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Há potencial transgressor no carnaval, e sua repressão é de classe!

Laura Sandoval

Há potencial transgressor no carnaval, e sua repressão é de classe!

Laura Sandoval

Da repressão policial e espacial à cooptação capitalista, mesmo depois de dois anos sem festa pela pandemia, neste ano de 2023 avança a represália aos elementos mais transgressores do carnaval e da cultura de rua. Por isso, vamos buscar analisar histórica e atualmente, quais são esses elementos subversivos e conectar sua repressão ao projeto político e ideológico de uma classe - a burguesia.

Ainda que interessantíssimo, não interessa ao presente artigo retomar as origens mais remotas do carnaval em ruas referências às festas pagãs do Egito, Grécia e Roma, que celebravam as mudanças de estação e os respectivos deuses naturais da fecundidade e da colheita. Por isso, partiremos do Carnaval no Brasil como uma história de disputa. O Carnaval chega ao país no período colonial, como herança do entrudo português e das mascaradas italianas, sendo apenas posteriormente modificado por elementos das diversas culturas africanas. Assim, é preciso esclarecer desde o princípio, que o Carnaval nunca foi aquela miscigenação homogênea, em que brancos e negros, pobres e ricos se misturavam em alegria. Essa visão pertence ao senso comum e fortalece a ideologia burguesa, tentando justificar absurdos como uma suposta superação do racismo no Brasil.
Historicamente, o “carnaval” de entrudo no Brasil era uma brincadeira considerada violenta, praticada pelos escravos. Estes jogavam água, farinha, polvilho etc. uns nos outros. Enquanto isso, as famílias brancas e de posses se divertiam dentro de casa, com brincadeiras e práticas como jogar água suja do topo das janelas nos passantes e participantes do entrudo, o que muitas vezes era realizado por jovens moças abastadas. Desde o princípio, então a festa tinha contornos distintos para os diferentes grupos sociais.

Em meados do século XIX, no Rio de Janeiro, houve campanhas contra a manifestação popular, que resultaram na criminalização do entrudo, a festa de rua dos negros e pobres. Enquanto isso, a elite ainda se divertia devido à criação de bailes de carnaval em clubes e teatros, no ritmo da polca. A partir desses bailes, a elite começava a se organizar em sociedades carnavalescas, passando a organizar desfiles nas ruas do Rio de Janeiro, buscando tomar para si o espaço das ruas, enquanto a prática do entrudo ainda era proibida. Não que em algum momento a proibição tenha conseguido acabar com as festas populares, pois elas foram adaptadas para cordões e ranchos, como meio de resistir à repressão estatal e policial, demonstrando a vontade dos setores oprimidos de se agarrarem aos poucos momentos de celebração que possuíam. Esse cenário escancara uma disputa interna ferrenha sobre o caráter do carnaval, contrapondo o carnaval de salão das elites ao carnaval das camadas populares que, sem posses, possuía a rua para ocupar. Nesse sentido, fica bastante gráfico a potencialidade de ocupar as ruas, os espaços públicos, não somente em festa, mas também em luta e resistência. Não somente nesse momento histórico, mas em vários na história do Brasil, verificamos o quanto isso incomoda a elite, que tenta disputar esse espaço para impedir que sejam as massas populares que o domine.

Nesse momento de virada do século XIX para o XX são incorporadas as tradições culturais africanas, como os afoxés na Bahia, o frevo em Recife, o maracatu em Olinda etc. Nesse marco, o carnaval popular e o da classe dominante assumiu outras formas de realização. Entre a cultura negra, sonoridades, espiritualidades, comidas etc. surgem as escolas de samba. E entre a elite surgiram os corsos, desfiles nas ruas centrais com carros conversíveis. Ambas as tradições se modificariam no futuro, com a popularização do trio elétrico na década de 50, após Dodô e Osmar saírem em desfile em um automóvel, tocando seus instrumentos, que posteriormente foi incrementado por Morais Moreira com o batuque dos afoxés. Em contrapartida, as escolas de samba começaram a receber investimento empresarial e patrocínios, atingindo posto importante de atividade comercial e turística, o que oficializou os desfiles como tradição carnavalesca reconhecida internacionalmente, e fez com que o Estado visse sentido em investir em infraestrutura e obras públicas para seu acontecimento e para lucrar com o turismo.

