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SEMANÁRIO

Leia o prefácio de "Esquerda em Debate" das Edições Iskra e do Esquerda Diário

Diana Assunção

Iuri Tonelo

Leia o prefácio de "Esquerda em Debate" das Edições Iskra e do Esquerda Diário

Diana Assunção

Iuri Tonelo

Leia na íntegra o prefácio de Esquerda em Debate, escrito por Diana Assunção e Iuri Tonelo. O livro é uma compilação das entrevistas realizadas no programa Esquerda em Debate. Entre os mais de vinte entrevistados estão Vladimir Safatle, Ricardo Antunes, Virgínia Fontes, Michael Löwy, Plínio de Arruda Sampaio Jr., Jorge Grespan, Beatriz Abramides, Isabel Loureiro, Thiago Ávila, entre outros.

Esquerda em Debate: os debates e polêmicas na esquerda que marcaram a transição do governo Bolsonaro ao governo Lula-Alckmin

As Edições Iskra, em parceria com o Esquerda Diário, apresentam o novo lançamento Esquerda em Debate, uma compilação de entrevistas com os debates e polêmicas na esquerda que marcaram a transição do governo Bolsonaro ao novo governo Lula-Alckmin.

Para adquirir o livro acesse www.iskra.com.br.

Leia na íntegra o prefácio abaixo.

***

Prefácio

Por Diana Assunção e Iuri Tonelo

O ano de 2022 marcou uma importante mudança no cenário político brasileiro. Vivenciamos os quatro anos de governo Bolsonaro em meio a uma pandemia, uma situação complexa e particular da nossa realidade, que fez com que as últimas eleições e os debates que ela suscitou sobre o país ganhassem uma atenção especial de distintos setores da sociedade. No calor desses acontecimentos foram realizadas as entrevistas que estão neste livro. Intelectuais, ativistas e lideranças políticas apresentaram suas interpretações sobre o contexto brasileiro, partindo de como chegamos até aqui, para pensar os caminhos que percorrerá o Brasil no próximo período. A riqueza dessas entrevistas se manifesta em não apenas abordar os problemas nacionais em termos conjunturais, mas em oferecer um olhar histórico e apontar tendências que possam nortear a classe trabalhadora e o conjunto dos oprimidos em seus desafios.

O leitor terá acesso a um rico material de reflexão sobre a realidade brasileira, com debates que podem ser aproveitados no sentido de inspirar a vanguarda dos trabalhadores e estudantes no próximo período e, inclusive, o papel que a intelectualidade marxista pode ter nesse processo.

Nessa perspectiva, apresentamos alguns apontamentos das entrevistas e temas abordados da reflexão estratégica sobre o Brasil e a reorganização da esquerda.

De que democracia estamos falando?

A tônica de um debate que rondou a esquerda nas últimas eleições era a alternativa “democracia ou fascismo”. As entrevistas nos ajudam a compreender a situação brasileira muito além dessa aparente disjuntiva.

Em primeiro lugar, é preciso analisar que o regime político que estamos inseridos, construído a partir de uma transição pactuada com os militares, expressa na Constituição de 1988, manteve boa parte da herança indesejada da ditadura na sua arquitetura, apesar do grande levante operário, iniciado no final dos ano 1970. [1] Florestan Fernandes [2] expressava esse resultado do que chamou de “conciliação conservadora”, dizendo que:

Para evitar as “explosões sociais”, ficamos com a ordem ilegal montada pela ditadura, com o princípio político que esta não logrou tornar vitorioso, “a transição lenta, gradual e segura” e com um regime que constitui um equivalente civil da ditadura militar burguesa. Até o pessoal é o mesmo, os procedimentos tecnocráticos são os mesmos, o desprezo pelo povo é o mesmo…[...].

A transição foi pactuada, conformando um complexo regime em um contexto em que entrávamos no auge do neoliberalismo internacionalmente, mas ainda tinha que lidar com o calor da luta de classes em âmbito nacional. Ao mesmo tempo, foi uma das expressões mais conciliadoras no cenário político latino-americano, com os crimes da ditadura, torturadores e, inclusive, algumas das instituições do regime militar sendo preservados.

