese de que seria possível chegar ao socialismo de forma pacífica pelo alargamento dos direitos sociais dentro dos marcos capitalistas apenas pela atuação parlamentar já foi desmascarada dramaticamente por Rosa Luxemburgo contra Eduard Bernstein no começo do século XX.

Então em síntese, Boulos não rompe com o teto institucional que ele mesmo define que não somente nunca levou ao socialismo (obviamente), como não é à toa que é obrigado a reconhecer que “com isso não se tocou, por exemplo, em temas como reformas mais estruturantes” no primeiro ciclo - reformas que o PSOL tem praticamente resumido à reforma tributária e à disputa burguesa pela taxa de juros, como está na última resolução de sua direção. Logo, o fato de ter tido muita luta de classes, desviada ou cooptada pelo Estado, não significou “ir mais longe no enfrentamento às desigualdades estruturais do capitalismo”. Fazendo essas críticas, um leitor desatento na entrevista de Boulos poderia ter a expectativa de que ele apresentaria então uma outra estratégia para avançar na luta. Expectativas frustradas, Boulos apenas reafirma exatamente a mesma estratégia. As “lições” que Boulos menciona não são aspectos para “pensar pra valer (...) e abordá-los estrategicamente” agora, e sim são consequência da mesma estratégia de “governos progressistas” que agora o deputado quer repetir como farsa, com uma roupagem “socialista”, mas com limites ainda mais escancarados.

Isso porque a chamada segunda “onda rosa” encontra a América Latina novamente atravessada por lutas de classes, que não chegam a ultrapassar a dinâmica de revoltas e institucionalização, mas agora sob um ciclo econômico internacional bastante mais adverso, marcado por crise e por disputas entre potências, que se expressam na Guerra da Ucrânia. A falência da esquerda institucional e de todas as variantes que se propõem a administrar o Estado se mostrará de forma ainda mais contundente neste novo ciclo. Até mesmo alguém como o presidente colombiano Gustavo Petro é obrigado a reconhecer que se repetirmos a fórmula da 1ª onda rosa, o fracasso será estrondoso. Além de a margem para concessões ser bastante inferior, essa nova onda ainda conta com uma direita e extrema direita latino-americanas que não caíram do céu. Não somente o primeiro ciclo de governos “pós-neoliberais” não “disputou valores”, como também alimentou e fortaleceu uma base social reacionária, que no Brasil foi materializada em setores do agronegócio, das forças repressivas e das Igrejas que foram fortalecidos pelos governos do PT, e depois deram carne ao bolsonarismo. Desse ponto de vista, a chamada segunda “onda rosa” tem bases ainda mais débeis do que a primeira. Nesses termos, a revolta chilena de 2019 é uma boa ilustração. Desviada para um pacto em torno de uma convenção constituinte controlada, terminou por fortalecer a direita dura, de um lado, e a centro-esquerda liberal, por outro, e é uma prova de que o desvio da “luta de massas” às instituições, isto é, a institucionalização das revoltas, não significa o fortalecimento de qualquer “socialismo democrático”. Ao contrário, abre caminho para as forças políticas mais reacionárias que, na prática, não é possível conter eternamente.

Ao mesmo tempo, a atual revolta peruana, fruto do golpe contra Pedro Castillo, cuja eleição foi comemorada por grande parte da esquerda brasileira e definida por Boulos como mais uma vitória contra a direita e o fascismo no mundo, dá mais uma mostra de que a América Latina está longe de se estabilizar. Essa revolta, permeada por elementos pré-revolucionários que vieram expressando o profundo ódio de massas camponesas, indígenas e precarizadas no Peru após décadas de degradação neoliberal, tem no governo brasileiro um pilar de sustentação da política imperialista de Joe Biden em prol da golpista Dina Boluarte, representante de uma direita asquerosa no Peru. Lula reconheceu esse governo e autorizou o envio de munições para a repressão dos manifestantes. Neste momento, as Forças Armadas peruanas têm licença para utilizar armas de fogo, em grande parte, contra mulheres e indígenas que lutam na linha de frente. E o que Boulos tem a dizer, quando o governo composto pelo PSOL sustenta e auxilia a repressão contra um “movimento social forte e atuante”? Nada, absoluto silêncio por parte do deputado mais votado de São Paulo (assim como pela Ministra dos Povos Indígenas, do PSOL, Sônia Guajajara), que não dedicou nem um único tweet à revolta peruana quando já são quase 70 assassinatos pelo Estado peruano. Protege Lula, claro, de olho também nas eleições da prefeitura de São Paulo em 2024. O PSOL é parte de um governo que deixa claro de qual lado está diante da luta de classes na América Latina. Está junto à sua pacificação, mesmo que às custas da repressão e da chegada da direita racista ao poder. Mais uma prova de que as “lições” que Boulos diz necessárias sobre o primeiro ciclo, além de superficiais e limitadas em si mesmas, são apenas uma roupagem de esquerda para sustentar exatamente a mesma estratégia de administração do capitalismo.

