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Entrevista com Carolina Catini: "O Novo Ensino Médio representa a classe dominante"

Redação

Entrevista com Carolina Catini: "O Novo Ensino Médio representa a classe dominante"

Redação

Entrevista concedida para o Jornal Gramsche, do IFSP e publicada em dezembro de 2022, com pequenas modificações feitas pela autora para o Esquerda Diário em fevereiro de 2023. Publicado originalmente com o título de “As novas formas do domínio empresarial sobre a educação - o Novo Ensino Médio não nos representa, representa a classe dominante.” Carolina Catini é professora livre docente da Faculdade de Educação da Unicamp.

Seus trabalhos apontam a existência de um processo de subordinação cada vez maior do “trabalho social” ao poder empresarial. Em linhas gerais, o que seria este processo na educação? E como ele se relaciona com o que você caracteriza como “reforma empresarial” do Ensino Médio? Este é um tema que nos toca diretamente, pois nos Institutos Federais vivenciamos o problema de como preservar nossa proposta original de educação diante da implementação da reforma do Ensino Médio.

O que conhecemos como “direitos sociais” está sendo radicalmente transformado. Chamo de “trabalho social” para manter a seguinte questão em aberto: poderíamos continuar chamando de direitos sociais serviços gratuitos e fundamentais para reprodução da vida de trabalhadores e trabalhadoras, ainda que eles estejam sendo privatizados e financeirizados por um processo complexo de subsunção corporativa empresarial? Estou certa de que se trata de uma mudança paradigmática, mas que ainda não se completou de modo que sua estrutura ainda está de moldando. Trata-se da tomada de controle empresarial de tais serviços sociais que está se estabelecendo por diversos processos em cada setor, e que demandaria uma análise da privatização do conjunto dos direitos sociais básicos – educação, saúde, assistência social, cultura e segurança.

Da ONG que assumiu responsabilidade por direitos sociais desde os anos 1990 até fundos sociais do mercado financeiros destes anos 2020 há muita história, passando pelas fundações e institutos privados de bancos e empresas que, no caso da educação, tem dado a linha da política educacional e das mudanças nas práticas pedagógicas e de gestão escolar.

Basicamente, o processo de transferência da gestão dos serviços sociais para organizações sociais privadas do qual falamos desde a reforma do aparelho do Estado dos anos 1990, no governo FHC, está se concluindo e, com isso, estamos podendo verificar a alteração qualitativa das relações sociais que envolve a produção dos trabalhos sociais. Muitas terceirizações de atividades-fim foram colocam em prática muito antes de sua legalização recente, mas foram chamadas de convênios e parcerias, escamoteando esse tipo de contrato de serviços. Hoje a diversificação de tipos de organizações privadas que prestam serviços sociais é imensa, mas está cada vez mais controlada por grandes corporações organizadas em conglomerados de fundações e institutos empresariais. Mesmo as ONGs mais ligadas a grupos de interesses e pautas específicas estão sendo cada vez mais alvo de investimento empresarial. Desse modo, o interesse empresarial em colocar toda essa capacidade de trabalho social educativo a seu serviço é bastante evidente. Acho que as nomenclaturas que se referem a tais serviços como “filantropia empresarial” também atrapalham, uma vez que que trata de outra coisa, que nada tem a ver com poder empresarial exercido em outros momentos históricos de fazer “caridade” para manutenção do poder de classe. Hoje a relação é bem mais complexa do isso, e está relacionada às “estratégias ESG” das empresas, que é sigla em inglês para ambiental, social e governança, três critérios de regulação do mercado financeiro que dirige investimentos às empresas e dividendos aos acionistas.

