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Fotos encontradas da Revolução Espanhola

Dominique Valda

Fotos encontradas da Revolução Espanhola

Dominique Valda

Às vezes, encontram-se caixas que contêm tesouros: memória e tesouros políticos, neste caso. Isso foi revelado pelas "Cajas de Amsterdã", onde estavam armazenados mais de 5.000 negativos da Revolução Espanhola por 80 anos, que se acreditava terem desaparecido para sempre, e que foram exibidos pela primeira vez em Madri neste ano.

Em memória de Laura Colabianchi (1962-2022), sindicalista e revolucionária, e de Valter Tomassi (1951-2022), anarquista à sua maneira.

Margaret Michaelis e Katrin Horna são duas fotógrafas e ativistas anarquistas cujos caminhos se chocam com uma grande história: a da Europa Central do pós primeira guerra, ainda vivendo as ondas da Revolução Russa, da Berlim dos anos 1930 (da qual são forçadas a fugir por serem revolucionárias e judias) e o da luta antifascista e da Revolução Espanhola. Uma revolução que elas vivem e fotografam não do lado da história republicana oficial, mas do lado das milícias anarquistas e das experiências de coletivização realizadas na Catalunha, em Valência e em Aragão. A exposição "Las cajas de Amsterdam: Kati Horna y Margaret Michaelis en la Guerra Civil" é uma verdadeira viagem à Revolução, possível graças ao trabalho de Almudena Rubio, historiadora da arte, pesquisadora do Instituto Internacional de História Social de Amsterdã (IISG) e curadora desta retrospetiva que desenterrou as imagens das duas fotógrafas em 2016, realizando um minucioso trabalho de identificação e catalogação no âmbito de um trabalho de investigação que continua até agora. Os primeiros resultados puderam ser vistos através da exposição organizada no âmbito da 25ª edição da PhotoEspaña na Calcografía Nacional da Academia de Belas Artes de San Fernando, em Madrid.

Caminhos cruzados

Margaret Michaelis (1902-1985), nascida Margarethe Gross em uma família judia em Dziedzice (Império Austro-Húngaro, hoje Czechowice, Polônia), decidiu estudar fotografia em Viena no final da década de 1920 antes de se estabelecer em Berlim, onde se casou com o arqueólogo e militante anarquista Rudolf Michaelis. Detidos e depois expulsos da Alemanha pelas autoridades nazistas, o casal refugiou-se em Barcelona onde puderam contar com o apoio da Deutsche Anarcho Syndikalisten, rede anarco-sindicalista de língua alemã ligada à poderosa Confederação Nacional do Trabalho-Federação Anarquista Ibérica (CNT-FAI). Quando em julho de 1936 a classe trabalhadora do Estado espanhol se mobilizou contra o golpe franquista, Michaelis estava na linha de frente, com sua Leica na mão. Ela se tornou uma das fotógrafas de confiança do Escritório de Propaganda Estrangeira da CNT até o início de 1937, quando deixou a Catalunha para fazer uma última visita aos pais e imigrar para a Austrália, onde morreu em 1985.

Como explica Rubio, Kati Horna (1912-2000) substituiu Michaelis na "Maison CNT", a sede dos anarquistas de Barcelona onde ficavam os escritórios do Gabinete de Propaganda. Nascida Katalin Deutsch Blau, em Budapeste, em um rica família judia, mudou-se para Berlim, com Paul Partos, seu companheiro, também apaixonado por fotografia. A capital alemã era então um dos principais lugares do movimento de trabalhadores e comunista e Horna e Partos frequentavam os círculos de extrema esquerda anti-stalinistas ligados a Karl Korsch. Depois que Hitler chegou ao poder, o casal passou por Budapeste antes de se estabelecerem em Paris. Enquanto a França é atravessada pelas grandes greves da Frente Popular, é "muito natural" que Partos coloque a sua pedra na construção da revolução social em curso do outro lado dos Pirinéus, contribuindo, em particular, para A Espanha Antifascista, ligada à CNT, e Horna também acompanhou de perto os acontecimentos.

Em janeiro de 1937, eles foram clandestinamente para a Catalunha e assumiram responsabilidade nas batalhas políticas. Como “trabalhadora de arte”, como gosta de se definir, Horna torna-se a fotógrafa oficial dos anarquistas, na origem da agência fotográfica espanhola (Photo SPA), como aponta o curador da exposição. O clima, no entanto, tornou-se cada vez mais pesado e depois das barricadas de maio de 1937 durante as quais a ala moderada da República, com o apoio dos stalinistas, dos socialistas e da maioria dos anarquistas, liderou a caça aos revolucionários e aos libertários mais radicais, ela foi transferida para Valência para a revista Umbral, para qual produziu inúmeras reportagens no front, principalmente em Teruel. De volta a Barcelona, ​​onde conheceu aquele que seria seu segundo companheiro, o anarquista andaluz José Horna, Kati continuou seu trabalho, mas o casal partiu para a França em meados de 1938 antes de seguir para o México, devido à política do país de asilo aos combatentes antifascistas.