A “Nova República” construída nessa forma de transição, por cima, demonstrou o caráter de classe de seu regime em muitos momentos dos anos 1990 e 2000, mas, nos últimos anos, passou por processos maiores de degradação dos direitos democráticos. Em especial a partir da consumação de um golpe institucional em 2016, encabeçado pelo Judiciário, junto à Operação Lava Jato, com participação do Congresso e com a ingerência dos militares. Uma nova dinâmica no regime, fruto de um golpe contra os trabalhadores, mostrou rápidos resultados ao capital nacional e estrangeiro: reforma trabalhista, reforma da previdência, Emenda Constitucional do Teto de Gastos e privatizações. Na área do trabalho, a nova tendência da precarização, a uberização do trabalho, invadiu o Brasil.

Como expressão do conjunto dessa receita de contrarreformas intragáveis, o golpismo gerou um filho indesejado, mas que ganhou o afeto do capital financeiro, o fascista Jair Bolsonaro, que tornou-se presidente com o apoio do reacionarismo do agronegócio, dos militares, das milícias e igrejas evangélicas. Era parte de um fenômeno internacional de ascensão da extrema direita como produto da crise econômica de 2008 e seus efeitos, e que teve em Donald Trump nos Estados Unidos seu principal expoente.

No caso brasileiro, a extrema direita não foi construída por vias paraestatais, impondo-se pela violência generalizada, como vimos no caso do fascismo italiano e no nazismo alemão na década de 1930. A ascensão de Jair Bolsonaro constituiu-se por um grande pacto golpista que visava tirar Lula à força da disputa e impor uma nova candidatura neoliberal – no caso, Alckmin. A base desse processo não foi um golpe de Estado “clássico”, mas se deu através de degradações bonapartistas (autoritárias), promovidas por instituições políticas e forças de Estado, incluindo os poderes constituídos por fora do sufrágio, de “poderes sem voto”, como o Judiciário e os militares. Era a nova forma de golpe que utilizou o mecanismo “legal” e reacionário de impeachment para tentar manter uma aparência de normalidade – experimentações testadas em Honduras, em 2009, no Paraguai, em 2012 e, mais recentemente, similar ao que vem ocorrendo no Peru.

Queremos destacar essa emergência no interior dessa “democracia dos ricos”, produto do pacto golpista e sua consumação por dentro do Estado, em um governo com a forte participação de militares. Levando isso em conta observamos o caráter semibonapartista do governo de Bolsonaro, utilizando a categoria tal como pensou Leon Trótski, que abordou em toda sua complexidade os fenômenos bonapartistas e fascistas nos anos 1930. [3]

A compreensão da evolução do regime político brasileiro nos últimos anos nos permite compreender mais claramente os perigos da disjuntiva posta na análise do país entre fascismo e democracia. Por um lado, todo o caráter reacionário do governo Bolsonaro não ganha um sinal de igual quando analisamos o regime político, pois isso tem uma implicação na relação de forças geral e na divisão interburguesa que vivemos no país. Em sua entrevista neste livro, Lincoln Secco caracterizou que “estamos vivendo um período de transição para esse novo regime. Em parte, ele está em disputa porque nós temos um processo de fascistização de vários setores do Estado, e isso se acentuou com a presidência de Bolsonaro, mas não temos ainda um regime fascista instalado no país”. Remarcar que o regime político não se tornou fascista não tem por objetivo diminuir o caráter reacionário de Bolsonaro e seu governo, mas nos permite compreender cientificamente como emergiu essa tendência e como combatê-la.

Ao mesmo tempo, a conclusão ajuda a compreender que agora viveremos uma nova modulação dessa tendência, uma vez que o bolsonarismo não foi derrotado pelas eleições, o que significa que milhões de pessoas sob influência de Bolsonaro (e eventualmente de outras lideranças políticas) seguirão atuando de forma extrainstitucional, incluindo setores diretamente fascistas, como vimos nos bloqueios de estradas e forças milicianas. É preciso observar atentamente se essa tendência assume alguma postura de ataques aos setores de trabalhadores, contra greves e mobilizações, o que apontaria para uma mudança de qualidade do fenômeno.