A Reforma do Ensino Médio é caso muito emblemático por ter se tornado bandeira de todas as empresas há muito tempo, junto com os programas de ensino integrais, a BNCC, os itinerários formativos, a “flexibilidade” curricular. A flexibilidade só não existe para escolas e institutos federais que tinham seus projetos bem consolidados de ensino médio e estão tendo que engolir o plano do empresariado ou estão resistindo a ele. A reforma do Ensino Médio não é bandeira de um ou de outro partido político, mas do empresariado que está controlando os serviços educativos. Todas as empresas apresentam as mesmas pautas nos sites de seus braços sociais e estão extremamente organizadas para colocar tudo em prática, sob a ação corporativa. Por isso a pauta da revogação da Reforma envolve toda essa organização.

E por isso também são tão importantes nossas resistências: o NEM não nos representa e nem representa algum lado da luta política partidária institucional, ele representa a classe dominante. Ou melhor, representa o projeto de formação do patronato para filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras. Ele é resultado das articulações feitas dos esforços dessa gente que se julga “militante” da educação de qualidade. É brutal o que isso significa do ponto de vista da precariedade da formação da juventude que estão impondo, em conjunto com as mudanças na gestão do trabalho docente. O significado dessa subsunção empresarial da educação é a privação da formação intelectual e preparo tosco para o empreendedorismo para estudantes, junto com a gestão empresarial do trabalho docente. Com a militarização de todo tipo que continua em curso, é concorrência e gestão policialesca de relações educativas. No fundo, é uma formação que fortalece a direita e a extrema direita, apesar de se apresentar como “alternativa democrática”.

Um dos pontos interessantes de seu trabalho é a análise dos sujeitos que lutam pela privatização da educação e tem muita influência sobre o Estado e a sociedade. Nos grandes meios de comunicação vemos a divulgação de uma série de iniciativas que valorizam a educação, o famoso “Todos pela educação”, por exemplo. Gostaríamos que abordasse esta questão, ou seja, quem são os atores da privatização e as estratégias por eles utilizadas.

O fato de as pesquisas educacionais olharem mais para as esferas tipicamente consideradas estatais nos desvia atenção de quem efetivamente tem controlado as políticas e do poder empresarial de organização da sociedade, como Estado amplo. O poder das empresas está nos modos pelos quais ela produz mercadorias e serviços, nos moldando enquanto consumidores e trabalhadores e trabalhadoras, e obviamente, com isso, ela faz política empresarial, pois nos gerencia tanto em nosso trabalho, quanto em outras relações importantes da vida. Mas hoje a política empresarial se expande muito mais. Em primeiro lugar, poque as empresas se dedicaram a exterminar a imagem negativa de quem existe em função do lucro, de que são indiferentes aos danos que nos trazem por explorarem trabalho e recursos naturais, serem responsáveis por produtos que degradam a natureza e a nossa saúde, etc., mas também por solapar movimentos grevistas e anticapitalistas que tinham na empresa o lugar do inimigo. Em duas décadas quase desapareceu a oposição de classe que vinha à tona por essa relação antagônica e ligada a um determinado tipo de luta direta que não tem mais expressão – o que também diz respeito à mutação das formas organizacionais das empresas, com uma cadeia produtiva cheia de terceirização ou gestão por aplicativos, que escodem relação de contrato de trabalho. Pelo contrário, as lutas populares passaram a se concentrar nos direitos sociais, cada vez mais privatizados, e para os quais o empresariado também passou a se apresentar como militante. Em tempos de refluxo de lutas com conteúdo popular como foi a última década desde junho de 2013, até mesmo um direito privatizado era dado como conquista... Mas enfim, o discurso de defesa de direitos sociais se deu em conjunto com uma atuação prática cada vez mais capilar, por meio de projetos e programas sociais de institutos e fundações ligados às empresas que passaram a oferecer “direitos sociais”, com crescente organização sobretudo a partir dos anos 2000, com o começo da organização por fusões dessa parte social das empresas. Um marco importante na educação é a criação do Todos Pela Educação, em 2006.

