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Espontaneidade e consciência: os caminhos da auto-organização para Rosa e Lênin

Diana Assunção

Ilustração: Isadora de Lima Romera | @garatujas.isa

Espontaneidade e consciência: os caminhos da auto-organização para Rosa e Lênin

Diana Assunção

Neste artigo buscamos resgatar a obra Greve de massas, partido e sindicatos, de Rosa Luxemburgo, sobre a grandiosa Revolução Russa de 1905 para abordar as diferenças entre Rosa e Lênin sobre “espontaneidade” e “consciência” como parte do combate às burocracias sindicais.

O 1905 russo foi precedido por um importante contexto, especialmente de greves. A coroação de Nicolau II, em 1896, foi um momento de viragem. Marcou a ruína próxima da fé que as massas depositavam no absolutismo e a primeira aparição do proletariado na arena histórica. Enquanto milhares de pessoas tinham ido saudar o novo tsar e foram, inclusive, pisoteadas, 40 mil operários em Petersburgo entravam em greve porque não estavam dispostos a sacrificar seu salário nos três dias de coroação no altar do tsarismo. Depois, em 1897, veio o primeiro êxito: a jornada de trabalho legalizada de onze horas e meia. Isso já mostrava que a propaganda social-democrata estava penetrando nas massas populares. Foi aí que Lênin começou a atuar em Petersburgo, o que significou, segundo Paul Frölich, importante biógrafo de Rosa Luxemburgo, que na Rússia o socialismo passou da pura teoria à ação, do sistema de círculos para o movimento de massas.

Em 1898, um pequeno grupo de pessoas fundou a social-democracia russa. Foram anos de trabalho por baixo (trabalho de base), cujo primeiro efeito veio em 1902, com uma greve de massas em Batum. Em 1903 e 1904, as greves foram se alastrando pela Rússia, e a maior parte delas terminou em batalhas sangrentas nas ruas e influenciaram várias revoltas de camponeses contra proprietários de terras. No começo de 1905 foi deflagrada uma greve na fábrica Putilov, em Petersburgo, devido a demissão de dois trabalhadores e, em 20 de janeiro, já eram 140 mil grevistas e a greve assumia um caráter político claro. Curiosamente este processo estava sendo dirigido por um padre chamado Gueórgui Gapon, ainda que, ali na retaguarda, estava a social-democracia levando as ideias revolucionárias e disputando a direção.

A massa de trabalhadores ainda tinha uma enorme ilusão de que o tsar era o pai do povo e queriam pedir a ele os seus direitos. Em um domingo, dia 22 de janeiro, 200 mil trabalhadores foram para o Palácio de Inverno com imagens do tsar e de santos. Escreveram todas as mazelas que estavam sofrendo. Pediam: anistia, liberdades democráticas, separação da Igreja do Estado, jornada de trabalho de oito horas, salário mínimo, entrega da terra ao povo, uma constituinte baseada no sufrágio universal. Entretanto, chegando no palácio foram 2 mil fuzilados e 4 mil feridos. Como disse Paul Frölich, “a sangria que deveria expurgar da classe trabalhadora russa a ideia de rebelião foi o batismo de sangue da revolução”. Este é o famoso Domingo Sangrento. No fim de janeiro uma onda de greves atingiu mais de um milhão de trabalhadoras, aí já era a revolução. Neste momento, Rosa escreveu sobre essa situação no texto Procissão rogatória do proletariado, dizendo:

“A história real é, a exemplo da natureza, muito mais bizarra e rica em ideias do que a razão classificadora e sistematizadora. [...] A humilde súplica das massas populares ao tsar consistia em nada menos que pedir a Sua Santa Majestade que, na qualidade de monarca de todos os russos, se decapitasse com as próprias mãos. Era uma súplica ao autocrata para que pusesse fim à autocracia. Era o moderníssimo ímpeto de classe de um proletariado maduro e sumamente sério agarrado à ideia fantasiosa de uma rutilante história de carochinha [...] Bastou que ocorresse à massa popular em ebulição a ideia formalmente infantil, mas de fato terrível, de ao menos uma vez encarar o pai da pátria e querer tornar realidade o mito do ‘reinado ou império social’ para que o movimento se transformasse com necessidade imperiosa em um embate de dois inimigos mortais, no conflito entre dois mundos, na batalha entre duas eras.”