Por outro lado, essa expressão bolsonarista, que se institucionalizou inclusive nas eleições do Legislativo e de alguns governos estaduais, não é nada mais do que a faceta mais aguda da degradação da “democracia” em que vivemos desde o golpe institucional. A “harmonia entre os poderes” na democracia liberal deu lugar a uma guerra de bonapartismos, com medidas autoritárias sendo implementadas por todos os lados no sistema político, com a consequência de tornar mais dissipados os aspectos de sufrágio nas decisões. É dessa democracia que estamos falando, um jogo de ganha-ganha do capital financeiro que tem, de um lado, o bolsonarismo como força social e, de outro, a recém-eleita Frente Ampla, com um arco de alianças que vai do PT e PSOL até históricos representantes neoliberais do capital financeiro. Essa é a tensão que se almeja, inclusive internacionalmente, entre extrema direita e neoliberais (no caso brasileiro, com o PT como articulador conciliado com estes últimos). Compreender esse cenário político é decisivo para pensar as instabilidades políticas, os perigos reacionários e os desafios para colocar em cena a classe trabalhadora como sujeito político.

Os limites da conciliação: os “ecos” atuais das Jornadas de Junho
O ponto a se observar é que, além de uma transição pactuada, vimos que a República de 1988 se conjurou a partir dos anos neoliberais no capitalismo internacional. No início, a implementação do Consenso de Washington teve limites colocados pelo ascenso operário e pelo nível de consciência de classe de setores que protagonizaram importantes greves no final dos 1980 e mesmo na década seguinte (como a greve dos petroleiros de 1995). Ainda assim, sobretudo na década de 1990, as classes dominantes foram conseguindo alterar a relação de forças e, assim, constituindo os pilares da arquitetura neoliberal no capitalismo brasileiro.

Estamos falando de um país que passou pela privatização de setores estratégicos e um longo processo de desindustrialização, com um fortalecimento incessante do agronegócio no PIB brasileiro; que encontrou uma parcial estabilidade monetária às custas de rezar a cartilha da responsabilidade fiscal, dos cortes na saúde e educação, dos arrochos salariais, em suma, de garantir que a mais-valia produzida no país teria como destino de forma “segura” o pagamento da dívida pública, uma forma moderna de condicionar e controlar os países dependentes e semicoloniais. A arquitetura foi consolidada pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real e o chamado tripé macroeconômico: metas de inflação, responsabilidade fiscal e câmbio flutuante.

O fato é que no Brasil nós vivemos a experiência sui generis de formação de um partido de trabalhadores a partir de um ascenso operário, mas que não desenvolveu uma orientação socialista, e mesmo os elementos classistas que teve em sua origem foi perdendo ao longo dos anos. Concretamente, a direção de Lula e a cúpula petista sempre tiveram uma visão “socialdemocratizante” e, em momentos decisivos de crise política, atuaram no sentido de estabilizar o regime. Assim, a classe dominante brasileira conseguiu, gradativamente, incorporar as lideranças petistas, configurando-se uma forma de “transformismo”, para usar os termos de Gramsci, que se expressou na estratégia para ganhar as eleições de 2002, com a aliança com o PL (fundado por deputados do ex-Arena, e agora partido de Bolsonaro) do empresário José Alencar.

A conciliação de classes petista buscava governar de forma diferente na mesma arquitetura neoliberal. A política econômica de seus governos baseou-se integralmente no tripé macroeconômico, por vezes um pouco mais relaxado e com uma política de créditos (favorecida por um contexto de boom das commodities), mas não modificou estruturalmente nenhum dos pilares anteriores. Ao contrário, acabou por fortalecer setores que hoje são poderosos, como o agronegócio, a Igreja evangélica, o Judiciário, as Forças Armadas e as polícias. Era a ilusão de favorecimento mútuo dos de cima e dos de baixo, de forma que, no país onde “nunca os bancos lucraram tanto”, a elite burguesa cederia algumas migalhas que seriam aproveitadas para ir caminhando gradualmente ao país do futuro.

