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Entrevista com Fernando Cássio: "O único caminho possível para a Reforma do Ensino Médio é o aprofundamento de desigualdades"

Redação

Entrevista com Fernando Cássio: "O único caminho possível para a Reforma do Ensino Médio é o aprofundamento de desigualdades"

Redação

Essa é uma entrevista concedida ao Ideias de Esquerda, por áudios transcritos, pelo professor Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em Ciências (Físico-Química) pela USP e colunista da Carta Capital.

1) IdE: A Reforma do Ensino Médio foi a primeira MP aprovada por Temer logo após o golpe institucional de 2016, demonstrando a sanha do capital em aprofundar os ataques também na educação. Como você analisa a aprovação da reforma naquele momento e quais são os interesses que a sustentam até hoje, mesmo com todo o rechaço de professores e estudantes?

Bom, o governo do Michel Temer foi um governo ilegítimo, e até as pessoas que não concordam em chamar de golpe são obrigadas a reconhecer que foi um governo com baixíssima legitimidade social. Então, quer dizer, todas as reformas regressivas, a Emenda Constitucional n. 95/2016, foram feitas sem a produção de um mínimo de consenso social. Então, uma reforma como a do Ensino Médio, que promove esses efeitos tão nefastos, que barateia a educação dos mais pobres, só poderia ter sido aprovada num governo que não tivesse nenhum compromisso com as escolas, com as pessoas, com os movimentos, com os professores, com ninguém. Num governo que minimamente tivesse alguma base popular teria sido diferente, veja o governo Lula, a dificuldade que está tendo para manter a reforma. Essa dificuldade vem desse fato. Se um governo tem uma base popular e se um governo faz um discurso de diálogo e de debate com a população, ele não aprova uma reforma como essa. Ele não consegue fazer porque, essencialmente, a Reforma do Ensino Médio é uma reforma antipovo. Eu não digo nem antipopular, é antipovo mesmo. Ela visa de fato reduzir as possibilidades da juventude mais pobre, reduzir as possibilidades daqueles que mais precisam de escola. Nesse sentido, a reforma dá menos escola para quem mais precisa de escola. Então ela só poderia ter sido aprovada naquele momento, e os interesses que estavam (e estão) por trás são os interesses de uma elite econômica que é minoria no país. É incomparável, em termos numéricos, uma meia dúzia de fundações empresariais ligadas a bancos e secretários de educação, vassalos dessas mesmas fundações, a todo mundo que está rechaçando vocalmente essa reforma. Essas pessoas têm um projeto político-econômico de formatar a educação do país. Na verdade, de controlar a economia do país e, para isso, manter determinadas estruturas sociais inalteradas. E, para isso, é necessário um projeto educacional que vai trabalhar para o projeto societário mais amplo de manter essa pequena elite como elite e de manter as massas exatamente aonde estão.

2) Em artigo recente na Carta Capital, o senhor disse que “rever” a reforma, tal como propõe o atual governo federal, seria o mesmo que nada. Entretanto, o governo até o momento não aparenta nenhuma vontade em revogar o novo Ensino Médio e, inclusive, é composto por inúmeros políticos, além do empresariado, entusiastas do mesmo. Como o senhor entende a relação do atual governo com a reforma e quais os caminhos para além dele podem ser tomados para a revogação?

Eu de fato não acredito que a Reforma do Ensino Médio possa ser reformada, revista, ajustada ou aprimorada, porque entendo que é uma questão de concepção, não é uma questão de implementação. “A reforma está sendo mal implementada, por isso está produzindo esses efeitos nefastos de aprofundamento de desigualdades”, não é disso que se trata. A Reforma do Ensino Médio nasceu pra isso. Ela não tem outro caminho possível que não seja aprofundar desigualdades. Porque ela é uma reforma que não envolve a construção de uma sala de aula, a expansão das escolas técnicas, a melhoria de condições de trabalho e do salário docente, a permanência estudantil na educação básica para estudante trabalhador, nada. Não tem nenhuma medida dentro da reforma que lide com problemas estruturais da educação brasileira. Portanto, ela só pode manter e produzir novas desigualdades. A minha leitura é que o Lula é a pessoa que está mais à esquerda no governo federal. Agora, os ministros não são o Lula. Veja o Ministério da Educação (MEC), que é coordenado por um ministro, uma secretária executiva e um monte de secretários e diretores com uma vinculação ideológica muito forte com as fundações empresariais e os institutos empresariais ligados a bancos – os mesmos que estavam lá em 2016 abraçados com Temer. Então, em relação à da reforma, o MEC não começou o governo em janeiro com a intenção de lidar com o problema. Nos primeiros dias de janeiro, o MEC estava publicando post nas redes sociais elogiando a reforma. Tiveram que apagar as postagens por conta da enxurrada de críticas. O ministro Camilo Santana já disse que não tem a menor intenção de revogar a reforma. Então, eles agora estão nesse movimento de consulta pública etc., que é mais no sentido de ganhar tempo e de amenizar a fervura do que propriamente de produzir alguma coisa.

