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"Existe uma unidade indissociável e dialética entre trabalho produtivo e reprodutivo", diz Rayane Oliveira

Diana Assunção

"Existe uma unidade indissociável e dialética entre trabalho produtivo e reprodutivo", diz Rayane Oliveira

Diana Assunção

O Ideias de Esquerda entrevistou Rayane Noronha Oliveira, professora Adjunta do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Suas respostas foram construídas coletivamente junto a Camila Carduz Rocha e Patrícia Rocha Lemos, em diálogo com o Grupo de Estudos sobre a Teoria da Reprodução Social. A entrevista foi concedida a Diana Assunção, historiadora e fundadora do grupo de mulheres Pão e Rosas no Brasil.

1. Sua pesquisa trata sobre a Teoria da Reprodução Social. Qual sua visão sobre a abordagem dessa teoria no Brasil, é possível dizer que se trata de uma “teoria em disputa”?

 
Não diríamos que a Teoria da Reprodução Social (TRS) se materializa como uma “teoria em disputa”, mas sim como uma teoria em constante e atual processo de construção. Como um processo intelectivo que se aproxima da realidade, a TRS ressurge diante das condições mais agudas de expropriações desencadeadas pelo regime ultraneoliberal, a partir de patamares mais complexos da crise estrutural do capital, nos anos de 2007-2008 e das lutas de resistência e de organização da classe trabalhadora para seu enfrentamento (das mulheres, movimento negro, migrantes no capitalismo central). Em princípio, emergiu de outros processos históricos, mais precisamente no final da década de 1960, no contexto do Debate sobre o Trabalho Doméstico, quando as elaborações em torno da natureza da opressão às mulheres e do trabalho doméstico não remunerado, nas teorizações dos feminismos socialistas e marxistas, estavam efervescentes. Mas, contraditoriamente, devido ao próprio processo de emergência de perspectivas fragmentadas, influenciadas pela “crise dos paradigmas sociais”, a TRS não encontrou um terreno favorável para o seu desenvolvimento, já que muitas perspectivas marxistas da época estavam influenciadas pelas abordagens positivista e estruturalista (um marxismo manualesco) e, por outro lado, muitos estudos de gênero, raça e sexualidade, se aproximavam de perspectivas pós-estruturalistas e pós-modernas, embora algumas autoras, como Angela Davis, nos EUA, e Saffioti, no Brasil, tenham se aproximado do marxismo a partir da análise dialética da totalidade social, na intenção de apreender a condição das mulheres no capitalismo.

No Brasil, podemos afirmar que não foi diferente de outros locais, embora a TRS tenha surgido em outro contexto histórico e dos debates urgentes. Contudo, aqui, a TRS se encontra também em processo de elaboração, a partir das determinações de um país de capitalismo periférico e dependente, racializado e generificado. Infelizmente, devido ao fato de muitas produções teóricas da TRS serem majoritariamente em língua inglesa, isso faz com que a teoria seja ainda muito pouco conhecida. Algumas traduções estão sendo realizadas e, além disso, muitas pesquisadoras jovens e feministas-marxistas, estão realizando pesquisas fundamentadas nessa perspectiva, o que faz com que haja, cada vez mais, a consolidação da TRS no Brasil e na América Latina. 

2) Você se define como da vertente “unitária” dentro da TRS, o que isso significa e quais são as diferenças com a vertente “dualista”?

 
Na verdade, a TRS e a Teoria Unitária são sinônimos. Existe um leque maior dos “Feminismos da Reprodução Social”, no qual localizamos teorizações diversas, que se aproximam ou não da Teoria Valor-Trabalho de Marx, como o feminismo autonomista desenvolvido por algumas teóricas como Silvia Federici e Mariarosa Dalla Costa, que não são feministas da TRS. No caso, a TRS se diferencia de algumas vertentes, como a supracitada, justamente por não localizarmos no trabalho doméstico a produção de mais-valia, mas isso não faz com que seja um trabalho de menor importância para a dinâmica de acumulação de capital. Partimos do pressuposto que existe uma unidade indissociável e dialética entre trabalho produtivo e reprodutivo, no qual o primeiro não existiria sem a existência do segundo. Essa afirmação possibilita o desenvolvimento investigativo de um campo de mediações em que localizamos as dimensões produtiva e reprodutiva das relações sociais capitalistas, particularizando o trabalho das mulheres da classe trabalhadora e as instituições familiares, responsáveis pelo lócus de produção e reprodução da força de trabalho.

