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Estrela Vermelha: os bolcheviques conquistam Marte

Fernando Pardal

Estrela Vermelha: os bolcheviques conquistam Marte

Fernando Pardal

O romance de Aleksandr Bogdánov, de 1908, é de um raro tipo. Uma incursão filosófica sobre o socialismo em forma de ficção científica, revelando tanto a ousada criatividade de seu autor, como deixando entrever discussões políticas contemporâneas à escrita do livro pela pena de um “velho bolchevique” dissidente de Lênin.

O recente lançamento de Estrela Vermelha (Boitempo) é um notável feito. O romance de 1908 era inédito no Brasil, e vem à luz com a excelente tradução de Paula Vaz de Almeida e Ekaterina Vólkova Américo. Trazer aos leitores essa obra envolveu não apenas o trabalho de tradução, mas o de uma verdadeira arqueologia do original, o que já chama a atenção para o valor do livro: a burocracia stalinista que expropriou politicamente os trabalhadores organizados em sovietes e se apoderou do partido bolchevique e do Estado operário soviético não tolerou o romance de Bogdánov, e, conforme nos informa o prefácio assinado pelas tradutoras, foi progressivamente mutilado até sua última edição em 1929, após o que só voltaria a ser editado em 1970. A edição da Boitempo não apenas nos traz a versão original e não censurada publicada em 1908, mas também assinala cuidadosamente ao leitor cada parte suprimida, permitindo ver quais os pontos mais incômodos para o regime tirânico, burocrático e assassino de Stálin e sua camarilha – fundamentalmente o da livre expressão da sexualidade.

A biografia do autor mereceria um desenvolvimento à parte, tratando-se de uma figura excepcional, tanto em importância nos campos político, científico, artístico e filosófico, quanto por sua peculiar trajetória e sua irrefreável ousadia. Bogdánov foi parte dos “velhos bolcheviques”, tendo sido um dos fundadores dessa fração do Partido Social-Democrata Russo e que, durante os duros anos do czarismo, lutou pela construção de um partido revolucionário na Rússia ao lado de Lênin, sendo seu segundo mais importante dirigente nesse primeiro período, até sua expulsão por divergências fundamentais no ano de 1909.

Suas disputas internas foram travadas em âmbitos diversos: na teoria, Bogdánov se mostrou eclético e tendente ao idealismo, fundando a sua própria teoria, o empiriomonismo, que buscava mesclar o empiriocriticismo de Ernst Mach ao materialismo dialético de Marx e Engels, e que foi desenvolvido em três livros entre 1904 e 1906, merecendo por parte de Lênin uma impiedosa crítica em seu “Materialismo e empiriocriticismo: notas e críticas sobre uma filosofia reacionária”, em 1909. A deriva teórica, embora trouxesse a marca particular de Bogdánov, fazia parte de um movimento mais amplo de deriva política que assolou o movimento revolucionário após a derrota da revolução de 1905.

A grande dedicação de Lênin para atacar a filosofia de Mach e sua variação particular elaborada por Bogdánov, contudo, só se justificava pelo peso político de seu adversário no interior do bolchevismo, que opôs a Lênin uma fração de grande importância dentro do partido, cujo centro estava numa posição política ultra-esquerdista expressa pelo grupo reunido em torno do jornal Vperiod (Avante), que contava também com Lunatchárski, Górki, Bazárov, e que combatia qualquer tipo de participação dos revolucionários nas reacionárias Dumas (os parlamentos recorrentemente convocados e dissolvidos pelo Czar após a revolução de 1905), considerada como “cooperação de classe” tal como a que se apontava nos mencheviques. A luta fracional se desenvolve duramente até a conferência de junho de 1909 em Paris, na qual Bogdánov é excluído das fileiras bolcheviques.

Ele também fez parte da importante iniciativa, ao lado de figuras como Anatóli Lunatchárski e Máksim Górki, da criação das escolas operárias da socialdemocracia em Capri e Bologna, na Itália, onde se gestou o embrião da ideia do que viria a ser, após a revolução de outubro de 1917, a Proletkult, o movimento de cultura proletária que abarcou centenas de milhares de operários na Rússia. O Proletkult, que com certa frequência é injustamente visto como um mero embrião do realismo socialista, foi na verdade um movimento amplo, variado, profundo, em cujo interior se travavam amplos debates sobre a arte revolucionária.

Tendo abandonado a militância partidária, Bogdánov se dedicou a estudos em muitas áreas, fundando a “tectologia”, uma tentativa de unificação das ciências e de buscar os princípios organizacionais fundamentais a todos os sistemas.

Entre 1918 e 1921 foi professor de Economia Política na Universidade de Moscou. Experimentos científicos arriscados também fizeram parte de suas investigações, e Bogdánov acreditava que a transfusão de sangue poderia cumprir um papel regenerativo no organismo humano – convicção que encontra voz em seu romance na espécie evoluída de Marte, que utiliza o procedimento para se rejuvenescer. Em 1926, presidiu o primeiro instituto de transfusão de sangue do mundo. Entre os que participaram voluntariamente de seus experimentos neste campo se encontrava Maria Uliánova, irmã de Lênin. Atribui-se a prematura morte de Bogdánov ao fracasso de um desses experimentos de autotransfusão sanguínea.