O Ministro da Educação concorda com a reforma. Ideologicamente, ele concorda com os princípios da reforma. Ele pode até dizer agora, depois de vermos milhares de estudantes na rua contra a reforma, que “ela tem problemas, que precisamos rever, etc.”. Está sendo obrigado a isso. Mas, em termos de concepção, ele concorda. Então, será preciso pautar a revogação independentemente da vontade do ministro. Tecnicamente o que é a revogação de uma lei? É um processo legislativo, implica você aprovar uma lei para revogar a outra. Agora, para o Executivo, para o MEC, para o governo Lula, é muito fácil dizer “a gente depende do legislativo pra isso” para não fazer nada. A gente está ainda nos primeiros seis meses de governo. O Executivo precisa sinalizar apoio à revogação. Tem muito deputado da base do governo que já manifestou apoio à revogação, e que só espera uma sinalização política do MEC para disparar o processo legislativo. Então, o problema é que o ministro é favorável à Reforma do Ensino Médio e nós estamos nesse impasse. A gente tem um governo que foi eleito com uma expectativa popular de reconstituição de direitos, de desfazimento de retrocessos, mas que ao mesmo tempo tem um MEC comprometido com o programa educacional do governo do Michel Temer. Acho que nós temos de fato um problema, e não é à toa que as ruas no dia 15 de março no país inteiro estavam lotadas de estudantes secundaristas pedindo a revogação da reforma do Ensino Médio. O governo Lula precisa ouvir mais as ruas e menos as fundações empresariais que estão aninhadas no MEC.

3) Em outros momentos, o senhor chegou a apontar como o Novo Ensino Médio aprofunda a desigualdade, sobretudo para os alunos de escola pública. Nesse sentido, qual “projeto de vida” a reforma destina para os estudantes mais pobres e qual a diferença da aplicação dela na rede privada e pública?

Em linhas gerais, o Novo Ensino Médio não só aprofunda a desigualdade entre a escola pública e a escola privada, pois essa desigualdade sempre foi enorme. Ele cria novos mecanismos de estratificação dentro das redes públicas. Nas redes públicas, estudam 88% dos estudantes do Ensino Médio no país, então não é só gente extremamente pobre que está no Ensino Médio público. Tem gente de classe média, tem gente extremamente pobre, tem gente que ganha pouco, tem gente com mãe e pai com emprego intermitente, tem estudante trabalhador que é arrimo de família, tem de tudo. Então o que a reforma faz é criar novos mecanismos de indutores de desigualdades, privilegiando alguns dentro da rede pública em detrimento de outros, que estão tendo uma escola pior.

Muita gente diz, especialmente quem defende a reforma e diz que não é bem assim, que é muito forte dizer que a Reforma do Ensino Médio visa formar mão-de-obra barata, que ela visa formar uma força de trabalho para um mundo do trabalho uberizado, plataformizado, desregulamentado e precarizado. Mas tudo o que os dados já disponíveis mostram é que é justamente isso que o está acontecendo. Talvez a coisa mais reveladora disso é perceber que o estado de São Paulo está distribuindo para os professores materiais de orientação curricular dos itinerários formativos do Ensino Médio em cuja ficha técnica se lê, entre os “apoiadores” do material o iFood, uma empresa que lucra com a superexploração de jovens com escolarização precária. Acho que isso é a alegoria perfeita do que essa reforma significa. O governo de São Paulo não tem nem vergonha de chamar o iFood para contribuir com o material didático de orientação aos professores da rede de ensino.