“Socialismo democrático” a partir da soma dos movimentos com parlamentarismo?

Essas concepções de Boulos, como parte de uma esquerda cujo horizonte máximo é a administração do Estado “mais humana”, estão expressas na relação que o deputado propõe entre os movimentos, a classe trabalhadora e os partidos. Ao longo da entrevista, Boulos faz parecer que seu demagógico “socialismo democrático” seria fruto da soma da atuação de distintos movimentos sociais e suas resistências, combinados à representação institucional. Por isso, diz que “dentro de movimentos sociais como o MTST e o MST você tem os embriões da construção socialista”. Ao mesmo tempo, dizendo-se simpático à ideia de que “o partido é a expressão política do movimento social e em que o movimento social constrói os seus espaços de representação por meio dos partidos”. Desse ponto de vista, define: “se tivéssemos que resumir a luta socialista em um mote, seria o enfrentamento à desigualdade social. Mas as desigualdades e as disfunções do capitalismo hoje não se resumem à desigualdade econômica”. A isso, agrega as questões de gênero, raça e ambientais, que seriam questões novas, alheias ao socialismo do século XX (o que, por sinal, é uma afirmação absolutamente equivocada, tratando-se do marxismo revolucionário, e não do stalinismo) e que é a partir disso que teríamos que pensar um novo modelo de sociedade.

Muitos debates poderiam ser desdobrados acerca dessas afirmações. Após décadas de neoliberalismo e de precarização nos mais distintos âmbitos da vida, proliferaram-se movimentos sociais que lutam por diversas demandas, entre elas demandas democráticas fundamentais que dizem respeito à luta das mulheres, dos negros, LGBTs, assim como ambientais e de moradia e têm profunda vinculação com a realidade da classe trabalhadora. Mas o fato é que agora estamos diante de um novo marco para a busca das demandas dos setores oprimidos no Estado, após anos da extrema direita. O novo governo, do qual o PSOL é parte, busca combinar a administração do capitalismo brasileiro preservando reformas que aprofundam o machismo e o racismo como herança de 2016 e do bolsonarismo, a tons de representatividade, que Boulos, nesse caso, transforma em alguma “teorização”. O que é sua teorização? Boulos faz parecer que sua atuação na política institucional possa ser “a expressão política do movimento social” no país. Para as mulheres, negros e LGBTs e demais membros dos movimentos sociais, termina significando oferecer como horizonte máximo “ocupar um espaço” no Congresso, no governo, nos Ministérios, etc, mas abdicando de programas elementares como a revogação integral das reformas que superexploram negros e mulheres, do direito ao aborto, do fim da violência policial, do fim do desmatamento que tem responsabilidade do agronegócio, das reformas agrária e urbana radicais, etc. Enquanto isso, a própria trajetória política de Boulos e do PSOL são mais uma vez uma negação das teses do deputado na entrevista.