Em um momento aflorado das discussões teóricas sobre revolução, efetivamente havia chegado a revolução. Luxemburgo, apesar da vontade de ir para o front, estava doente e, mais uma vez, seu biógrafo diz que “o que se esperava dela não podia ser feito nas trincheiras, onde os acontecimentos do momento encobrem a visão do panorama: interpretar o sentido dos acontecimentos, delimitar os próximos objetivos, verificar os meios e os métodos de luta empregados, ensinar aprendendo”, mostrando que ela era parte do estado-maior.

Então este massacre foi um ponto de inflexão para a fé que o campesinato ainda tinha no tsar, o que de fato abriu a dinâmica da revolução que teve seu auge entre outubro e dezembro de 1905, até sua derrota em 19 de dezembro do mesmo ano. Foi verdadeiramente uma espécie de “ensaio geral” onde começaram a se delinear os atores, as instituições e suas relações que iam aparecer de forma plena na Revolução Russa de 1917. Aí começaram a se responder algumas discussões que antes eram abstrações. Por exemplo, o tema dos sovietes, que foi uma grande novidade histórica da classe operária colocando de pé a organização mais democrática de luta das massas (segundo Trótski, “embriões de um governo revolucionário para a conquista do poder” e, segundo Lênin, “o embrião do governo provisório revolucionário para a conquista do poder”). Outra grande contribuição foi a greve geral política como método do movimento operário. A necessidade de uma aliança com os camponeses, estudantes e as nacionalidades oprimidas e o papel das consignas democráticas em função dessa tarefa; as barricadas e a formação de milícias armadas; a relação entre sovietes e os sindicatos e o partido; a relação entre a luta econômica, a política parlamentar e a luta revolucionária; a necessidade de visualizar os setores estratégicos da classe operária para desorganizar o poder. Os debates teóricos encaram os acontecimentos de 1905 que trazem soluções e novos problemas. Uma mudança dramática, enorme, na história e no pensamento revolucionário. Trótski dizia que “A Revolução de 1905 não foi apenas o ensaio geral de 1917, mas também o laboratório do qual saíram todos os agrupamentos fundamentais do pensamento político russo, onde se conformaram ou delinearam todas as tendências e matizes do marxismo russo”.

Como aponta Isabel Loureiro, o livro Greve de massas, partido e sindicatos é o texto que marca o início da ruptura de Rosa Luxemburgo com a direção da social-democracia alemã. Na biografia de Peter Nettl, o autor cita um artigo dela de 1905 no qual ela, referindo-se a Revolução Russa, diz: “A relação entre a vida política e social em quase todos os estados capitalistas é hoje tão intensa que os efeitos da Revolução Russa serão enormes em todo o mundo chamado civilizado – um efeito muito maior que o de qualquer revolução burguesa”.
E de fato, a Revolução de 1905 abriu um novo período para o movimento operário, encerrando definitivamente o período não-revolucionário inaugurado pela derrota da Comuna de Paris em 1871. E foi o processo de 1905 que colocou em questionamento as bases estratégicas das principais organizações do movimento operário mundial, que haviam se consolidado no decorrer de várias décadas pacíficas: a social-democracia e seus sindicatos. Rosa Luxemburgo demonstrará isso em sua brilhante exposição no livro Greve de massas, partido e sindicatos.

Quando Rosa é libertada da prisão de Varsóvia, em junho de 1906, ela faz uma viagem para Finlândia para encontrar Lênin. Eles debatem bastante, inclusive com vários bolcheviques, e a partir daí ela elabora esse texto. Neste momento Rosa começa uma aliança com Lênin, que considerou esse folheto como a melhor expressão teórica sobre a Revolução de 1905. Esta obra teve pelo menos dois objetivos: internacionalizar o processo russo de 1905, tirando conclusões para a classe operária mundial, e polemizar com a social-democracia e os sindicalistas alemães. Ainda assim, o debate da espontaneidade entra como uma conclusão. Mas, mais do que isso, pra Rosa a Revolução Russa de 1905 marcou uma mudança de época na qual ela foi a primeira entre todos os dirigentes da Segunda Internacional a colocar a necessidade da revisão do Programa de Erfurt – programa da social-democracia escrito alguns anos antes, em 1891, e que se baseava em um programa mínimo e um programa máximo que colocava a revolução como um horizonte abstrato. Sua elaboração com Greve de massas, partido e sindicatos é o passo mais importante que ela dá no sentido do que virá a ser a ala esquerda da Segunda Internacional.