4) Além do Novo Ensino Médio, foram aprovadas outras reformas, tal como a da previdência e trabalhista, ambas que também atingem a juventude trabalhadora. Como o senhor avalia a relação entre as reformas?

A reforma do Ensino Médio não está sozinha. Ela é irmã gêmea das reformas da previdência e trabalhista. As três são filhas de uma reforma maior, que é a Emenda Constitucional n. 95/2016, que é o Teto de Gastos, um nome pomposo para escamotear o grande princípio antipovo do governo de Michel Temer: o povo não cabe na Constituição. Você cria uma barreira para o gasto social do governo, mas não impõe a mesma barreira para o gasto financeiro com o pagamento de dívidas públicas com credores, financistas e assemelhados. É interessante ver que, mesmo na esquerda, o debate educacional não é muito desenvolvido, porque o foco dos movimentos sociais, dos grandes protestos, ficou entre as reformas da previdência e trabalhista, cujos efeitos na aposentadoria e no salário do mês eram imediatos. A Reforma do Ensino Médio, que foi tratada como uma coisa abstrata, com efeitos de médio prazo etc., está estourando agora. Eu considero um erro de estratégia achar que a Reforma do Ensino Médio é algo menor e menos importante. O fato concreto é que tivemos derrotas muito grandes no campo da previdência e da legislação trabalhista, mas com a Reforma do Ensino Médio estamos resistindo junto com os estudantes que estão sofrendo lá nas escolas. A Reforma do Ensino Médio sempre esteve junto com as outras reformas. Todas respondem a um mesmo projeto de barateamento do Estado no que se refere aos direitos sociais da maioria.

5) Com o Novo Ensino Médio, vários professores também estão ficando sobrecarregados, tendo que atuar em disciplinas que sequer receberam formação adequada, para não mencionar o esvaziamento dos conteúdos. Todavia, os docentes seguem tendo que se submeter à precarização como forma de garantir o sustento de suas famílias. Como o senhor encara a precarização do trabalho, para além dos trabalhadores de plataformas, também na carreira docente?

A reforma do Ensino Médio tem como efeito inevitável a intensificação do trabalho docente. Na propaganda da reforma, havia a ideia – aparentemente tão moderna – de eliminar as 13 disciplinas do Ensino Médio, que seria “um excesso”. Pois bem, hoje o estado de São Paulo tem 66 componentes curriculares divididos em 276 unidades curriculares, tudo ministrado pelos mesmos professores que ministravam as 13 disciplinas. Agora imagine: quantas unidades curriculares diferentes ministra um professor? O professor que ministrava um curso agora ministra doze cursos diferentes, com o mesmo salário, o mesmo tempo de preparação de aulas e de avaliação, as mesmas condições de trabalho e a mesma estrutura de carreira. Então, não é à toa que faltam professores nas escolas. Há professores que não conseguem assumir tudo, diretores que não conseguem atribuir todas as aulas a todos os professores, e tudo isso gera uma falta crônica de professores no estado de São Paulo, o mais rico do país e o primeiro que implementou a Reforma do Ensino Médio em escala. Para piorar, o estado de São Paulo não realiza concursos públicos para a contratação de professores do ensino médio há dez anos. A precarização do trabalho docente é ainda maior do que antes, pois agora nem mesmo se exige que um professor tenha a formação adequada para atuar num itinerário X ou Y. Ou seja, a reforma que viria supostamente para modernizar a escola – pois é essa ideia do Novo Ensino Médio –, é , na verdade, um retrocesso profundo. Por isso, eu respondo a quem diz “ah, revogar significa voltar ao péssimo Ensino Médio anterior”: antes fosse! O Ensino Médio anterior, com todos os seus problemas, era muito melhor do que o “novo”. Este é uma tragédia social. Nesse sentido, a revogação da Lei n. 13.415/2017 é o primeiro passo, a deflagração de um processo de construção política de um modelo de Ensino Médio minimamente consensuado na sociedade. O Governo Lula precisa vir para esse debate, sem tentar enrolar utilizando mecanismos participacionistas que colocam em grau de equivalência a fundação empresarial e os sindicatos, como se tudo fosse a mesma coisa. Este é o tema da nossa luta corrente.


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