As caixas de Amsterdam

Deixando a Espanha para sempre, no início de 1937 para Michaelis e em meados de 1938 para Horna, os dois militantes deixaram muito material fotográfico. Com a derrota da República e dos antifascistas em abril de 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, os dois fotógrafos não sabiam onde estavam guardados seus registros. Juntamente com grande parte dos arquivos da CNT-FAI, as fotografias foram guardadas em 48 caixas de madeira que foram transportadas para o outro lado dos Pirenéus, com destino ao Instituto Internacional de História Social de ’Amsterdão (IISG), fundado alguns anos antes para coletar a memória dos trabalhadores e os arquivos das organizações trabalhistas ameaçadas pelo fascismo. Depois de uma longa viagem, passando por Toulouse, Paris, Harrogate e depois Oxford, as caixas finalmente chegaram à Holanda em 1947. O mistério que paira sobre o "desaparecimento" das fotografias de Michaelis e Horna foi resolvido graças ao trabalho de Almudena Rubioz, que insiste no interesse dos anarquistas, em plena guerra, de salvar o seu "patrimônio" e a sua memória das garras do franquismo.

As caixas, de fato, permaneceram fechadas por mais de trinta anos, até depois da morte de Franco, enquanto a CNT continuava sua ação, na clandestinidade, no Estado Espanhol. Só na década de 1980 é feito um primeiro inventário, e foi em 2016 que o trabalho fotográfico de Horna e Michaelis viu a luz por Rubio, cuja pesquisa então se concentrou no legado iconográfico das duas fotógrafas.

Conhecíamos a "valija mexicana", a "mala mexicana", este conjunto de três caixas contendo aproximadamente 4.500 negativos de fotografias da Guerra Civil Espanhola tiradas por Robert Capa, Gerda Taro e David Seymour, encontrados por milagre em meados da década de 1990 no México, cujo conteúdo foi divulgado em 2007.

Existem, agora, graças ao trabalho de Rubio, estas "cajas de Amsterdam" e seus tesouros de 2300 fotografias, 5000 negativos e 270 placas de vidro. A retrospectiva realizada em 2022 apresentava assim um pouco mais de uma centena dessas fotografias nunca antes exibidas no Estado espanhol, bem como um curta-metragem inédito filmado no Fronte de Aragão, em diálogo com a imprensa confederal libertária e outros documentos inéditos da guerra civil que a pesquisadora Almudena Rubio recolheu durante seu trabalho com o objetivo de resgatar o discurso das duas fotógrafas no contexto da Guerra Civil que então abalou a República Espanhola.

Do lado da revolução

Mas enquanto Capa, Taro e Chym se envolvem com a República Espanhola (Taro perderá a vida durante a Batalha de Madrid) e enquanto examinam o fronte de onde tiram uma série de ícones fotográficos da imprensa comercial, mas também das publicações socialistas e comunistas da época, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, Michaelis e Horna retratavam a revolução no dia a dia. Um retrato firmemente ancorado do lado da revolução social, dos libertários e da ala esquerda do movimento antifascista, que virá a entrar em contradição com a estratégia desenvolvida pelo governo da República e pelos stalinistas espanhóis.

No trabalho de Michaelis e Horna, o fronte é menos uma questão de combate, que eles fotografam, do que de resistência e camaradagem. Quem está lutando é o pequeno povo da Espanha que se levantou contra os golpistas e que pretende, ao mesmo tempo, recuperar o que lhe é de direito: o controle das fábricas, a divisão das terras e uma vida radicalmente nova. Esta é a imagem que Horna nos dá nas suas fotografias da Divisão Ascaso, na linha do fronte, em Aragão: ela surpreende os combatentes à hora do almoço. São trabalhadores e camponeses, que bebem água de encostar a boca no vasilhame. Nos pés, alguns usam alpargatas simples amarradas na altura das panturrilhas com cordões. Eles conversam enquanto comem, esquecendo por um momento os combates.

Combatentes da divisão Ascaso no Fronte de Aragão, 1937. Kati Horna. Fonte: Almudena Rubio, Archive photographique CNT-FAI, IISG Amsterdam, © Ministerio de Cultura y Deporte. Centro Documental de la Memoria Histórica

Nas fotos também há mulheres entre eles, as quais o governo republicano de Largo Caballero proibiu de ir ao combate, como nos primeiros momentos da revolução. Porém, não tiraram o macacão da milícia e ainda usam o boné vermelho e preto da CNT. Foi Michaelis quem fotografou seus rostos sorridentes, na região de Valência onde foi contratada pela CNT para acompanhar a anarquista russo-americana Emma Goldman, em outubro de 1936.