No caso das teorizações dualistas ou “dos sistemas triplos”, a TRS se diferencia destas justamente por nos fundamentarmos no materialismo histórico-dialético no processo investigativo, utilizando ferramentas conceituais heurísticas como a noção de totalidade social. Desse modo, não dividimos ou fragmentamos o sistema capitalista em mais dois sistemas (patriarcal e racista), mas sim, partimos da apreensão de que se trata de um ÚNICO sistema e que, embora o patriarcalismo seja anterior ao sistema capitalista, não estamos mais diante do “mesmo sistema patriarcal” que emergiu antes do capitalismo, mas sim de novos regimes de opressão, dominação e alienação que foram forjados pela lógica de organização do sistema de classes capitalistas, por meio de uma nova divisão sócio-sexual racializada do trabalho/ uma nova divisão social do trabalho, racializada, binário-generificada e territorializada, e da própria emergência do racismo e do escravismo moderno, imprescindíveis no processo de acumulação primitiva do modo de produção capitalista.

A TRS alcança reflexões importantes para que não caiamos na hierarquização dos “sistemas de opressão, dominação e exploração”, ao mesmo tempo em que se dá a devida centralidade às dimensões do gênero, raça, etnia e sexualidade, sem reduzi-las às dimensões meramente culturais. Portanto, a Teoria Unitária suplanta as dicotomias entre produção e reprodução, natureza e cultura e, em última instância, entre base econômica e superestrutura política. As teorizações Lukácsianas de origem ontológica são muito importantes nesses saltos teóricos, pois, ao lidarmos com esferas ontológicas de ordens inorgânica, orgânica e social, conseguimos lidar com o complexo de complexos, que é a totalidade, apreendendo seu movimento constitutivamente dialético e total. 
 

3) Entre as teóricas da TRS há muitos debates sobre como abordar as elaborações de Karl Marx e o marxismo mais em geral. Qual a sua visão sobre a teoria-valor de Marx e a relação com estes debates atuais?

 
A Teoria Valor-Trabalho de Marx é apropriada pela TRS em sua condição fidedigna, correspondente à teoria e ao método marxiano. Assim, não buscamos realizar uma alteração da teoria-método marxiano, mas sim aplicá-la no processo de apreensão do trabalho produtivo e reprodutivo, a partir de novas determinações, muitas inexistentes na época em que Marx escreveu O Capital, outras, ainda pouco elaboradas pelo próprio O Capital. Muitas investidas estão sendo realizadas no conjunto de teorizações da TRS e isso tem relação com a atualidade da teoria valor-trabalho de Marx e sua importância para a luta revolucionária. Partimos da centralidade da produção de mercadorias, mas apreendendo que essa produção seria inviabilizada sem que houvesse um processo sócio-histórico complexo que forjou com que as mulheres da classe trabalhadora fossem as principais responsáveis pela produção de novos seres humanos: os portadores da mercadoria força de trabalho. São as mulheres da classe trabalhadora também que são as principais responsáveis pela manutenção e o provimento de cuidados do conjunto da classe trabalhadora. Nesse sentido, o trabalho que hegemonicamente as mulheres da classe trabalhadora realizam no âmbito doméstico compõe indiretamente a mais-valia apropriada no âmbito produtivo. Essa constatação permite analisarmos outros níveis de abstração em torno da reprodução social da força de trabalho e, além disso, apreender a natureza da opressão e dominação das mulheres no capitalismo. 
 

4) Um tema muitas vezes ausente entre os debates da TRS são os sindicatos. Qual sua visão sobre a questão dos sindicatos, das direções burocráticas e da auto-organização das trabalhadoras e trabalhadores partindo das novas questões que a TRS traz para o debate da classe trabalhadora?