Por quê? Para dar alguns exemplos, hoje, o Ministro da Agricultura do governo Lula, Paulo Teixeira, do PT, correu para justificar que a ocupação de terra ocorrida recentemente na Bahia por parte do MST é um “caso isolado” e que o governo “vai respeitar a propriedade privada” no que tange às terras, tranquilizando o agronegócio, ao mesmo tempo em que faz demagogia com a reforma agrária, que viria do “diálogo” entre movimentos sociais e fazendeiros. É assim que o governo sustentado por Boulos trata os “embriões do socialismo”, na visão do deputado - apagando a legitimidade de seus métodos de luta e mantendo os interesses do agronegócio intocados. Claro, é um governo composto pelo PSOL, por um lado, e pelo União Brasil, por outro, partido que conta com nomes como Ronaldo Caiado, "coronel" goiano, um dos fundadores da União Democrática Ruralista (UDR), dono de 14 fazendas. Para não falar de Tebet, Ministra do Planejamento, que vem de uma família latifundiária do Mato Grosso do Sul e é herdeira de terras em um dos lugares onde mais existem conflitos entre indígenas e latifundiários, onde estão localizados territórios tradicionais reivindicados pelos povos Guarani-Kaiowá. Sobre a luta das mulheres, a Ministra Cida Gonçalves definiu no início do ano que o governo iria “perder a discussão sobre o aborto”, por isso recomendando “cautela”, já que se trata de um Congresso muito reacionário. Com isso, está atualizando a tese do “recuo tático” na questão do aborto, que significa na prática seguir se valendo dos direitos das mulheres como moeda de troca em prol da “governabilidade” com a direita, já que a hora para levantar o direito ao aborto legal, seguro e gratuito nunca chegou nem vai chegar para os governos do PT - até mesmo porque Lula fez campanha eleitoral dizendo que era contrário ao direito ao aborto.

Isso são apenas alguns exemplos de que a “estratégia institucional” defendida por Boulos está longe de ser uma “representação” das lutas dos movimentos sociais. Ou reforma agrária e direito ao aborto não são parte das demandas dos movimentos sociais? Aqui também todas as formas de desenvolvimento dos movimentos sociais e suas lutas encontram um “teto” claro na institucionalidade do Estado capitalista e fazem com que a classe trabalhadora como sujeito seja um grande ausente ao longo de toda a entrevista abordada, corroborando para a separação entre as lutas dos movimentos sociais e da classe trabalhadora.

Para Boulos, o suposto caminho ao socialismo não passa pela tarefa de que a classe trabalhadora se alce como classe hegemônica capaz de levantar todas as demandas dos oprimidos em forte unidade contra o sistema capitalista. Definir a classe trabalhadora como sujeito hegemônico não significa recorrer a uma visão dogmática e obreirista. Mas significa de fato buscar uma estratégia que articule as distintas lutas para vencer esse sistema, superando os marcos do Estado e a fragmentação imposta tanto pelas direções dos próprios movimentos sociais, quanto pelas direções sindicais. Significa permitir que as demandas mais profundas dos movimentos sejam alcançadas, e não desviadas pela burguesia que busque se pintar de “democrática”.

Assim, a centralidade operária e seu potencial hegemônico se explicam pelas “posições estratégicas” na vida social do capitalismo ocupadas pela classe trabalhadora, que é a classe produtora nesta sociedade. Classe que também mora precariamente, que cada vez mais é negra, feminina, nos postos da terceirização e da uberização, e a primeira a ser afetada pelos impactos ambientais, como vimos recentemente no litoral Norte de São Paulo. Não se trata aqui, portanto, de recuperar a noção de “cidadãos” contra “consumidores”, como propõe Boulos, reivindicando a primeira e diluindo as divisões da sociedade de classes. Emilio Albamonte e Matías definem que, como “cidadãos”, os membros da sociedade aparecem como “meros representantes de um interesse corporativo a mais da sociedade”. Como produtora, a classe trabalhadora é “portadora potencial de novas relações sociais de cooperação, de uma força social e produtiva que pode abrir caminho a uma nova civilização”. Do contrário, sem isso, “tanto no terreno econômico, como no político, uma perspectiva socialista seria impossível”, e trabalha, novamente, para o desvio e institucionalização das revoltas.

