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Peru | Há dois meses do golpe: por que não cai Dina Boluarte?

Dois meses se passaram desde a tentativa bonapartista falida do ex presidente Pedro Castillo e do golpe parlamentar que impôs Dina Boluarte no governo. Milhares de camponeses, indígenas e trabalhadores se mobilizaram, com fechamentos de rodovias e piquetes, enfrentando uma brutal repressão policial que cobrou a vida de ao menos 40 manifestantes. Mas por que Dina Boluarte ainda não caiu?

quinta-feira 9 de fevereiro de 2023 | Edição do dia

No presente artigo, tratamos de abordar alguns elementos que consideramos relevantes para que a queda de Dina Boluarte e de todo o regime político golpista não tenha se dado, mesmo com toda a heróica luta do povo peruano com os indígenas e camponeses à frente; queremos também apontar questões políticas, estratégicas e programáticas para que o processo atual resulte vitorioso se impondo sobre os interesses dos capitalistas, e apontar uma outra perspectiva de futuro ao povo trabalhador e camponês, aos indígenas, à juventude e a todos os setores oprimidos da sociedade.

Crise do Regime de 93 e convulsão social

O Peru vive há dois meses uma enorme convulsão social desencadeada por gigantes ações de protesto e insurreições desenvolvidas por camponeses, trabalhadores precarizados e estudantes para derrubar o governo de Boluarte, nascido de um golpe parlamentar, frente à caricaturesca tentativa bonapartista de Pedro Castillo, sustentado pelo entramado de instituições que se estruturam nos marcos do Regime da Constituição de 93.

A Constituição de 1993 foi imposta por Fujimori através de um golpe de Estado que assentou as bases das políticas neoliberais, que priorizaram os interesses das grandes multinacionais, favorecendo a espoliação nacional, e que liquidaram uma série de direitos econômicos, sociais e culturais, sendo hoje questionada incansavelmente pelo povo peruano.

O nível de levantamento popular que se desenvolve no Peru é considerado superior à Marcha dos Quatro Suyos, que marcou a queda do governo neoliberal de Alberto Fujimori em julho de 2000, ou seja, é a maior onda de protestos dos últimos 30 anos, que se abriu com os camponeses e indígenas à frente.

Os números indicam um confronto sangrento e desigual: há cerca de 65 mortos, centenas de feridos e milhares de presos, com um viés racista e de massacre aos manifestantes. Neste marco, o Governo Boluarte se ergue como uma grotesca imitação ditatorial.

A situação é de uma crise política muito profunda; o governo de Boluarte é tido por muitos setores populares como traidor por não renunciar e ser um fantoche dos grupos empresariais que diariamente expressam seu profundo racismo; ao mesmo tempo, há um enorme questionamento ao Congresso e ao degradado regime democrático peruano herdado do fujimorismo.

Neste processo, se evidenciou um país dividido ao meio: o Peru de Lima, mais branco, rico, controlado pela elite econômica, empresarial, política e social, e que se beneficia de um crescimento econômico nacional na última década baseado essencialmente na acumulação de riqueza vinculada à atividade de mineração e agroexportadora, ou, mais precisamente, na exploração da força de trabalho na cidade, nas minas e no campo do Peru profundo.

O que está em jogo nesta situação é o questionamento de toda precarização, miséria, racismo e subordinação aos interesses dos capitalistas peruanos e estrangeiros que recaem sobre o povo trabalhador, camponês e indígena, e como toda esta exploração e opressão protegem e mantêm Dina Boluarte, o Congresso, o Poder Judiciário e todo regime político herdeiro do fujimorismo.

13 fatores pelos quais Dina Boluarte não caiu

1. O apoio do imperialismo estadunidense e dos governos da região, inclusive de “progressistas” como Lula, Férnandez e Boric, que mantiveram seu reconhecimento do governo golpista, ao ponto de sustentar o fornecimento de equipamentos para a repressão desde o Brasil e outros países.

Leia também: Quem é a empresa brasileira que lucra com a repressão assassina no Peru e outros países

2. O apoio da burguesia peruana e a radicalização dos agroexportadores com o chamado à conformação de grupos paramilitares, como se pôde observar no desbloqueio das vias na cidade de Ica.