Apesar de se autodenominar Organização Não Governamental sem fins lucrativos, o TPE foi criado pelo então Ministro de Educação, Fernando Haddad, em conjunto com o alto empresariado nacional e não está longe do poder estatal e nem do dinheiro. Não é por acaso que programa de educação daquele governo chamava “Compromisso Todos Pela Educação” e que ao mesmo tempo que se identifique com uma ONG, tenha uma forma empresarial. Trata-se de um grande conglomerado de empresas sociais ligadas a grandes corporações e instituições financeiras, como Itaú, Unibanco, Gerdau, Grupo Pão de Açúcar, Ifood, B3, etc. Cada uma dessas empresas, por meio de sua atuação social, captura recursos estatais, por isenção de impostos e parcerias, mas doa ao TPE recursos para a criação de um fundo próprio, com o qual eles investem em programas sociais educativos, ou melhor, em negócios de impacto social, como agora é moda dizer no mundo corporativo: investimentos privados em negócios sociais que dão retornos lucrativos ou não lucrativos para as empresas. Mesmo que haja mesmo retorno não lucrativo, eles são importantes pois dizem respeito à imagem da empresa, ao controle efetivo das relações educativas, à capacidade de exercer influência para mudar leis e aprovar políticas e alterar as leis, isto é, o famoso lobby que o empresariado passou a dar o nome elegante de advocacy.

Essa atuação nas altas esferas se dá em conjunto com a atuação no cotidiano dos projetos e programas, criando uma esfera de atuação social, nas “parcerias” com escolas, secretarias de educação, instâncias estatais de formação continuada de professoras/es, mas também com atuação na educação não formal”, com o qual fez crescer um mercado de trabalho informal de educação, por meio de editais e outras contratações precárias, o que constitui uma nova massa de trabalhadoras e trabalhadores de educação que realiza alguns direitos à educação, cultura, assistência social de maneira intermitente e precária, sem ser parte do funcionalismo público e estável. Mas também alterando a cultura de quem recebe tais serviços, pois de fato, não aparece mais como “dever do Estado”, uma vez que são empresas que se mostram como “militantes engajadas” que oferecem serviços à população porque querem, não porque passaram a usar recursos de impostos que antes pagavam ao Estado para que ele organizasse diretamente os direitos sociais.
Assim, as empresas passaram a organizar parte dos direitos sociais, isto é, além de controlar a produção, passam também a controlar a reprodução social de trabalhadores e trabalhadoras. As empresas têm feito isso por muitos mecanismos, mas um deles é pela tomada de controle de cada uma das esferas e instâncias da educação básica e da formação de professores e professoras, submetendo-as cada vez mais à sua própria forma social, o que inclui tomada de decisões políticas e operacionalização de cada uma das “políticas”, dentre as quais destacamos a Reforma do Ensino Médio e a transformação de escolas regulares em escolas de tempo integral, cujo programa tem nomes distintos em cada estado, mas é o mesmo programa que no estado de SP leva o nome de PEI – Programa de Ensino Integral. A essa tomada de controle podemos chamar de subsunção corporativa da educação. O Todos Pela Educação é uma empresa, não uma ONG. Isso pode ser visto em seu próprio estatuto no qual está descrito o funcionamento de uma empresa social, com operações no mercado financeiro e cujos rendimentos financia novos projetos de dominação da educação, tomando cada vez mais espaços da gestão da educação e formação da juventude.

Pensando agora sobre quem está do outro lado, o sujeito que está na base do processo, como os estudantes. Tivemos em 2015 um dos mais interessantes movimentos de defesa da educação no mundo, com estudantes secundaristas abraçando e ocupando suas escolas e, em alguns casos, até exercendo práticas de autogestão para ocupá-la, preservá-la e defendê-la. O que ocorreu com aquele impulso democrático, foi absorvido?