A importante consequência que tem essa concepção de Boulos é que justamente não existe em seu pensamento as “burocracias sindicais ou dos movimentos”. A operação político-ideológica que apaga a classe trabalhadora como produtora, apagando também as potenciais relações de hegemonia e cooperação que pode estabelecer com os demais movimentos, é extremamente funcional ao Estado em sentido restrito, mas também aos garantidores da hegemonia burguesa no interior dos movimentos e da classe operária. Isto é, ao Estado em sentido ampliado. As burocracias sindicais e dos movimentos podem não existir na entrevista e no discurso de Boulos, mas qualquer trabalhador que já viu sua greve traída por burocratas sindicais ou um movimento manipulado por uma cúpula em cima de um carro de som sabe bem do que se trata. Nas assembleias dos movimentos, vemos em geral somente as lideranças falando.

Isso não é à toa. Essas direções burocráticas dos sindicatos empreendem essa separação entre múltiplas pautas e mesmo entre classe trabalhadora precária, informal e com mais direitos - muitas vezes dirigidos pelos mesmos partidos que estão nos movimentos, como pelo PT e com apoio do PSOL e suas figuras. A ausência completa de uma crítica à divisão imposta entre luta sindical e movimentos sociais, da qual Boulos é um expoente, é um papel também de contenção que fica entregue a mão desses líderes, que se submetem placidamente à vontade das burocracias sindicais, cumprindo no movimento negro, de mulheres, LGBTQI+, moradia, entre outros, o papel de manter em separado lutas que falam dos mesmos sujeitos. Além disso, são justamente essas direções dos sindicatos e de distintos movimentos que atuam como sustentáculo do governo atual que também buscaram conter qualquer desenvolvimento de luta real contra o bolsonarismo e que agora querem conter a luta dos trabalhadores para “deixar o governo trabalhar”, mais uma vez na estratégia de administração do capitalismo, como já começamos a ver com o impacto em torno do chamado à paralisação de entregadores.

E qual o papel dos “partidos movimentos” que Boulos reivindica, como o Podemos espanhol? O Podemos partiu de buscar expressar como variante neorreformista um movimento de juventude e terminou abrindo espaço à direita no Estado Espanhol, colocando-se contra o direito à auto-determinação do povo catalão, com Pablo Iglesias inclusive “abdicando” da política derrotado. Isso sem deixar de mencionar o exemplo de Bernie Sanders nos Estados Unidos, que é apoiado pela Jacobin como exemplo de “socialismo democrático”, e trabalha estrategicamente para o imperialista Partido Democrata da presidência dos Estados Unidos, que buscou cooptar o Black Lives Matter. É interessante debater isso neste momento, porque justamente agora Boulos e o PSOL estão podendo praticar suas concepções, ainda que “em frio”, sem luta, por ora, e não somente louvar as experiências internacionais. Longe de ser mais “fluido” e capaz de se ligar às “forças vivas da sociedade”, esses partidos concebem as lutas sociais e todos os setores oprimidos e explorados como se fossem “massa de manobra” para a política institucional. Esses partidos definem sua política burocraticamente por figuras públicas em tweets e vídeos, a serviço de buscar a tal “governabilidade”, o que pressupõe “abrir mão” de pautas fundamentais desses movimentos e também não “disputar valores”, o que certamente retroalimenta a extrema direita. Assim, a “soma” dos movimentos com o terreno institucional se dá pela via de promoção de figuras como Guilherme Boulos, que tem como objetivo administrar a principal capital do país nos marcos do capitalismo, e para isso já se propôs na última eleição municipal numa Frente Ampla que não era “socialista” e sim com partidos burgueses e golpistas, para governar com os empresários, dialogando com o Republicanos e com “respeito às leis”.

Portanto, quais são as duas estratégias na esquerda?