A primeira frase do livro é: “Quase todos os documentos e declarações do socialismo internacional que abordam o problema da greve geral datam da época anterior à revolução russa, onde foi experimentado pela primeira vez na história, em larga escala, este método de luta”. É possível observar que ela parte justamente desse elemento divisor de águas que foi a revolução russa e o impacto que teria sobre os documentos anteriores a mesma. Ela diz que todos os textos estavam embasados na ideia de greve geral expressa em uma discussão de Engels com os anarquistas. Isso porque a ideia de greve de massas, antes de 1905, estava muito vinculada a ideologia anarquista. O que seria a greve de massas para os anarquistas? Um acontecimento onde todos, absolutamente todos os operários param de trabalhar sem nenhuma organização prévia. Nas palavras de Engels, “Para Bakunin uma bela manhã operários de todas as empresas de um país ou de todo o mundo abandonam o trabalho, obrigando assim mais ou menos em quatro semanas, as classes poderosas ou a capitular, ou a atacar os operários, tendo estes o direito de se defender e ao mesmo tempo abater inteiramente a sociedade”. Ou seja, Engels, em debate com Bakunin, que era um conhecido anarquista russo, estava dando uma luta política contra a teoria anarquista da greve geral que opõe a greve geral à luta política cotidiana da classe operária.

Pode parecer que a Rosa estava polemizando com Engels, mas o que ela estava dizendo é que a social-democracia tradicionalmente se utilizou dessa discussão do Engels com os anarquistas para se opor à greve de massas, como se fosse uma questão na qual sempre a tinha considerado em sua forma anarquista. Isso lembra um pouco o debate sobre a posição do Engels em relação ao método das barricadas, descrito na introdução de 1894 da obra Luta de Classes na França, de Marx, em que Wilhelm Liebknecht opera determinados cortes no texto original, sem o consentimento de Engels, a fim de que a social-democracia alemã não padecesse da censura do Estado prussiano; depois surgem setores da social-democracia se baseando nesse texto adulterado para renunciar a qualquer método de luta de classes, quando Engels é claro: a luta decisiva em termos insurrecionais deve ser preparada seriamente para que ocorra com a máxima concentração de forças. Mas Rosa, tanto em uma polêmica sobre a Bélgica em 1902 quanto nesse próprio texto, diz que a forma anarquista não é a única forma possível de greve de massas e que, portanto, não haveria motivo para não querer lançar mão da política da greve de massas, senão uma adaptação enorme à social-democracia. Mas toda a burocracia sindical considerava a greve de massas como uma coisa ultra-esquerdista e anarquista. É por isso que, em 1914, Kautsky, quando se volta contra Rosa, revisa suas antigas posições de apoio a ela e passa a considerá-la anarquista.

Na realidade, ela aborda essa discussão justamente para polemizar com os anarquistas, e por isso ela diz, mostrando como está de pleno acordo com Marx e Engels:

“Não se deve concluir que Marx e Engels sustentaram erradamente a tática da luta política ou que a sua crítica ao anarquismo é falsa. Pelo contrário, são os mesmos argumentos, os mesmos métodos em que se inspira a tática de Marx e Engels que fundamentam ainda hoje a prática da social-democracia alemã, que na revolução russa produziram novos elementos e novas condições para a luta de classes”.

Rosa insistia que a Revolução Russa de 1905 constituiu a primeira experiência de greve geral da história, e que os anarquistas que tanto falavam de greve geral não estavam à frente desse movimento, e que, portanto, a revolução de 1905 produziu a liquidação histórica do anarquismo, justamente no seu berço. Rosa vai dizer que “O berço de Bakunin devia se transformar no túmulo da sua doutrina”. Ela polemiza no começo do livro com os anarquistas mas considerava, justamente, que eles estavam liquidados pela realidade, então a luta política dela era com a direção do Partido Social-Democrata alemão e as direções sindicais, que na visão dela mantinham essa visão anarquista da greve de massas.
Retomamos uma citação utilizada no texto Um “1905 à francesa” e a crise histórica do sindicalismo, de Juan Chingo, no qual ele analisa, no auge do movimento dos coletes amarelos, essa obra da Rosa em debate com os sindicalistas franceses. Retomo também aqui essa citação porque é muito boa, em um momento em que a orientação da social-democracia consistia em evitar qualquer luta séria:

“Partidários de ‘batalhas ordenadas e disciplinadas’ projetadas de acordo com um plano e um esquema, aqueles que em particular sempre querem saber de longe como ‘deveria ter sido feito’, estes consideram que foi um ‘grave erro’ diluir a grande ação de greve geral política de janeiro de 1905 em um número infinito de lutas econômicas, o que, para eles, ‘paralisou’ aquela ação, convertendo-a em ‘fogo de palha’. Até mesmo o partido social-democrata russo, que certamente participou da revolução, mas não a ‘fez’, e que teve de aprender suas leis na medida de seu desenvolvimento, ficou, em um primeiro momento, desorientado pelo refluxo, aparentemente estéril, da primeira onda de greves gerais. No entanto, a história, que havia cometido esse ‘grave erro’, sem se preocupar com os raciocínios daqueles que se auto intitulavam como grandes mestres, realizava com este mesmo ‘erro’ um gigantesco trabalho revolucionário, tão inevitável quanto incalculável em suas consequências”.

Em outras palavras, nessa citação ela polemiza duro com a concepção da social-democracia alemã cujo “esquema” ou “script” não incluía nenhum aspecto de espontaneidade das massas e, então, ficam desorientados pelo que acontece na Rússia. Por isso ela diz que, na Revolução Russa de 1905, foi ensinado que a greve de massas nem é fabricada artificialmente nem decidida e difundida, mas um fenômeno histórico resultante de uma situação social a partir de uma necessidade histórica. Ainda que ela dissesse isso, não significava que ela não visse o papel de agitação anterior da social-democracia ou que não considerasse importante a organização, lembremos, Rosa não era anarquista.

Então, neste momento, pra ela não se tratava de fazer uma campanha de propaganda sobre a greve de massas, porque ela estava acontecendo e, se a greve se transformou num centro de interesse para classe operária alemã e internacional, é porque representa uma nova forma de luta. Por isso ela diz que “Se os operários alemães – não obstante a resistência dos seus dirigentes sindicais – manifestam um interesse tão ardente por este novo problema, isso testemunha o seu profundo instinto revolucionário e sua viva inteligência”.

Neste sentido ela avança na reflexão sobre em que medidas as lições da greve geral na Rússia se aplicam à Alemanha e é onde ela entra mais decididamente na luta política com os sindicalistas alemães:

“Além disso, as greves aparentemente caóticas e a ação revolucionária ‘desorganizada’ que sucederam à greve geral de janeiro transformam-se no ponto de partida de um febril trabalho de organização. A história ri dos burocratas apaixonados por esquemas ‘pré-fabricados’, guardiões ciumentos da felicidade dos sindicatos. As sólidas organizações concebidas como fortalezas inexpugnáveis e cuja existência tem de ser assegurada, antes de eventualmente se pensar na realização de uma hipotética greve de massas na Alemanha, são, ao contrário, fruto da própria greve de massas. E enquanto os ciumentos guardiões dos sindicatos alemães temem, antes de tudo, ver quebrar em mil pedaços essas organizações, como uma preciosa porcelana no meio do turbilhão revolucionário, a revolução russa apresenta-nos um quadro completamente diferente: o que emerge dos turbilhões e da tempestade […] são sindicatos novos e jovens, vigorosos e ardentes”.

Depois ela vai abordar esse tema da ligação entre o econômico e o político dizendo que o movimento no seu conjunto não se orienta unicamente no sentido de uma passagem do econômico ao político, mas orienta-se também no sentido inverso:

“Cada uma das grandes ações políticas de massas se transforma, após ter atingido o seu apogeu, numa multiplicidade de lutas econômicas. Isso não é somente válido para cada uma das grandes greves, também o é para a revolução no seu conjunto. Quando a luta política se estende, se clarifica e intensifica, não só a luta reivindicativa continua como se estende, se organiza e se intensifica paralelamente. Há uma completa interação entre ambas”.

E nos brinda com uma citação extremamente atual:

“Os dirigentes sindicais, pela especialização de sua atividade profissional e pela restrição de seus horizontes, resultado da fragmentação das lutas econômicas em períodos de calma, tornam-se vítimas do burocratismo e de uma certa estreiteza de visão. Estes dois defeitos manifestam-se em várias tendências que podem se tornar fatais para o futuro do movimento sindical. Uma delas consiste em superestimar a organização e torná-la, pouco a pouco, um fim em si mesmo, no bem supremo ao qual os interesses da luta devem estar subordinados. Isso explica também o desejo declarado de trégua, esse medo de grandes riscos a serem assumidos e dos supostos perigos que ameaçariam a existência dos sindicatos, essa hesitação diante do resultado incerto das grandes ações de massas. […] E, finalmente, às custas de esconder as limitações objetivas que a luta sindical tem dentro da ordem social burguesa, chega-se a uma aversão direta à toda crítica teórica que chame atenção para essas limitações em relação aos objetivos finais do movimento operário.”