3. O apoio do Comando Conjunto das Forças Armadas e da Polícia Nacional do Peru, que hoje, mais do que nunca, evidenciam à população seu papel de defesa do regime e das classes dominantes.

4. O apoio direto ou indireto da imprensa que legitimou as ações golpistas da direita, a repressão, os assassinatos, e se recusa a divulgar as reivindicações do povo e as mobilizações, difundindo mentiras para associar os manifestantes a terroristas e sugerindo, inclusive, que seriam financiados ilicitamente.

5. O papel de Castillo e seus aliados que, desde o primeiro dia de seu governo, ou mesmo antes, se dedicaram a desorganizar e desmobilizar sua base e a esquerda, por meio da adaptação à lógica do Estado e do parlamentarismo burgueses, abaixando as bandeiras de seu programa a cada golpe desferido pela direita - o que se materializou na retirada de ministros, nos discursos, visitas, leis e ações cada vez mais complacentes com a burguesia e o imperialismo estadunidense, o que redundou na desorganização e em objetivos pouco claros.

6. A classe operária ainda não ingressou no cenário político, esta que faz a sociedade e os pontos nevrálgicos do sistema capitalista funcionarem, responsável pela produção e circulação de bens e pessoas, e assim controla “posições estratégicas” como o transporte, as grandes indústrias, minas peruanas como a de Cerro Verde, Antamina e de Las Bambas, os portos e serviços. Isto só é possível devido ao nível de fragmentação imposto por décadas de neoliberalismo, de ataques aos sindicatos e à organização da classe trabalhadora e, fundamentalmente, pelo papel desempenhado pela CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru] e pelas demais centrais sindicais que se negam a organizar a luta dos trabalhadores peruanos nos locais de trabalho, debilitando também a luta dos camponeses e indígenas que se isola nas províncias, garantindo tempo ao governo de Boluarte e ao regime político para buscarem derrotar a mobilização por meio da repressão, do cansaço e da cooptação de lideranças.

7. A repressão ao movimento estudantil, materializada na entrada da polícia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos com tanques e cerca de duzentos detidos, limita o alcance e a força da aliança operária, campesina e estudantil para derrubar Boluarte, como também pudemos observar na negativa ao pedido de alojamento de manifestantes na Universidad Nacional Agraria La Molina. É preciso levar em conta que o movimento estudantil começou a desempenhar um papel de protagonismo não apenas em Lima, como também em regiões como Puno e Cusco, onde também se observou processos de organização e mobilização.

8. Nas ações de protesto, vem primando o corporativismo e as lutas parciais que, ao não converterem-se em uma mesma luta, não permitem a derrubada de Dina Boluarte. Por isso, as direções sindicais devem apontar uma política de hegemonia que oriente os trabalhadores a entrar no processo para lutar ao lado dos camponeses, dos indígenas, dos estudantes e da juventude precarizada, de forma independente das instituições do regime e dos partidos burgueses. Uma política assim ampliará o apoio solidário que a população já vem expressando e permitirá melhores condições para que os protestos passem da revolta à revolução.

9. Não há um espaço legitimado de coordenação e/ou centralização democrática das ações de protesto, e são escassos os espaços de auto organização nos quais se possa debater e decidir democraticamente um plano de luta, e onde os lutadores possam controlar todos os passos da luta e, inclusive, fiscalizar que seus dirigentes cumpram as decisões das assembleias e reuniões amplas, sendo passíveis de revogação e substituição pelo povo. Por um lado, há a Assembleia Nacional dos Povos, que tem como coluna vertebral a CGTP e as Frentes de Defesa Regional, e, por outro, há o recém fundado Comitê de Luta das Regiões do Peru, espaço no qual se encontram setores provenientes da Assembleia Nacional dos Povos e de organizações que se somaram durante o processo de luta.