Assim, é possível verificar um Carnaval contraditório, que é um terreno em disputa ideológica para determinar o caráter de sua festa. E, por isso, muitas das vezes vai expressar elementos com alto potencial subversivo e transgressor social e politicamente. O carnaval dos escravos, do povo pobre, dos oprimidos sexualmente durante todo o resto do ano é um respiro de liberdade que explode em arte e cultura. Sempre explodiu, sempre esteve em nossa cultura uma festa com tons bem distintos da festa da classe dominante. Na ocupação das ruas e espaços públicos sempre se revelou um caráter bastante político do desejo de uma vida livre de repressão, livre de exploração e opressão. E também, por essa festa popular ter sofrido diversas ameaças ao longo da história, pode-se enxergar seu potencial transgressor e subversivo. As limitações e contradições são claras: o carnaval não é a revolução da classe trabalhadora. Mas esse potencial também é vivo e sentido por cada trabalhador que espera o ano todo para que chegue fevereiro e possa sair às ruas e sentir a vivacidade desse momento e dessa festa.

Esse potencial também já foi percebido do outro lado do piquete. Não à toa, existe na história inúmeros momentos em que a burguesia tentou cooptar o carnaval: elitizá-lo enquanto festa e reprimi-lo para a grande maioria da população, trabalhadora e descendente da escravidão. Essa disputa pela repressão, hoje em dia, vemos que se dá principalmente por duas vias. A primeira, mais óbvia, é a repressão direta policial. Neste ano de 2023, a polícia militar do Distrito Federal usou gás de pimenta para reprimir o Bloco das Montadas, organizado e frequentado pela comunidade LGBTQIAP+ e a juventude, por exemplo. Não é uma coincidência que, poucas semanas antes, essa mesma polícia abriu alas para o desfile reacionário dos bolsonaristas que invadiram o Congresso e o STF. É bastante gráfico o papel que cumpre a polícia enquanto braço armado do Estado burguês. Outro exemplo disso é a repressão policial aos blocos e artistas que tocassem músicas do Chico Science, durante o carnaval de 2020, que escancarava a escalada reacionária da época e a ameaça que podia ser a arte subversiva à extrema direita e o governo Bolsonaro. A burguesia percebe e teme o potencial de manifestações artísticas e culturais, por isso coloca a polícia a serviço de reprimi-las. Mas, não somente.

Também para conter a potencialidade do Carnaval, a burguesia veio buscando incidir e cooptá-lo para a lógica de mercado, tentando esvaziar o sentido mais profundo demonstrado historicamente pela festa e transformá-la em um evento de lucros. É esse processo de mercantilização que expressa, por exemplo, o domínio da Brahma como marca “oficial” de cerveja do Carnaval, com circuitos e partes inteiras das cidades monopolizadas. Esse já é um artifício antigo dos capitalistas: na segunda metade da década de 1990 e a primeira década dos anos 2000 houve um boom de patrocínios de marcas às escolas de samba, que gerou enredos esvaziados, com objetivo propagandístico. A cooptação burguesa tenta disciplinar nossa relação com o espaço público e eliminar a história. A captura do carnaval pela lógica do capital serve para talhar o que há de mais profundo culturalmente nessa festa, e assim, também o que mais move os foliões que se jogam de peito aberto no feriado, buscando um respiro de liberdade frente à rotina de exploração. No Carnaval, em meio a participação nos blocos, suor e festa, existe um embate entre classes. Esse embate não pode ser resolvido pela conciliação.

Enquanto a burguesia tenta reprimir a festa e cooptar as ruas, a história Carnaval nos ajuda a relembrar que elas sempre foram nossas, assim como cada processo de greve da classe trabalhadora nos aponta a única saída que podemos confiar para derrotar o sistema capitalista opressor. Aprendamos com o sentimento subversivo e coletivo introjetado nesse Carnaval, para sermos nós, trabalhadores homens e mulheres, negros e brancos, os sujeitos de tomar as ruas! Tragamos toda essa inspiração com a poesia, a arte, a dramaturgia, a música, a cultura e o batuque para incendiar o peito da nossa classe e nos rebelarmos contra a casta que quer roubar de nós a alegria de viver: até o Carnaval!


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Laura Sandoval

Estudante da Letras - USP
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