E eis que Machado de Assis, segundo a interpretação de Roberto Schwarz [4], aquele que entendeu à sua maneira o desenvolvimento desigual brasileiro e desde o início se colocou como um crítico sofisticado das elites do país, pessimista com suas ações, mostrou-se novamente atual. Tão rápida quanto a mudança da situação econômica do país com a recessão de 2014, também foi a ação das classes dominantes para implementar seu plano de retroceder nas concessões conquistadas e varrer os direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores do regime, atacar o PT no golpe institucional e implementar as contrarreformas econômicas.

O fato é que esse golpe não poderia acontecer sem que, além das condições de incorporação ao regime da militância do PT e do próprio partido com sua política de conciliação (laços orgânicos, incluindo os métodos de corrupção), não houvesse uma separação forte da juventude e dos trabalhadores com o governo nos processos de luta. Entre todas as greves e mobilizações que poderíamos elencar, incluindo exemplos das chamadas greves “selvagens” reprimidas pela Força Nacional, como em Jirau e Santo Antônio, vale destacar que as Jornadas de Junho foram um momento decisivo. Nesse ponto, é importante a conclusão de Safatle quando afirma, em sua entrevista, que “2013 é visto como um espantalho por alguns setores hegemônicos da esquerda nacional. O velho discurso de que junho de 2013 é o começo do fascismo brasileiro”, e conclui: “eu acho isso impensável”.

A verdade é que o governo Dilma Rousseff interpretou os protestos como desestabilizadores de seu governo e voltou-se contra eles. Os sindicatos e entidades estudantis buscaram contê-los, a intelectualidade petista esbravejou contra a juventude que queria disputar seu destino nas ruas. Essa dinâmica permitiu à direita influenciar o descontentamento e tentar canalizar a revolta. Mas efetivamente esse processo não se consolidou a partir de junho. Pelo contrário, a relação de forças do país fez com que 2014 fosse marcado por um longo processo de greves, que começou com a emblemática greve dos garis do Rio de Janeiro no meio do Carnaval, conquistando 37% de aumento, mas se alastrou em greves rodoviárias no Sul e no Nordeste, greves de professores em diversos estados, a famosa greve de metroviários em São Paulo nas vésperas da Copa do Mundo e a de trabalhadores da USP. Um verdadeiro “maio operário” em 2014.

Também vale destacar o papel da juventude, que teve protagonismo nas ocupações de escolas contra os ataques à educação, na chamada Primavera Feminista e nos amplos setores que passavam a questionar o mito da democracia racial, assumindo com orgulho sua identidade negra, momento em que a morte de um pedreiro negro em uma favela no Rio de Janeiro se tornou a pergunta nacional: “Onde está o Amarildo?”. Por tudo isso, é preciso dizer que é uma operação ideológica a ideia de que as Jornadas de Junho seria o início do fascismo, ou que seus efeitos desembocaram diretamente em efeitos políticos e ideológicos de direita. Basta voltar ao que foi 2014 para os trabalhadores e a juventude.

Que isso fosse alentado pelo petismo, enquanto surgiam inúmeras teorias contra as mobilizações, enquanto no Ministério da Fazenda entrava a figura de Joaquim Levy, é parte de uma das mais decisivas lições que a esquerda brasileira deve tirar. Cláudia Gomes diz em sua entrevista que “a conciliação de classes é nesse sentido a expressão do lulo-petismo. Alianças duvidosas, de fração de classe no bloco do poder e governos progressistas que de certo modo interditaram a possibilidade, do ponto de vista da luta de classe, de uma estratégia anti-imperialista no Brasil”.

O mesmo se pode dizer em relação ao golpe institucional, um processo por suposto reacionário, que tinha na linha de frente uma operação coordenada pelos Estados Unidos, a Lava Jato, em um bloco golpista que buscava roubar o direito ao sufrágio universal das massas. Novamente as negociações de bastidores foram a tônica e as ruas foram entregues para a direita. E, na última oportunidade – grandiosa, inclusive – por parte dos trabalhadores, de barrar esse processo que levaria às contrarreformas, que foi a Greve Geral de 2017 [5], novamente os sindicatos, sob direção reformista, entraram com tudo para esfriar e passivizar o processo, esperando as “próximas eleições”, que só vieram depois de inúmeras contrarreformas e ataques, e terminaram na ascensão de Bolsonaro.