10. A lógica clandestina/conspirativa, representada pela paranoia de infiltração, é lamentavelmente parte dos mecanismos burocráticos para manter o controle das organizações em luta, paralisando-as para, assim, evitar o debate, os balanços das políticas levadas adiante pelas organizações e também da conduta dos diversos dirigentes. Desta forma, por trás da retórica conspirativa, se esconde a covardia burocrática e se aplica o arrivismo de dirigentes mais preocupados em manter-se em seus pequenos cargos do que efetivamente dar direção, convertendo os espaços de coordenação e/ou centralização em reuniões de cúpula que em pouco ou nada estabelecem perspectivas claras para alcançar uma vitória da mobilização, nas quais primam o espontaneísmo e a dispersão, em meio a mobilizações até o momento sufocadas.

11. Não foi tomada seriamente a tarefa para que se desenvolva uma Greve Geral (Política) contundente, preparada democraticamente em cada local de trabalho e região através de assembleias amplas, para que as medidas sejam efetivas e cheguem ao conjunto dos trabalhadores, camponeses, indígenas, estudantes, entre outros. Isto se evidenciou nos chamados a uma Greve Nacional: o Comitê de Luta das Regiões do Peru chamou uma greve nacional por tempo indeterminado a partir de 3 de fevereiro, enquanto a CGTP chamou uma greve nacional por 24 horas para o dia 9 de fevereiro.

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12. A situação insurrecional se mantém enclausurada na região sul do país, em especial nas regiões de Puno, Madre de Dios, Apurímac, Ayacucho e Cusco, onde nem mesmo a mobilização do Comando Conjunto das Forças Armadas pôde deter os bloqueios nas estradas. A não-expansão desta insurreição permitiu a centralização do conflito e a redução do mesmo a algumas poucas regiões do país.

13. A ausência de uma esquerda socialista e revolucionária com maior influência na realidade e de uma partido revolucionário no Peru, que tenha uma estratégia e programa capazes de conquistar influência e capacidade de mobilização nos centros de produção capitalista, golpeando com um só punho para derrubar o regime golpista e batalhar para estabelecer um Governo Provisório dos setores em luta e uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana - que garanta que todas as demandas mais sentidas pelo povo trabalhador e camponês seja tomada por amplos setores, arrancando justiça pelos mortos, fazendo com que os capitalistas paguem pela crise e abrindo caminho a uma saída de fundo: o estabelecimento de um governo dos trabalhadores.

Sobre a necessidade de mobilizar e organizar a classe trabalhadora de Lima

Desde o La Izquierda Diario Peru, impulsionado pela CST (Corrente Socialista dos Trabalhadores, organização irmã do MRT no Peru), viemos defendendo a necessidade da classe trabalhadora, em especial dos setores estratégicos, de ingressar no processo de luta para ser o fator que permita assegurar uma vitória real dos setores populares, do campesinato e dos trabalhadores, evitando, assim, um desvio institucional da luta (como ocorreu no Chile com a Convenção Constitucional), como pretendem os setores da burguesia e do empresariado, incluindo setores do fujimorismo.

Para que a classe trabalhadora entre em cena, é fundamental que a CGTP construa a Greve convocada para este 9 de fevereiro em cada local de trabalho, em assembleias democráticas em que os trabalhadores efetivos, terceirizados, formais e informais tenham voz, como parte da construção de uma política geral de greve para pôr abaixo o regime golpista de Boluarte e o Congresso, fazendo ecoar os gritos de “abaixo Boluarte e todo regime golpista!”.

Diante das tentativas de desvio, como a proposta de adiantamento das eleições, emerge a importância de que a classe trabalhadora se some à luta camponesa e popular para batalhar por um Governo Provisório dos trabalhadores, camponeses e setores populares em luta. Esta é a única forma de arrancar as demandas levantadas em todo o país.

Para que uma Assembleia Constituinte não se torne uma armadilha, é preciso que seja Livre e Soberana, ou seja, que não se subordine às instituições do Regime de 93 e que tenha poder para legislar e executar medidas a favor do povo trabalhador, e atacar os lucros dos capitalistas e os privilégios da casta política e dos empresários, que são a base de apoio de Dina Boluarte.

Veja também: Peru: Greve geral política e Assembleia Constituinte Livre e Soberana




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