O que ocorreu foi complexo e envolve heterogeneidade do movimento secundarista e das tratativas repressivas em cada estado. Mas o que é certo dizer é que, com graus distintos, o processo de recuperação de tais lutas se deu na mesma medida em que o empresariado e os aparatos de segurança pública estavam inseridos nos sistemas escolares e reprimiram movimentos nas ruas e nas próprias escolas. A militarização das escolas teve um salto durante governo Bolsonaro pela militarização da gestão escolar, mas cresceu muito de 2013 a 2018, por meio de diversos programas novos e extensão de programas já existentes. Tais programas envolvem segurança de escolas, programas de “convivência” e formação para cidadania, que que envolve também parcerias para projetos pedagógicos com PM e exército. Uma das corporações mais violentas do mundo é educadora da juventude. Seria importante dar mais atenção a tal análise. Mas quero chamar atenção aqui para a diferença dos aparatos de contenção das lutas que se criaram depois das jornadas de junho de 2013, com os quais estudantes tiveram que lidar. Do ponto de vista do Estado amplo, um movimento descentralizado, sem controle e com alto grau de radicalidade na forma de luta direta pelas ocupações, tinha que ser contido e desbaratado.

Neste sentido, a reação empresarial foi bastante cirúrgica no estado de SP. E ao contrário da ação dos aparatos repressivos, buscou abarcar isso mesmo que vocês chamam de “impulso democrático”, agindo como se estivesse ao lado da luta. A começar pelas declarações dos representantes da privatização da educação como Neca Setúbal, que me lembro bem. Ela disse que estudantes estavam “dando aula de democracia”, com a intenção de apresentar o movimento estudantil de ocupações contra a reorganização e o movimento empresarial de reforma do ensino médio como uma grande sinergia na direção de grandes transformações que o sistema educacional precisaria passar, como a reforma do ensino médio que está sendo desenhada pelo empresariado desde os anos 2000. Também ainda com as escolas ocupadas, institutos e fundações empresariais envolvidas com a educação começaram a convidar estudantes para falar em seminários, integrar projetos de protagonismo, enfim, participar de eventos e programas empresariais. Com todo dinheiro que investem na comunicação, a difusão de tais atores empresariais ao lado da luta estudantil forçou uma imagem de um empresariado democrático e engajado nas mudanças. A reorganização que estava em curso, continuou no estado de SP, com fechamento de diversas turmas e escolas, sobretudo no período noturno, ao mesmo tempo que o empresariado conseguiu transformar a pauta estudantil que se referia à estrutura da educação básica e atendimento da demanda educacional em pautas relativas à diversidade. Essas também eram pautas do movimento, mas foram cindidas da questão da organização da educação básica.

Um instituto importante na educação, como o Itaú Social, ligado à Neca Setúbal, que também é parte de conselhos de vários outros institutos sociais do Itaú e fez parte da equipe de transição da educação do governo Lula, já estava mudando suas políticas para juventude desde 2013, bem ligados na movimentação. Neste mesmo ano finalizou o Programa Jovens Urbanos e depois deu início a outro programa de educação não formal, que, no entanto, não deu continuidade. Me parece que decidiram focar completamente na escola, com diversificação dos programas não formais direcionado a outros públicos-alvo (basta ver o site da fundação Tide Setúbal – tem editais para empreendedorismo feminino, para lideranças negras, para jovens LGBTQIA+, etc). Durante a pandemia criaram o Itaú Educação e Trabalho, instituto que tem se dedicado a criar um sistema novo de articulação entre sistema produtivo e escolas. Mas outros institutos do Todos Pela Educação, que fazem formação no contraturno escolar da juventude periférica, passaram a atuar mais enfaticamente no sentido de “transformar a liderança de ocupação em liderança empreendedora”.
Como ação coordenada do empresariado, o lobby foi para alterar as políticas relacionadas ao grêmio estudantil, com a instauração de editais para concorrência por recursos. Estudantes passaram a ter que enviar um projeto para secretaria estadual de educação e concorrer com outros grupos que enviaram projetos de outros tipos. Claro que além do mapeamento de grupos de estudantes no ensino médio, as linhas do edital acabam circunscrevendo a própria ação dos grêmios, uma vez que se voltava à infraestrutura escolar, com o adendo da relação de concorrência entre pares para arrecadar recursos para uma atividade política, o que, aos poucos vai mudando a cultura escolar e envolvendo ela numa dependência de captação de recursos, dentro de um amplo escopo do que significa o empreendedorismo. Enfim, foram estabelecidos diversos laços de ligação entre estudantes, empresas, recursos, que de alguma forma colocam estudantes sob tutela na rede estadual de São Paulo.
O maluco é que com a extrema direita no poder, de fato, essa parte do empresariado ligada ao Todos Pela Educação ganhou uma imagem democrática. Mas é discurso e propaganda. No chão das escolas, o que se vê é o oposto.