Em suma, a conciliação estrategicamente fortaleceu pilares reacionários do regime, que se expressaram fortemente no contexto do impeachment e nos últimos anos. Os efeitos da reação tiveram como resultado os retrocessos em diversos direitos, e politicamente baseou-se, diante de todos os ataques, em aguardar pacientemente “uma nova chance eleitoral”, utilizando os sindicatos e organizações para manter pacificada a ação dos trabalhadores a fim de não assustar, e então buscar uma reconciliação com parte dos que protagonizaram o golpe institucional de 2016.

Com uma situação econômica bem mais complexa, em um capitalismo internacional às portas de uma nova recessão, que enfrenta uma guerra de impacto internacional na Ucrânia, com novas tensões geopolíticas, fortalecimento de grupos de extrema direita e mesmo fascistas, não se pode iludir-se com a ideia de que a velha fórmula da conciliação oferecerá uma solução inovadora e, menos ainda, estável. A obra econômica do golpe e inclusive novas contrarreformas terão de ser enfrentadas, tendo como oposição raivosa a extrema direita, uma força social no país que ganhou milhões de votos.

Ironicamente, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que nasceu do processo de reformas da previdência e universitária do primeiro governo Lula, na última eleição perdeu sua independência e caminha para ser parte ativa do governo e sua “governabilidade”, ainda que essa aproximação com o PT gere desconforto em setores da sua base. Isso não tira o fato de que amplos setores votantes e simpatizantes do PSOL expressem ainda aspirações que vimos nas próprias Jornadas de Junho de 2013. Plínio de Arruda Sampaio Jr. acerta em sua entrevista ao apontar, de forma decidida, que o PSOL tornou-se “um partido da esquerda da ordem e pálido, inclusive. Um partido bem moderado e ameno”.

Sendo essa a nova configuração da esquerda brasileira, é ainda mais necessário retomar os processos de lutas de classe no país e suas lições, e aqui está a especial importância de retomar o papel de Junho de 2013 e das lutas que se seguiram entre trabalhadores e juventude, ecos do passado que podem se manifestar em gritos do futuro. Essas lições de junho colocam a necessidade de pensar que o Brasil dos próximos anos ainda repousará bastante sobre esses debates, que seguem vivos. Isso porque o choque entre as ilusões de massas de que o país voltará a ser o mesmo que nos anos de lulismo e a dureza da crise internacional poderá dar lugar a novas revoltas sociais, novos fenômenos ideológicos e um renovado interesse pelo socialismo, novos protagonismos de movimentos feministas, ambientais, de indígenas, de identidade negra e de libertação sexual. O desafio é que isso não seja canalizado para as esferas do Estado e das empresas. Assim como disse Ricardo Antunes, devemos encarar todas as alas da burguesia no nosso ringue, o da luta de classes.

Ao mesmo tempo, se coloca a possibilidades de novas respostas políticas para esse cenário, e essas entrevistas contribuem bastante para uma das tarefas estratégicas diante do governo da Frente Ampla no Brasil: como superar o Partido dos Trabalhadores pela esquerda para que surja uma nova alternativa política, um novo partido fortemente ancorado na classe, mas, dessa vez, com uma clara estratégia socialista, de ruptura com o capitalismo.

Em defesa do marxismo

As condições desfavoráveis dos últimos anos no Brasil para o enfrentamento contra as forças do capital nas ruas não podem de modo algum nublar os verdadeiros desafios da intelectualidade marxista e da vanguarda de trabalhadores no país. Marx escrevia a Kugelmann, em abril de 1871, no calor da Comuna de Paris, que “A história mundial seria de fato, muito fácil de fazer, se a luta fosse assumida apenas em condições de chances infalivelmente favoráveis”.
 [6] E conclui que a luta em Paris, mesmo derrotada fragorosamente, fundava um novo ponto de partida histórico-mundial ao colocar a classe trabalhadora e a classe capitalista e seu Estado em marcante oposição.