Rosa critica a transformação dos sindicatos em um fim em si mesmo e também critica o rechaço à teoria por parte dos sindicalistas que, inclusive, chegavam a questionar a relação do partido com o sindicato e não aceitar opiniões teóricas sobre o sindicalismo.

Então em toda essa discussão há dois temas importantes a destacar: entender a greve de massas como consequência da mudança da situação política internacional e entender a unidade entre o econômico e o político na luta revolucionária. Ela começa dizendo que a greve de massas não se apresenta como um produto especificamente russo, surgido do absolutismo como uma forma geral da luta de classes proletária, mas sim que é resultado do atual estado de desenvolvimento do capitalismo e das relações de classe e que a principal lição de 1905 é que a greve de massas não se faz artificialmente, não se decreta no ar, mas sim se trata de um fenômeno histórico que surge em determinados momentos das próprias circunstâncias sociais. Mas que, ao mesmo tempo, o que estava colocado não era uma ginástica cerebral abstrata sobre a possibilidade ou impossibilidade da greve de massas, e sim explicar o desenvolvimento da Revolução Russa, sua importância internacional, a agudização dos conflitos de classe na Europa Ocidental, as novas perspectivas políticas da luta de classes na Alemanha e o papel e os deveres das massas nas lutas futuras. Ou seja, Rosa estava bastante preocupada em disseminar a experiência da Revolução Russa em 1905 para todos os países porque, para ela, somente assim a discussão sobre a greve de massas iria servir para ampliar o horizonte intelectual do proletariado e contribuir para fortalecer sua consciência de classe e aprofundar suas energias para ação.

O debate sobre espontaneidade e consciência em Rosa e Lênin

Baseados nos debates sobre o 1905 russo, expressavam-se também divergências sobre como encarar a questão da espontaneidade e da consciência, tema que segue vigente pela sua importância até a atualidade. É fato que existe uma caricatura sobre as posições de Rosa Luxemburgo sobre tal problemática como se fosse partidária de uma espécie de “teoria do espontâneo” como tradução de uma concepção anarquista. O debate da greve de massas política que apresenta em sua obra, em polêmica aberta com os anarquistas, afasta esta hipótese. Entretanto, para tratar deste tema há pelo menos duas questões fundamentais. A primeira é a consideração de que um dos elementos constitutivos mais revolucionários do pensamento de Rosa Luxemburgo foi a importância que sempre deu para as lutas espontâneas por fora das direções – muitas vezes burocráticas. A segunda consideração é que, ao mesmo tempo, era Rosa quem questionava estas mesmas direções burocráticas sobre o papel que poderiam cumprir ou não em relação ao desenvolvimento destas lutas, inclusive conectando a luta sindical com a luta política. Sendo assim, não se tratava de uma teoria do espontaneísmo.

Ainda assim, havia diferenças entre Lênin e Rosa sobre este tema e isso se dá porque, muitas vezes, em seus textos, Rosa apresentava a questão da espontaneidade como algo “em si mesmo” revolucionário, ou seja, o valor que dá a essa espontaneidade que, de início, tem sua corretude ao transcender a caracterização de que a espontaneidade em si mesma é insuficiente para ser definida como “revolucionária”, termina apresentando debilidades de fundo no pensamento de Rosa Luxemburgo. É importante destacar que esta forma de pensar de Rosa foi interpretada de forma “unilateral” e “interessada” como se fosse uma “oposição” de Rosa à organização política. Neste caso, poderia se levar a conclusão de que a organização política seria “em si” conservadora – uma leitura que, nas últimas décadas, serviu para fundamentar experiências reformistas de todo o tipo, como partidos “cidadãos” ou “horizontais”, partidos amplos de todo tipo e que, desenvolvido em outro âmbito, também deu base à ideia de um “socialismo democrático” de Rosa Luxemburgo com ênfase no “espontâneo” contra as “estruturas rígidas” do Partido Bolchevique de Lênin. Mas a questão é que a Rosa não atacava a organização social-democrata nem política nem sindical em si mesma, ela estava atacando a política dos órgãos dirigentes dos sindicatos e do partido social-democrata, ou seja, tratava-se de uma batalha a partir de dentro dos partidos e sindicatos.