Pensando agora em outro personagem central deste processo, as professoras e professores. Como fica o trabalho docente frente à privatização da educação?

Eu e João Branco, da Faculdade de Educação da USP, escrevemos um artigo sobre isso, feito com base em entrevistas com professoras e professores das redes públicas, que trabalham em escolas que contam com intervenção empresarial. Vai sair na revista Pesquisaeduca, de Santos. Vou resumir aqui os três pontos que detectamos como os mais relevantes: a apropriação privada empresarial leva a uma expropriação da política, a uma nova divisão do trabalho, assim como o empresariamento da educação escolar tem consolidado uma forma de avaliação constante, que leva a uma seleção de dentro para fora, isto é, leva a uma expulsão de professores e professoras com desempenho mais baixo. Essa avaliação 360 tem se consolidado das escolas do Programa de Ensino Integral (PEI) do estado de São Paulo e é uma tecnologia de gestão na qual a regulação das relações se dá pela possibilidade constante de ser considerado insuficiente. Com isso, docentes podem ser “cessados” ou “cessadas” do programa, como punição.

Só para dar mais elementos acerca destes três pontos, notamos que era comum nas entrevistas os relatos de que docentes não puderam decidir sobre os tipos de “parcerias” com empresas, pois não foram criados espaços de decisão coletivos, simplesmente projetos e programas do instituto Ayrton Senna, ou da Lemann foram implementados nas escolas ou secretarias de educação sem que houvesse consulta e debate. Isso ocorre ao mesmo tempo em que os conselhos de escola deixam de existir, sendo transformados em conselhos “proforma”, que só existem para legitimar decisões já tomadas em outras instâncias ou, ainda, o que é muito mais grave, mas se tornou comum, se transformaram em “conselhos fictícios”. Estes últimos são aqueles em que a comunidade escolar assina uma ata em branco, elaborada à posteriori pela gestão escolar. Esse processo é orgânico a essa nova divisão do trabalho, uma vez que indica maior centralização na mão dos gestores, que passam há tempos por uma formação de quadros pelas empresas como “lideranças”, por diversos projetos.

A terceirização da formação continuada de professoras e professores por tais entidades privadas faz parte dessa nova divisão de trabalho, uma vez que se volta também a expropriar o tempo de estudo e reflexão qualitativa sobre a prática: é unanimidade entre as pessoas entrevistadas falar da precariedade da formação oferecidas por profissionais ou coachs, com temas e práticas muito mais motivacionais do que temas que realmente precisam ser estudados para dar conta da educação no atual contexto.

