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Estética: a arte expressa a linguagem da Revolução

Afonso Machado

Imagem: Parangolés de Hélio Oiticica

Estética: a arte expressa a linguagem da Revolução

Afonso Machado

Definições da palavra “ arte “ existem aos montes , existem feito mato que nasce aqui e ali na cultura . Mas por mais contraditórias e polêmicas que sejam estas definições, está implícito que a arte diz respeito a um conjunto de imagens que estabelece relações entre o ser e o mundo. É precisamente neste ponto que reside um processo de consciência que arranca as pessoas da apatia e da rotina. A arte instaura uma experiência transformadora: uma verdadeira corrente energética se faz presente nas manifestações artísticas, ocasionando na liberação de verdades e desejos reprimidos. Devemos reconhecer, no entanto, que este significado libertário da imagem é completamente estranho e minoritário perante os procedimentos visuais reinantes na realidade capitalista. As vivências estéticas que nos cercam existem para fazer da imagem não um conflito com a realidade, mas uma tentativa de integração total das populações nos parâmetros ideológicos do capitalismo.

Na dinâmica sensorial rigorosamente calculada do vídeo game, nas fórmulas visuais dos aplicativos e dos programas de televisão, na avalanche de signos que nascem, morrem e depois renascem no comércio, e nas escuras salas de cinema (com seu ritual coletivo em crise) encontramos uma produção ideológica que pretende realizar o hipotético desejo dos trabalhadores de estarem 100% integrados na cultura estabelecida, integrados no modo de vida capitalista. Entretanto, o conflito entre capital e trabalho impede que tal integração se dê com sucesso: as tensões e lutas sociais não são suprimidas da realidade. Isto nos permite compreender por que o universo da imagem ainda guarda os segredos da subversão. Ninguém aqui é besta de defender a ideia de que o artista deve ser alguém que sai por aí com um estilingue nas mãos para atirar pedrinhas no gosto massificado. Trata-se de entender por que a arte está profundamente ligada com a necessidade da Revolução.

O capitalismo não consegue apagar as possibilidades históricas. As contraditórias mediações entre imagem e realidade, entre ideologia e o desenvolvimento objetivo das relações sociais (em que a fome e a exploração sempre acionam o despertador da necessidade por transformações sociais) ainda fazem da política o campo da possibilidade, o terreno da ação transformadora do humano. É por isso que os fanáticos da extrema direita são sempre histéricos e autoritários: não dá para conservar o mundo como algo estático, afinal a necessidade por transformações sempre se impõe. A própria arte enquanto expressão virtual das contradições e conflitos deste mundo, acaba por registrar a necessidade de mudanças. A dimensão da estética em particular é por natureza a dimensão potencial da realidade, aquilo que “poderia ser “mas ainda “não é “: a arte, que invade a realidade, é uma promessa de libertação.

O desânimo e o pessimismo são recorrentes num mundo que assiste a ascensão dos movimentos políticos de extrema direita, os bolsões de miséria nas cidades, os bombardeios contra civis, o retrocesso da religiosidade como termômetro na interpretação da realidade política e a proliferação de todo tipo de sentimentos conservadores. Porém, tudo aquilo que é vivo está em movimento, o que nem sempre é percebido por aqueles que pensam os problemas da política e da cultura. Desde a década de 1990, tudo indica que para muitos teóricos e artistas a arte não carregaria nenhuma possibilidade de mudança psicológica efetiva na medida em que as portas da história estariam fechadas para a Revolução: a reprodução do capital continuaria a ocorrer a despeito de movimentos políticos e culturais de oposição, sendo a arte um elemento ideológico irrelevante. Este veredito equivocado que nega as potencialidades do humano consiste numa incompreensão da história, na desconsideração da capacidade de ação política e logo na aceitação calada dos dramas econômicos, sociais e ambientais intrínsecos ao capitalismo.

Em tratando-se de arte se faz necessária a tentativa de recuperação das suas qualidades revolucionárias. Ao contrário do que muitos supõem, não se trata de um simples discurso político(ainda que revolucionário) enfiado na obra de arte: no gesto transformador da arte, estamos inseridos num fluxo de imagens onde reina o desejo. A relação estética intervém sobre o movimento do corpo: observa-se uma experiência corpórea em que o conhecimento dos sentidos surge enquanto veículo de liberação . Em termos psicanalíticos, o campo da estética está profundamente ligado ao princípio de prazer, o que acarreta numa ameaça para as formas de controle/repressão presentes na cultura. Tal como Sigmund Freud demonstrou, a cultura coage a estrutura instintiva. Na história das civilizações, a repressão tornou-se um pressuposto do progresso. Quer dizer, a satisfação integral seria historicamente inviável. A repressão do desejo via cultura se fez necessária para garantir formas de associação e preservação duradouras entre os indivíduos. A existência da cultura está intimamente relacionada com a coação ao princípio de prazer, com o estabelecimento dos processos mentais verificáveis nas dimensões do inconsciente e do consciente.