Neste sentido, ainda que possamos dizer que os inimigos que Rosa e Lênin enfrentavam neste debate sobre o espontâneo e o consciente eram os mesmos, ou seja, as direções burocráticas dos sindicatos e partidos, esta ênfase apresentada por Rosa ilumina as diferenças entre ambos. Isso porque ambos concordavam que a espontaneidade era a substância sobre a qual poderia se erguer a organização e a consciência, ideia que Lênin sintetizava com a frase “a espontaneidade é o gérmen do consciente”. Porém, Lênin questionava já em 1902, em O que fazer?, que esta espontaneidade não era, em si mesma, revolucionária, mas sim que o desenvolvimento apenas espontâneo da classe operária caminha no sentido de sua subordinação à ideologia burguesa, pois o movimento operário espontâneo é sindicalismo e sindicalismo implica na submissão ideológica dos operários à burguesia. E por que isso? Porque com o sindicalismo você luta sempre por dentro do regime existente, pedindo melhorias, mas dentro deste regime, e não para subverter a ordem. Ou seja, Lênin e Rosa muitas vezes apontavam a crítica e a polêmica para um mesmo objetivo: a ideologia sindicalista que penetrava a social-democracia, mas respondiam este desafio com divergências sobre o valor do elemento espontâneo. E neste enfrentamento a Rosa considerava que seria a espontaneidade das massas, no decorrer dos processos, que iria resolver os problemas da revolução, inclusive o entrave que significa o papel das direções burocráticas.

Isso vai se desenvolver em diferentes concepções de partido e não é à toa que, em 1904, Rosa tenha polemizado com Lênin justamente em torno da concepção de partido por considerar muito centralizadora sua visão que levaria a “tolher” o espontâneo, quando, na realidade, Lênin não era contra a espontaneidade, mas não tratava ela como em si mesma revolucionária. A partir de 1905 Lênin desenvolve, aos poucos, a elaboração de partido que ele tinha, no sentido de que é tarefa do partido “ajudar a desenvolver a auto-organização espontânea”, de tipo soviético em 1917, impactado também pelas novidades que significa os sovietes naquele momento.

O biógrafo de Rosa Luxemburgo, Paul Frölich, apontava que Rosa subestimava o poder da organização, principalmente quando a direção estava em poder de seus oponentes. Ela se baseava de maneira muito crédula na correção da política advinda pela pressão das massas, como se o espontâneo tivesse o poder de passar por cima das conformações burocráticas que em determinados momentos impediam os trabalhadores de lutar. Ou seja, era uma visão que tendia a considerar que a potência da espontaneidade poderia seguir se desenvolvendo por si só. Em última instância, a ideia apontada também por Rosa de que “[...] a social-democracia não está ligada à organização da classe operária, ela é o próprio movimento da classe operária” está na raiz das suas posições tanto sobre a atividade das massas quanto sobre partido. Já Lênin sempre buscava relembrar que a social-democracia é a fusão do movimento operário e do socialismo, ou seja, “separado da social-democracia o movimento operário se degenera e se aburguesa. Ao mesmo tempo, separado das lutas operárias, o socialismo perde seu norte e também se aburguesa”. E aí ele diz que “o partido constitui uma ponte entre a consciência incipiente do proletariado e o papel que lhe é teoricamente destinado. É o intermediário necessário entre o conceito de classe operária e sua realização prática, alienada na sociedade capitalista”. É por essa razão que “a tarefa do partido não é imaginar novos métodos de ajuda aos operários, mas sim apoiá-los nas lutas que estão e desenvolver sua consciência de classe”.