Com essa trajetória rica e diversa, e as controvérsias que cercam o autor de Estrela Vermelha, não poderíamos deixar de ver reflexos desses elementos em sua obra, que, se possui a forma de um romance, pode muito bem ser situada como parte da tradição literária característica da Rússia dos publicistas, com romances que se mesclavam à propaganda e tratavam de temas revolucionários. O romance “O que fazer?”, de Nikolai Tchernichévski – o favorito de Lênin –, é um dos exemplos marcantes. Como afirmam Almeida e Vólkova em seu prefácio, “o leitor poderá encontrar diversos episódios marcantes de sua biografia nas páginas de sua obra”. Mas, além disso, Estrela Vermelha é muito expressivo da visão de Bogdánov sobre o comunismo, sobre sua paixão pela libertação da humanidade e como sonhava que seriam seus caminhos.

O enredo do livro consiste na narrativa fornecida por um ser humano escolhido por marcianos para visitar seu planeta como uma primeira iniciativa de um tipo de “intercâmbio” que daria início ao contato entre as espécies. O escolhido, um revolucionário russo, é eleito justamente por suas convicções socialistas, o que o aproxima mais do que outros humanos da forma do pensamento marciano, um planeta avançado que vive a sua era comunista. Para Bogdánov, seria impossível pensar em uma civilização mais evoluída, capaz de atravessar o espaço rumo a outro planeta, sem a organização superior, racional e planificada da economia comunista. No entanto, vale ressaltar a tentativa do autor de fugir a um tipo de teleologia do socialismo: ao falar sobre o desenvolvimento de Marte, da história de sua espécie, Bogdánov tenta especular sobre como diferenças materiais evolutivas, tais como as condições naturais, poderiam levar a um tipo de desenvolvimento distinto, chegando ao socialismo em menos tempo e com menos sobressaltos, porém sem um potencial criador tão profundo quanto o da humanidade terráquea – ao menos é o que acredita Menny, capitão da expedição à terra.

Narrado em primeira pessoa por Leonid, o visitante bolchevique a Marte, o livro se assemelha, na forma de sua construção, a algo como um informe político, um texto de quem procura relatar a seu leitor tão minuciosamente quanto possível como se dá a vida no planeta vermelho. Não há aqui nenhuma preocupação de virtuosismos linguísticos ou longas passagens descritivas: o estilo seco da narração possui como atrativo a força de seu tema, a construção de seu enredo, as reflexões que coloca ao leitor sobre a sociedade comunista e capitalista, e não procura deslumbrar o leitor com elaborações formais. Tal forma narrativa é também parte do que fez grande parte da literatura publicista ser descartada como “menor”, por uma suposta carência de “qualidades artísticas”; quiçá tenha sido essa noção formalista de arte, aliada evidentemente ao esquecimento imposto pela censura stalinista, e ao fato de que a biografia do autor seja incapaz de agradar algum editor que não tenha simpatia ao comunismo, o que fez que essa obra tão interessante tenha sido relegada ao esquecimento por longas décadas no Brasil.

Dentro os interessantíssimos temas que poderiam ser destacados – como as questões científicas que Bogdánov desenvolve com sua vasta erudição sobre a ciência da época, como sua especulação sobre a energia atômica ou a viagem interespacial baseada na antimatéria, ou ainda a sua rica especulação sobre a forma de organização do trabalho comunista que é a base da sociedade marciana – me chamou a atenção a forma como a psicologia é debatida no livro, e como se compara o psiquismo humano rudimentar àquele dos marcianos, que opera em uma lógica muito superior, muito mais afeita ao coletivismo e sem as limitações impostas pelo violento egoísmo humano. Assim, uma marciana descreve o amor humano como sendo pleno de “despotismo, […] egoísmo, […] anseio desesperado pela felicidade”, sintetizando a Leonid que considera que “seu amor é semelhante a um assassinato.”

Ao ler estas palavras, ecoam as reflexões de Alexandra Kolontai, dirigente bolchevique que com mais profundidade refletiu sobre a psicologia do amor. Ela dizia: “Talvez não haja nenhuma outra relação humana como as relações entre os sexos, na qual se manifeste com tanta intensidade o individualismo grosseiro que caracteriza nossa época” [1] . Diz que, nas relações amorosas de nossa sociedade, a ideia de propriedade sobre o ser amado implica em que “O absolutismo da posse encerra, irremediavelmente, a presença contínua desses dois seres, associação que é tão doentia para um como para outro.” [2] , afirmando também que a psicologia individualista da humanidade sob o capitalismo leva a que “Cada um dos sexos busca o outro com a única esperança de conseguir a maior satisfação possível de prazeres espirituais e físicos para si. Cada um utiliza o outro como simples instrumento.” Tais palavras poderiam perfeitamente ser expressas pela síntese feita pela marciana sobre o amor humano, de que ele “é semelhante a um assassinato”.