Neste ponto do artigo, já está claro que a concepção de Boulos é de administrar o Estado capitalista, para isso subordinando todas as lutas à hegemonia burguesa e impedindo que um programa operário e anticapitalista se expresse. Mas queremos abordar um terceiro debate, que diz respeito ao lugar da auto-organização na concepção teórica e prática de Boulos. Mesmo permeado por uma completa resignação (de que outros caminhos eram quase impossíveis) quanto às experiências revolucionárias do século XX, Boulos aponta como balanço fundamental de sua visão do século passado a seguinte questão: “não enxergo que o enfraquecimento ou mesmo, em alguns casos, a aniquilação dos instrumentos de poder popular surgidos dessas revoluções, conselhos populares de todo tipo, tenha alcançado bons resultados, muito pelo contrário”. Desse ponto de vista, a concepção teórica de Boulos que coloca um papel “de pressão” para o “ poder popular” é intencionalmente vaga, dando a ideia de um “poder do povo”, mas que para Boulos está claro que se trata de uma busca por um governo de conciliação de classes, como poderia ser um Mujica, ou Brizola, ou alguém que administre o Estado burguês “em nome do socialismo” como Hugo Chávez. Mas Boulos parece apontar algo contra a burocratização dessas experiências passadas e supostamente em favor de instituições de “poder próprio” que nos permite trazer um debate interessante acerca das duas estratégias presentes hoje na esquerda.

O fato é que, na teoria, a estratégia defendida por Boulos é justamente que essas vagas instâncias de poder “democráticas” sejam complementares à democracia burguesa, liberal, para empurrar o Estado adiante. Isso implica que o eixo de sua defesa dessas instâncias se trate de estabelecer uma continuidade institucional entre essas decisões em assembleias, como o debate de orçamento “participativo”, e os mecanismos parlamentares da democracia burguesa, nos quais se concentra a casta política, privilegiada, responsável sistematicamente pelos ajustes, inclusive por manter leis como a de responsabilidade fiscal (com a qual Boulos se propôs a governar em seu programa municipal), por exemplo, e o pagamento da dívida pública, para garantir a subordinação do país ao imperialismo. Na prática do orçamento participativo, longe de instituições de “poder próprio”, a forma de gestão de Olívio Dutra em Porto Alegre chegou a ser elogiada por organismos imperialistas como o próprio Banco Mundial, tendo como grande trunfo o "orçamento participativo", que seria, para a demagogia petista, uma forma de avançar da democracia representativa para a "participativa". Olívio Dutra transformou Porto Alegre em cidade modelo desse esquema com o PT, mas, diga-se de passagem, sem esse nome, essa medida também foi utilizada por partidos burgueses e da direita, como o PFL, herdeiro do Arena, e outros.

Ainda assim, a estratégia de administração do Estado capitalista significa mesmo por vezes reprimir e impedir que organismos desse tipo existam para que as lutas sejam mais facilmente controladas, seja pelas direções burocráticas dos sindicatos, seja dos movimentos sociais, com as quais Boulos colabora, seja pela repressão direta. Foi isso o que se deu na Bolívia, citada por Boulos: o que havia de “duplo poder” em meio ao levante boliviano em El Alto no início do século teve de ser neutralizado para fortalecer as instituições, e mesmo processos foram diretamente reprimidos, tudo isso dirigido pelo MAS, o “partido-movimento” modelo de Boulos.

Assim, quais são as duas estratégias das quais tratamos neste momento? Longe até mesmo de qualquer “socialismo democrático”, com essa estratégia Boulos termina na prática se opondo à “auto-atividade das massas”, concebida em chave soviética, já que a democracia burguesa se contrapõe a quaisquer elementos de poder alternativo, operário e popular. Não estamos falando aqui de movimentos nos quais quem fala e toma a frente são as lideranças, mas sim da auto-organização da base onde cada trabalhador é sujeito da luta. Essa é a estratégia negada pela esquerda que tem como máximo horizonte a gestão capitalista. Já a coordenação entre as distintas lutas e a auto-organização, como a experiência da classe trabalhadora internacional já desenvolveu, criando órgãos como os conselhos operários, os comitês de fábrica, os cordões industriais chilenos, etc, em distintos estágios de desenvolvimento, na estratégia revolucionária, estão a serviço de coordenar e organizar a luta na perspectiva de criar e impulsionar verdadeiros órgãos de poder massivos que se enfrentem com o Estado capitalista em chave revolucionária e não como extensões para sua sustentação. A Comuna de Paris demonstrou, há mais de um século, que a classe trabalhadora não pode se valer do aparato do Estado burguês para construir o socialismo, mas que deve destruí-lo e forjar seu próprio poder.