Valência, 1936. Margaret Michaelis. Fonte: Almudena Rubio, Arquivo Fotográfico CNT-FAI, IISG Amsterdam, © The Estate of the Late Margaret Michaelis

A riqueza dos clichês também se relaciona com a forma como Michaelis e Horna se interessam pelas transformações vividas pelas regiões passadas ao controle dos trabalhadores e camponeses influenciados pela ala esquerda da Espanha antifascista, onde elas e eles se auto-organizam e organizam a revolução diariamente. Assim descobrimos, sentados à mesa de um dos ex-diretores da empresa de transportes de Barcelona, ​​maquinistas, motoristas de bonde e militantes, ocupados organizando o planejamento do novo transporte público na capital catalã, no início da insurreição.

Colheita em Xàtiva (Valência), outubro de 1936. Margaret Michaelis. Fontes: Almudena Rubio, Arquivo Fotográfico CNT-FAI, IISG Amsterdam, © The Estate of the Late Margaret Michaelis

No campo, os camponeses não descansam. Ainda na região de Valência, em Xàtiva, em outubro de 1936, na companhia de Emma Goldman, Michaelis acompanha a colheita realizada coletivamente por mulheres, crianças e idosos, estando a maioria dos homens aptos no Fronte. Mais uma vez, os bonés com as armas da CNT, os risos das crianças e as discussões congeladas pelo filme nos contam como foi o Comitê Camponês, tendo feito a coletivização da terra, que se encarregou da nova organização da vida na aldeia e como a revolução é vivida no dia a dia, apesar do barulho dos combates.

Em L’Álcora, reduto libertário localizado a 80km ao norte de Valência, o comitê anarquista local aboliu o dinheiro e confiscou o antigo convento cujos mosaicos cobriram a fachada com uma nova inscrição que diz, inequivocamente, "Sindicato Único dos Trabalhadores" e que tem o carimbo CNT-AIT. Em outros lugares, as igrejas foram transformadas em armazéns e locais de reunião por comitês de coletivização. É o que descobrimos nas fotos tiradas por Horna em Alcañiz, perto de Teruel, ou em suas outras fotos de Aragão, onde observamos carpinteiros trabalhando pela revolução, diante do altar, à luz dos vitrais.

Funeral de Francesco Barbieri e Camilo Berneri, Barcelona, ​​​​11 de maio de 1937. Kati Horna. Fontes: Arquivo Fotográfico Almudena Rubio CNT-FAI, IISG Amsterdam. © Ministério de Cultura e Esporte. Centro Documental da Memória Histórica

Como aponta a curadora da mostra, enquanto Michaelis tirou todas as suas fotos no período mais dinâmico da revolução, quando sua ala esquerda estava em ascensão, a chegada de Horna a Barcelona coincide com o início de um giro autoritário do governo central da República, com a ajuda do Partido Comunista Espanhol, alinhado com Moscou. Stalin, de fato, não quer uma revolução na Espanha. Entre 3 e 8 de maio de 1937, Barcelona mais uma vez se encheu de barricadas. A luta opõe, desta vez, os combatentes da esquerda revolucionária e as autoridades republicanas. Entre as fotos inéditas em exibição está a tirada durante o funeral dos anarquistas italianos Francesco Barbieri e Camilo Berneri, que foram assassinados no momento de sua “prisão” pelas autoridades republicanas em 5 de maio em Barcelona. Na fotografia de 11 de maio, vemos os pesados ​​carros fúnebres, puxados por cavalos, rodeados pelos gorros e boinas dos trabalhadores e os rostos sérios e consternados das mulheres que refletem a dureza dos recentes combates na cidade, em defesa da revolução e contra este governo que diz pretender levar a luta contra o fascismo até o fim, mas que vai enterrar o processo revolucionário. A multidão, densa, testemunha o modo como a paixão revolucionária ainda não se rendeu.

O viés fotográfico e estético de Michaelis e Horna só pode ser compreendido à luz de seu compromisso a serviço da Revolução. Como destaca a curadora da exposição, Almudena Rubio, "a trajetória de Horna durante a Guerra Civil foi marcada pelo selo de sua relação com os anarquistas: primeiro por meio de seu trabalho para o Gabinete de Propaganda e depois, em um segundo momento, dentro do quadro da revista Umbral, dependendo também da CNT”. É isto que explica, fundamentalmente, a radicalidade destas fotografias.

Tradução: Lina Hamdan


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