Porém, de acordo com a reflexão de Herbert Marcuse, devemos questionar quais estruturas econômicas e políticas a cultura expressa. A divisão social do trabalho que trouxe a história das sociedades de classes, acarreta em quais formas culturais? Se o princípio da realidade é uma necessidade para a existência da cultura, de qual realidade estamos falando? Quem disse que devemos concordar com o histórico e “ necessário” processo de subordinação do corpo disciplinado para a escravidão, para a servidão e para o trabalho assalariado? As imposições externas ao indivíduo, e sobretudo aos indivíduos que se inserem nas classes laboriosas, pertencem ao mundo que é político até o último fio de cabelo. A cultura pode e deve ser questionada. Assim nunca deixamos de estar no terreno da história, isto é, das possibilidades transformadoras do humano.

As civilizações nos legaram não apenas importantes conquistas materiais e espirituais mas sobretudo desgraças e uma montanha de injustiças (exploração do trabalho, patriarcado, guerras, massacres etc ). Para nós em particular interessam as tradições de lutas e rebelião que fornecem seiva para as gerações: são as imagens de rebelião, que por sua vez são produtos do desejo daqueles que lutaram e não raramente tombaram na história. Estas manifestações existem enquanto imagens libertadoras: é a libertação do corpo que não aceita ser instrumento de trabalho das classes proprietárias. Neste ponto, o verdadeiro poeta e/ou artista é aquele que luta por uma outra realidade, por uma outra cultura: a arte exprime a necessidade de reconciliação do humano, a busca pela harmonia negada pela sociedade de classes. Por isso, arte e revolta não se separam.

Qualquer grã-fino sabido ou qualquer turista curioso saberia discorrer sobre a importância cultural de um caminhão de obras de arte. Esta é a perspectiva do passatempo, do diletante que é apaixonado pela chamada história da arte. A maioria dos intelectuais diletantes quer que permaneça soterrada uma perspectiva perturbadora da arte: aquela da estética enquanto expressão do desejo reprimido e manifestação de oposição política. Como explica Marcuse, esta substância transgressora da estética reside na fantasia. A fantasia é um modo de atividade mental que se manteve livre do domínio repressivo do princípio de realidade: protegida das imposições culturais, a fantasia articula as profundas camadas do inconsciente aos produtos da linguagem artística. Aproximando as realidades do sonho e da vigília, do passado e do presente, a arte produz choques. Como André Breton acentuou, o valor revolucionário da imagem está na aproximação de realidades distintas. Quem souber olhar através da porta que os opressores nunca conseguem trancar totalmente, irá encontrar um todo desejante em que as coisas/objetos se oferecem ao reino da forma. Liberando a forma sensível e o prazer da sensibilidade, a arte propicia um estado de liberdade num mundo em que a liberdade é na prática negada. Nesta operação revolucionária da linguagem a revolta é inevitável.

Bem entendido, não se trata de evasão da realidade. Enquanto produto do desejo a arte sugere que “o real deve ser corrigido “. A magia da arte existe na realidade opressora: a arte é uma ameaça política ao exprimir a linguagem do desejo. Por mais que existam aqueles artistas que se contentam em ser meros agentes recreadores da ordem capitalista, a natureza estética é transgressora: a arte que se quer revolucionária expressa a necessidade de um outro princípio de realidade. É a evocação da sensualidade, da razão que se torna sensual através da experiência estética. Com tantos carolas por aí, imaginem só o quanto isso ainda é subversivo! Mário Pedrosa nos ensinou o quanto a arte( a arte moderna, a arte abstrata, a arte dos povos indígenas, das crianças e dos internos de instituições psiquiátricas etc) nos convida para uma atitude mental e espiritual completamente diferente dos valores que regem a civilização burguesa. É esta abertura, esta fenda da liberdade que recusa os esquemas mentais estabelecidos, que confere o sentido revolucionário da atividade artística.

A despeito de todo pessimismo, que brota inclusive entre aqueles em que está ausente o rigor científico na análise da marcha da história, o artista tem a missão de falar a linguagem da Revolução: onde o amor é reprimido coloca-se a afirmação do erotismo, onde existe injustiça e exploração mobiliza-se a indignação e o sentimento revolucionário para se lutar pela justiça e igualdade social. A substância estética, a imaginação criadora, não pode ser inteiramente administrada. Nenhuma classe dominante da história conseguiu calar a boca de Eros.


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