A avaliação 360 é uma prática empresarial que, ao que tudo indica, foi inventada na Segunda Guerra Mundial como forma de avaliação de soldados. Isto é, feita para avaliar as condições de trabalho em situações de maior densidade de estresse e degradação das relações. Basicamente é uma avaliação onde todo mundo avalia todo mundo o tempo todo. Parece mesmo um reality show ou um jogo de eliminação, tanto que, indagada sobre a avaliação, uma professora respondeu: “é o Black Mirror”. É uma avaliação que parece meritocrática, mas como ela tem pouca objetividade, ficando muito mais à deriva das “opiniões” de mães, pais, alunos, direção, etc. acerca do trabalho docente, há um grau de arbitrariedade e subjetividade muito grande. As competências que ela mensura são comportamentais. Daí que vem o problema maior que decorre desse método de gestão do trabalho docente: como ela se refere a condutas e comportamentos, ela induz a uma atividade muito performática. A escola estatal, assim, vira uma grande representação de papeis, mais preocupados em gerar índices e “evidências” de que tudo vai bem, do que de fato preocupada com o processo de ensino e aprendizagem. Claro que são muito distintos os graus de controle que se estabelece por esse método, a depender de sua aplicação pela gestão, mas não me parece que haja qualquer aspecto positivo do uso de tal procedimento na educação. Ela degrada ainda mais as condições de trabalho e os relatos que coletamos são bastante impactantes a esse respeito.

Então, fica claro que na gestão do trabalho também se vê todo o despotismo do capital, que nada tem a ver com alguma ideia de democracia.

Para finalizarmos, e agradecendo muito por sua contribuição, como educar para além do capital hoje? Percebe algo na sociedade que aponte nesta direção?

Acho que nada de muito relevante pode ser criado sem enfrentar o desafio de compreender essa nova forma social educativa que está se consolidando pela subsunção empresarial. Uma educação para além do capital hoje tem que ser antagônica à educação capitalista, ao mesmo tempo em que deve dar respostas às demandas de nosso tempo. As experiências históricas de educação para emancipação e para as lutas sociais são importantes demais, sobretudo para vermos como em situações limite, como durante o fascismo ou a ditadura militar, militantes criaram formas de educar para libertar e fortalecer os movimentos sociais de contraposição ao sistema de dominação econômica, política e social. Mas também para vermos como elas não se fizeram sem a crítica radical da educação, como o caso de Paulo Freire, que criou uma experiência fora da escola para dar a resposta que a escola não dava, mas num tempo de ascensão dos movimentos populares e numa conjuntura muito diversa da nossa. Todas elas são inspirações e contém aprendizados importantes. Mas não há como transpor para uma conjuntura de grande transformação de relações de trabalho e significado da política como a nossa.

Eu não tenho encontrado nada a essa altura de organização no atual contexto, mas certamente estão ocorrendo experiências educativas pequenas aqui e ali, que mantém espaço de resistência e criação de novas de educar e lutar. Me refiro à experiências que ainda existem dentro de movimentos sociais que não foram completamente abarcados pelo Estado e pela financeirização, e não deixaram a educação ser controlada ideologicamente. Mas também à experiências de bibliotecas e cursinhos populares autônomos, práticas educativas de redes de familiares de presos e presas, assim como às práticas de educação ligadas às lutas indígenas, feministas, trans, antirracistas, etc, que mantém sua autonomia em relação ao capital.

De todo modo, eu acho que estamos em tempos de aprender a lutar contra novos inimigos e uma relação educativa completamente nova. Mas vejo força nas lutas de resistência contra o Novo Ensino Médio em alguns estados e daí podem sair coisas novas, formas de luta mais adequadas ao contexto.

A reforma precisa ser revogada e, embora não haja abertura para esse debate no novo governo, que fala apenas em fazer ajustes, a pressão está crescendo na medida em que outros estados vão implementando e mais gente se dá conta de seus efeitos deletérios. Haverá também contraposições a tais condições de trabalho docente, bem como às questões salariais e à toda precariedade de formação da juventude trabalhadora.

Precisamos nos organizar para dar continuidade às lutas que virão na forma de revoltas para que elas não sejam rapidamente transformadas em instrumentos da classe dominante.

E sou eu quem agradece a possibilidade de conversar com vocês e lançar mais essa leitura para contribuir com a crítica, que deve ser feita de modo coletivo.

Carolina Catini é professora da Faculdade de Educação da Unicamp, autora de Privatização da educação e gestão da barbárie (Lado Esquerdo, 2017).


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