Daí, para aqueles que de fato buscam uma “estratégia socialista”, em face da crise capitalista que empurra a humanidade à barbárie, tem uma importância a relação entre a classe trabalhadora como sujeito hegemônico, com mulheres, negros e LGBTs à frente, hegemonizando as demandas dos oprimidos na sociedade, com um programa operário para que os capitalistas paguem pela crise, e o desenvolvimento de coordenação e organismos de auto-organização nas lutas que possam ser o germe de um poder alternativo da classe trabalhadora e dos oprimidos. Nesse sentido, trata-se de construir um poder alternativo e contraposto ao Estado, e não complementar, que permita também arrancar demandas elementares, como o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, por fim à violência policial, a revogação integral das reformas e o fim da uberização e terceirização, com todos os direitos aos trabalhadores uberizados e terceirizados, e reformas urbana e agrária radicais. Nenhum desses programas hoje o governo pretende garantir.

É por isso que rechaçar a extrema direita e o bolsonarismo não tem um sinal de igual com sustentar o novo governo, como querem fazer parecer Boulos e o PSOL. Inclusive, ao contrário, para efetivamente derrotar, e não apenas conter esses setores, é preciso se enfrentar com o Estado capitalista de conjunto e não administrá-lo. Essa perspectiva é preparatória para unir a classe trabalhadora e todo o povo pobre e impedir que o regime institucionalize as revoltas que virão. A institucionalização tem como objetivo, também, não somente desviar as lutas mas impedir que a auto-atividade das massas, ou seja, a auto-organização da classe trabalhadora supere na prática os ditos e teses dessa esquerda institucional e termine por assumir, a própria classe, os rumos de sua luta. Para isso, faz muita diferença construir uma esquerda que não se institucionalize e que mantenha viva como prática política a luta cotidiana pela revolução socialista. Mais do que isso, é decisivo que exista uma esquerda que diante de rebeliões e revoltas, como continuamos vendo na América Latina, atuem no sentido de que essas irrupções de violência de classe se transformem em verdadeiros processos revolucionários impedindo que sejam desviados para as instituições. A relação dialética entre o avanço da auto-organização nestes processos e a construção de um partido revolucionário internacionalista é fundamental para ter uma estratégia para vencer. É essa esquerda revolucionária que é preciso construir no Brasil, superando todas as variantes reformistas e neorreformistas que trabalham para a conciliação de classes do PT e que portanto terminam sempre abrindo espaço para a direita e a extrema direita e impedindo o surgimento de um caminho de fato revolucionário.


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FOOTNOTES

[1Em seu momento, Daniel Bensaïd assinalou que após a derrota do ascenso de 68 na França, iniciou-se um movimento de retirada e deserção do campo estratégico; nela, Foucault e Deleuze apareciam como expressão do "grau zero da estratégia". Em sua crítica ao pensamento de 68: “Se a estratégia reside na ‘escolha de soluções que assegurem o êxito’, e se o desencanto da época conduz à conclusão de que não é possível uma solução que assegure o êxito, a noção de estratégia, reduzida a zero, já não tem muito sentido”. Ver: Bensaïd, Daniel, Elogio de la política profana, Barcelona, Ediciones Península, 2009.

[2No ano 2000, em Cochabamba, terceira maior cidade da Bolívia, a população, com forte composição indígena, levanta-se contra a privatização da água na região.

[3Em janeiro de 2005, uma contundente paralisação civil paralisou El Alto e, poucos meses depois, deu-se um novo processo de levante de massas que, nas jornadas revolucionárias de maio-junho, desmascarou las maniobras da direita, derrubou Carlos Mesa, então presidente da Bolívia, e obrigou a classe dominante a adiantar as eleições gerais, organizando um desvio eleitoral com o breve interinato de Rodríguez Veltzé, o que viabilizou o acesso de Evo Morales ao gobierno, como única carta sólida para desviar o ascenso.
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Diana Assunção

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Vitória Camargo

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