Toda essa visão de Rosa a levava a uma concepção que podemos chamar de “partido-processo”, que naquele momento era mais parecida com a visão de Trótski – que em 1917 muda completamente e dá razão a Lênin. Ou seja, uma visão de que o partido de fato se forma somente “no calor dos acontecimentos”, onde a conformação do partido é um “processo” do momento da luta e não tem ênfase o prévio, planificado, como foi o Partido Bolchevique de Lênin. Isso não significa que o Partido Bolchevique de Lênin não considerasse que o partido poderia se transformar e avançar nos processos de luta, a diferença estava mais na etapa preparatória, ou seja, na ênfase e na importância que Lênin dava para um partido preparado, que estudasse inclusive a arte da insurreição para se preparar o máximo possível. Rosa achava que isso tolhia a espontaneidade das massas. Já Lênin considerava que sem isso era impossível tomar o poder. De fundo, a diferença estava no fato de que Lênin batalhava por construir frações revolucionárias no proletariado que pudessem se transformar em força material (militância real) para concretizar as ideias do marxismo revolucionário, que se preparassem para atuar nos momentos mais decisivos (e, inclusive, nos menos decisivos que ele sempre chamava de “escolas de guerra”) sendo dirigidos por uma direção o mais preparada possível. Essa não era a visão de Rosa.

Ao mesmo tempo é importante frisar que Daniel Bensaid apontava que a Rosa sempre teve uma lógica de não ser uma seita, ou seja, não ter um partido ultra minoritário de vanguarda distanciado das massas. Então a posição dela, em linhas gerais, era: um valor grande para a espontaneidade, um partido que não a tolhesse e que, portanto, não preparasse tudo de antemão e que a social-democracia era o próprio movimento da classe e, sendo assim, ela não poderia estar em nenhum outro partido que não fosse a social-democracia, senão seria uma seita distante das massas.

Essa concepção da Rosa leva ela a um erro importante que foi o de não romper com a social-democracia alemã em 1914 quando eles votaram pelos créditos de guerra na Primeira Guerra Mundial, ou seja, uma grande traição à classe operária mundial apoiando a burguesia. E por que esse pensamento levou ela a esse erro? Porque se a social-democracia era o próprio movimento da classe operária, então romper com ela seria romper com o movimento da classe e sua espontaneidade. Para entender a profundidade das discussões, até 1914 foi Rosa quem viu de forma mais clara o fenômeno da burocratização da social-democracia, algo que Lênin demorou bastante para ver. Mas quando Lênin viu isso em 1914, tirou conclusões mais radicais que as de Rosa e propôs para Rosa romper e fundar um partido independente, mas ela foi contra. Rosa também foi a primeira a dizer que era necessário superar a Segunda Internacional, e disse isso antes de Lênin, mas foi Lênin quem deu o passo para de fato romper, a partir da traição em 1914, e construir a Terceira Internacional.

Rosa se manteve na social-democracia alemã depois da traição, mas dentro de uma tendência que, na prática, era “uma seita”, no sentido que ela mesma criticava. Tratava-se da Liga Spartakus, que ficou, inclusive, no Partido Social-Democrata Alemão Independente (USPD) até o final de 1918. No final de 1918 finalmente é fundado um partido de fato independente, como propunha Lênin, que foi o Partido Comunista Alemão, o KPD. Mas foi fundado de forma totalmente improvisada e nas piores condições, sem nenhuma preparação. E, na prática, era um partido de “vanguarda”. O KPD tinha 10 mil militantes em todo o país, enquanto o USPD tinha 2 milhões. Em Berlim, que era o bastião dos espartaquistas, tinha 600 militantes quando o USPD tinha 200 mil. Então, na prática, ao final de sua vida Rosa percebeu que era necessário ter um partido independente, de vanguarda inclusive, mas a questão é que, por fazer isso de forma totalmente improvisada e sem preparação, a Revolução Alemã chegou num momento em que não havia um partido revolucionário como havia na Rússia de 1917, havia apenas um partido reformista que não somente traiu a revolução como assassinou Rosa, e um partido centrista que era o USPD.

Paul Levi, que era advogado da Rosa, foi também seu companheiro e assumiu a direção do KPD depois da sua morte em 1920, apontou que o principal erro dos alemães foi não terem se organizado de forma independente, inclusive antes de 1914, “mesmo que tivessem que ser uma seita”. Neste caso ele estava dando razão para Lênin, ou seja, para a concepção que parte de impulsionar uma vanguarda organizada, a qual vai se fundir com a classe operária e dirigir o processo da revolução ganhando a maioria da classe operária para a insurreição. Lênin considerava que o partido era um destacamento da vanguarda para dirigir a maioria da classe para a tomada do poder e isso foi feito na prática em 1917. Ele nunca defendeu um partido de intelectuais separado da classe, e sim defendia um partido de vanguarda para dirigir as massas. Trótski, que antes tinha a mesma posição da Rosa, fundiu-se à posição de Lênin em 1917. Mas Rosa não tira a mesma lição em 1917, e vai ter a oportunidade de testar na prática na Alemanha sua concepção. E o problema é que, quando explodiu a Revolução Alemã, no fim de 1918, a massa operária foi a luta, levantou ferramentas de auto-organização como os sovietes, mas essa auto-atividade e espontaneidade das massas não corrigiu o partido nem resolveu os problemas da revolução. O partido girou à direita e traiu a revolução. Estas experiências históricas reafirmam a álgebra da relação entre classe, partido e direção, a necessidade da ênfase no desenvolvimento dos organismos de auto-organização das massas e o peso decisivo das direções – tarefa que não pode estar sobre os ombros da espontaneidade das massas.