 
A TRS não é um partido ou uma organização política e, por isso, não tem uma formulação de estratégia definida para o conjunto de temas envolvidos na superação do capitalismo. É um campo teórico-prático que emerge do próprio acúmulo dos movimentos feministas e de intelectuais feministas marxistas de diversas partes do mundo. Estamos interessadas em desenvolver um feminismo marxista ou um marxismo feminista que se confundam. Ao mesmo tempo, a TRS traz imensas contribuições para pensar as tensões entre os movimentos trabalhistas e os movimentos feministas e, assim, aponta os limites de determinadas estratégias sindicais, na medida em que elas reproduzem visões estreitas da classe trabalhadora e, consequentemente, de suas demandas e formas de organização. Pensando nisso, acho que algumas autoras, como a Tithi Bhattacharya, destacam a importante de se pensar a organização da classe para além do local de trabalho estrito (quando esse é outro que não o ambiente doméstico), o que não significa recusar a organização e a forma sindical. Ao contrário, nos parece que é possível fortalecer a perspectiva de que o sindicato que se propõe organizar a classe deva ser um sindicato que parte do estímulo à auto-organização dos/as trabalhadores/as pensando o conjunto da sua realidade social, extrapolando a relação estreita contratual, para olhar para as condições de vida e de trabalho em conjunto. Consideramos que a TRS ajuda a ir além dessa visão que supervaloriza o problema das direções e da burocracia sindical. Isso porque ela nos ajuda a pensar as dificuldades que advém do desenvolvimento do capitalismo - com a diferenciação e fragmentação da classe – e, como esse processo encontrou muita sustentação ao longo das décadas na tradição machista e racista das organizações sindicais mais fortes, justamente dos setores mais organizados com predominância de homens brancos. Ou seja, essa visão estreita encontra dificuldade de ser superada pelas estratégias políticas das organizações - inclusive revolucionárias - que têm reproduzido a secundarização ou recusa em considerar a reprodução social em relação e unidade com a produção. Sem dúvida a própria estrutura sindical, no caso brasileiro, além das direções pelegas e burocratizadas, são um grave entrave que precisa ser combatido, mas consideramos que a questão vai além. As questões da reprodução social já eram muito concretas para determinadas categorias e algumas, inclusive, tiveram lutas e conquistas nesse sentido. O sindicalismo brasileiro dos anos 1980 inspirou em outras partes do mundo um modelo sindical articulado com outros movimentos sociais e territorialmente com demandas não estritamente trabalhistas oriundas da relação assalariada formal. Atualmente, parece um debate de consenso que os sindicatos precisam se reinventar e entendemos que a TRS pode ser uma ferramenta importante para contribuir nesses esforços.

5) Como a TRS pode contribuir para os debates de estratégia da luta da classe trabalhadora?

 
Por ser uma teoria que coloca no centro das suas análises o trabalho de produção da vida, a partir da reprodução da força de trabalho, coração do processo de acumulação de capital, que historicamente tem sido realizada por sujeitos subalternizados, como mulheres racializadas e pessoas migrantes, a TRS aparece como um campo de convergência entre um conjunto de intelectuais marxistas que estão preocupadas em apreender a classe, a raça e o gênero não apenas em sua perspectiva histórica, mas captar a lógica de suas constituições. Esta renovação da apreensão marxista sobre a classe trabalhadora permite criar estratégias para a luta política, na qual racismo, sexismo e xenofobia, por exemplo, não aparecem como pautas identitárias, senão como constitutivas das pautas da classe trabalhadora. Não se trata de solidariedade com as pessoas negras, as mulheres ou migrantes, trata-se da unidade da luta, pois a classe trabalhadora é também composta por pessoas negras, mulheres e migrantes.

Acreditamos que a TRS contribui estrategicamente na luta de classes ao possibilitar uma apreensão sobre a classe trabalhadora e sua constituição a partir de uma análise concreta da totalidade. A TRS não apenas desestabiliza a noção de classe protelária desenvolvida pela esquerda economicista e reduzida a um tipo específico de trabalhador (operário,branco, oriundo do centro do capitalismo), como também desvela as múltiplas determinações que articulam os diversos problemas que impactam a organização da classe e as suas próprias condições de reprodução, como os problemas relacionados ao acesso às creches, às cozinhas comunitárias, aos serviços públicos da reprodução social da força de trabalho, além da questão do genocídio e do encarceramento negro, da justiça reprodutiva, dos direitos das populações LGBTQIPA+, das populações indígenas, quilombolas e tantas outras questões. Além disso, a TRS desenvolve uma análise na qual trabalho produtivo e trabalho improdutivo-reprodutivo fazem parte de um mesmo processo, dialético, e apesar da reprodução estar subordinada à produção, seu papel na acumulação de capital é fundamental, portanto, confere à esta dimensão uma importância que historicamente ficou invisibilizada. No atual momento de crise estrutural do capital, de aprofundamento do neoliberalismo, de desmonte e privatização dos direitos sociais pelo Estado brasileiro, agravadas pela pandemia da Covid-19, a dimensão da reprodução social, historicamente relegada como responsabilidade das mulheres da classe trabalhadora, no âmbito doméstico e público, de maneira remunerada e não remunerada, é impactada diretamente, fazendo com que as mulheres da classe trabalhadora, em sua maioria racializadas como não brancas, migrantes, desempregadas ou em trabalhos informais e/ou precarizados, tenham, ainda mais, seus tempos apropriados e suas vidas impactadas. Desenvolver teorizações capazes de responder aos problemas atuais, assim como apontar estratégias políticas de união, é urgente. Nesse sentido, a TRS surge como uma ferramenta importante para uma unidade da classe trabalhadora em sua diversidade e pluralidade, fazendo com que as múltiplas determinações que a constituem historicamente, com relação à raça/etnia, ao gênero e ao território sejam reconhecidas como parte da luta de classes, e não como demandas e/ou reivindicações alheias ou externas às demandas e/ou reivindicações da classe trabalhadora.


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