Bogdánov, entre suas inúmeras áreas de conhecimento e atuação, era médico psiquiatra, e em seu livro transparecem noções psicológicas da época. Uma das questões enfrentadas por Leonid é a das relações amorosas não-monogâmicas entre os marcianos, e é digno de nota que os trechos que fazem referência ao tema tenham sido suprimidos pelas edições do período stalinista, quando uma moral conservadora e patriarcal voltou a ser tratada como lei e a ferro e fogo pela casta burocrática parasitária. Nesse ponto, também, as contradições do psiquismo individualista de Leonid se chocam com a realidade de uma mentalidade muito mais livre dos marcianos, ao se enfrentar com seus sentimentos de possessividade e ciúmes. Bogdánov aqui traz ao leitor uma reflexão preciosa sobre a natureza cindida do psiquismo: a convicção intelectual não basta para mudar aquilo que sentimos profundamente, que está arraigado em nosso inconsciente. O protagonista do romance se expressa sobre tal questão da seguinte forma, ao refletir sobre a natureza não-monogâmica dos relacionamentos em Marte a partir de suas concepções marxistas e seus sentimentos conflitivos: “eu sempre considerei que a monogamia em nosso meio resultava apenas das nossas condições econômicas, que limitam e acorrentam a pessoa a cada passo; aqui, contudo, não havia essas condições, mas outras que não criavam nenhum empecilho para sentimentos pessoais e laços pessoais. De onde, então, teria vindo a minha perplexidade inquieta e a dor incompreensível que ora me fazia querer gritar, ora rir? Ou eu não saberia sentir tal-qualmente penso? Parece que sim.” A materialidade cria não apenas as condições materiais, mas as de nossa consciência e inconsciência. A sua reflexão sobre a forma como as relações amorosas são economicamente condicionadas não bastavam para que deixasse de sentir como sempre sentiu. O tema de como “a existência determina a consciência” (Marx) e como as relações amorosas não escapam a isso, também ressoa nas palavras de Kolontai, quando esta diz que “essa transformação psíquica depende completamente da reorganização fundamental das relações econômicas sobre os fundamentos comunistas. Se recusarmos esta velha verdade, o problema sexual não terá solução.” [3]

Também em relação às delimitações de gênero, o romance de Bogdánov apresenta reflexões muito avançadas. Vivendo hoje no Brasil tempos em que o reacionarismo da burguesia de extrema-direita nos faz retroceder ao ponto de vermos protestos organizados na porta de um hospital para tentar impedir uma menina de dez anos violentada pelo tio de realizar um aborto, podemos ler nessas páginas escritas em 1908 um vislumbre de um futuro possível: na Marte de Bogdánov, os gêneros se diluem ao ponto de se tornarem quase imperceptíveis. Roupas, trajes, papéis sociais quase não se distinguem, e Leonid apenas percebe que alguns de seus amigos marcianos são mulheres quando o avisam. Impossível não lembrar das roupas desenhadas por Varvara Stepanova nos Vkhutemas, após a revolução, em que as roupas sem gênero dão o tom de sua produção. Era a terra, após sua revolução, aproximando-se um pouco mais do sonho comunista de Marte de Bogdánov.

Contudo, é digno de nota como os sonhos de Bogdánov também tem as rédeas curtas da mentalidade de seu tempo, que, mesmo em um revolucionário, expressam ainda seus limites (afinal, como vimos acima, o próprio materialismo dialético nos explica porque, mesmo sonhando com o futuro, nossa materialidade condiciona nossos pensamentos e sentimentos de maneira inelutável). A crítica à arte moderna que ele coloca tanto na boca de seu protagonista quanto na dos marcianos, por exemplo, é o reflexo do próprio gosto “clássico” pela arte que era não apenas o de Bogdánov, como de grande parte da vanguarda revolucionária, incluído o próprio Lênin – que, seja-lhe feita justiça, nunca ousou colocar seu gosto pessoal como régua para nenhuma política de Estado, muito contrariamente ao que faria o stalinismo. Assim, vendo as estátuas de estilo realista dos marcianos, Leonid relata: “Sempre pensei que o desvio da realidade não pode ser um elemento imprescindível da arte; é até mesmo antiartístico quando diminui a riqueza da percepção, como a monocromia na escultura, que, nesse caso, não ajuda, mas atrapalha a idealização da vida que constitui a essência artística.”

Frente a essa apreciação e outras que são reveladoras das concepções artísticas do autor, é interessante pensarmos que, no entanto, foi ele um dos idealizadores de um dos mais importante movimentos culturais e artísticos do período revolucionário, no interior do qual se produziu muita coisa para a qual ele provavelmente torceria o nariz. E, além disso, tal como no caso da sexualidade, vemos a combinação entre o “velho” e o “novo”, pois uma das conversas de Leonid com Enno, a marciana que o conduz no museu, é sobre a fusão da arte com a vida, como ela deixaria de ser algo separado: algo que remete às concepções das vanguardas como os construtivistas/produtivistas que eclodiram com a revolução de outubro (e que igualmente foram censurados, presos e/ou mortos pelo stalinismo).


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FOOTNOTES

[1Alexandra Kolontai. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, p. 56.

[2Ibid, p. 33.

[3Ibid. p. 57
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