Essas reflexões sobre os debates entre Rosa e Lênin são particularmente relevantes quando abordamos as reflexões de Antonio Gramsci sobre o que ele chama de “Estado integral”, ou seja, da necessidade da burguesia ao longo dos anos de buscar um maior consenso das grandes massas que começam a entrar na política. Em outras palavras, não se pode mais governar como antes esperando que as massas concordem, é preciso construir esse consenso ativamente.

Gramsci coloca a problemática do Estado integral a partir das grandes transformações nas formas estatais iniciadas a partir de 1848, e dando especial atenção às mudanças nos regimes políticos da Europa, posteriores a 1917. Em sua célebre definição contida no Caderno 6 §155, Gramsci define o Estado integral da seguinte maneira: “O Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia)”. O que ele quer apontar é uma mudança que será distintiva dos Estados “ocidentais” modernos a partir da busca de uma “base de massas” em uma sociedade de massas. Por isso, busca estabelecer uma relação “orgânica” entre sociedade política e sociedade civil, não separando a dominação e o consenso desses dois pólos. Do ponto de vista das organizações da sociedade civil, Gramsci incluía os sindicatos, a imprensa, as associações, entre outros, como instrumentos fundamentais de ampliação do Estado para buscar organizar, de maneira ativa, o consenso também entre os setores proletários e explorados.

Como apontaram recentemente Emilio Albamonte e Matias Maiello, “A pergunta era como fazer para controlar as organizações que criavam os trabalhadores que faziam entrar a classe operária e as grandes massas no terreno do Estado para que não saiam de seus limites e não se transformem em um fato para o desenvolvimento de situações revolucionárias”. Ou seja, é uma busca permanente sobre as organizações de massas, como os sindicatos e os partidos políticos, buscando evitar saídas independentes que apontem no sentido da revolução. Portanto, significa entender um salto de qualidade nos mecanismos de dominação e no papel das burocracias sindicais que atuarão de forma ainda mais feroz contra qualquer espontaneidade das massas, assim como que os partidos atuem por dentro do Estado e não para destruir o Estado, transformando-se em órgãos auxiliares do Estado burguês. A grande traição da social-democracia alemã em votar os créditos de guerra não foi mais do que isso.

Essa reflexão sobre o Estado integral contribui para mostrar ainda mais os limites de espontaneidade e daquele pensamento de Rosa Luxemburgo que, como apontamos, ao final de sua vida pôde se testar na prática na Alemanha. Esse conceito de Gramsci também mostra uma confluência com o pensamento de Trótski, como também apontam Emilio Albamonte e Matias Maiello quando dizem que

“[...] Há uma importante confluência entre o pensamento de Gramsci e o de Trótski em torno das mudanças na dominação estatal, em relação ao anterior Estado liberal, a partir da irrupção da política de massas. Desde diferentes aproximações, ambos apontarão que as burocracias, tanto sindicais como políticas, que se transformam em agentes do Estado no interior das organizações de massas vão cumprir funções de ‘polícia política’. Ou seja, de prevenção para evitar o surgimento de um movimento operário revolucionário”.

Neste sentido, tomando toda a experiência e os combates revolucionários de Rosa Luxemburgo, assim como de Lênin, Trótski e Gramsci, diante de conformações políticas mais elaboradas com o desenvolvimento do capitalismo e mecanismos de dominação extensos e potencializados na busca de um consenso, coloca-se na ordem do dia a batalha para que a espontaneidade das massas se converta em consciência de classe através da auto-organização operária para enfrentar as burocracias e colocar de pé o instrumento da classe trabalhadora que é um partido revolucionário para a tomada do poder.


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED
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