Assim, tomando o problema em sua complexidade, é preciso perceber que as dificuldades que houve no país devem ser inseridas em um quadro mais amplo, histórico e internacional, em que fenômenos como contrarreformas, pandemias, extrema direita no governo, entre outros, são não só fatores, mas também sintomas de uma crise do capital a nível internacional. Vivenciamos um tempo de crises econômicas, crises políticas (de hegemonia) e geopolíticas, com a última expressão a guerra da Ucrânia. São sintomas que vão se agudizando pela decadência internacional do sistema, que podem se aprofundar. Não é novidade e é preciso ter claro que, sob direção hegemônica do capital financeiro, o capitalismo foi muito mais longe em décadas anteriores, desenvolvendo condições extremas de barbárie contra a população trabalhadora, sobretudo expressas nas duas Guerras Mundiais.

Ao mesmo tempo, como conhecida máxima dialética, os extremos se tocam, e precisamente nesses últimos anos vimos uma série de novos movimentos sociais, mobilizações e mesmo rebeliões. Não sem apresentarem limites programáticos e estratégicos, mas a situação está marcantemente mais agitada que no auge neoliberal dos anos 1990. E, mais do que isso, temos visto um renovado interesse pelo socialismo (ainda que em acepções mais reformistas e confusas inicialmente) e pela sindicalização – como tem se expressado nos Estados Unidos, principal potência internacional.

Como é conhecido, Marx e Engels diziam n’A Ideologia Alemã que o comunismo não é uma ideia ou uma hipótese, mas um “movimento real”. Nesse sentido, identificar as manifestações das trabalhadoras e trabalhadores e suas formas de expressar hegemonia em movimentos e mobilizações, buscando sempre uma orientação anticapitalista, é um tema decisivo.

Isso vale também em termos negativos, posto que é parte da hegemonia do capital confundir a defesa do Estado, burocracias e até regimes militares e repressões como “comunismo”. Hoje um ponto central para o debate é esclarecer as novas gerações que um dos fortes pontos de apoio da revolução internacional pode estar na classe trabalhadora chinesa, que voltou a se mobilizar no último período, e não na burocracia do Partido Comunista da China. Virginia Fontes, em relação a esse tema, aponta que é preciso ter cautela e estudar com cuidado a situação chinesa, por toda a complexidade que lhe é própria. Ainda assim, argumentou de forma categórica na entrevista que “não tenho dúvida que o que a gente assiste como expansão do capitalismo chinês de hoje, já distante, não é nem mais nem menos civilizado do que o horror da expansão do capitalismo pilotado pelos Estados Unidos”. Essa conclusão é de grande importância, pois, no Brasil, vem se conformando uma tendência que se pretende de esquerda, sobretudo de grupos e intelectuais stalinistas que reivindicam o modelo autocrático de Xi Jinping como “o socialismo no século XXI”, uma tragédia política e teórica que devemos superar.

E se por um lado temos os defensores do estatismo autocrático contra a auto-organização como uma tendência no debate brasileiro, isso não significa que retomar as versões autonomistas ou espontaneístas seja a resolução. Ricardo Antunes em sua entrevista expôs uma reflexão que disse estar amadurecendo a décadas sobre esse aspecto estratégico, em ele sintetizou dizendo que “o desafio passa por uma difícil articulação entre auto-organização em todos os espaços onde isto for possível e núcleos de organização e de vanguarda.”. Acreditamos que o problema é bem levantado e toca aspectos centrais da questão da estratégia, que, ao nosso ver, teve a expressão mais avançada na combinação, na Revolução Russa, entre partido e sovietes (auto-organização), e devemos pensá-la à luz do século XXI.

O desafio está precisamente em recriar um marxismo que retome a velha máxima da Associação Internacional dos Trabalhadores, redigida por Marx, segundo a qual a “emancipação da classe trabalhadora só poderá ser obra da própria classe trabalhadora”, e, nesse sentido, é impossível criar um verdadeiro projeto de revolução social, socialista, sem que tenhamos diferentes processos de auto-organização que possam ser articulados para conformar um novo poder, dos trabalhadores, de baixo para cima, da ampla democracia soviética dos trabalhadores em embate aberto contra a ditadura do capital que vivenciamos na atualidade. Ao mesmo tempo, seria um elogio ao capitalismo acreditar que esse processo ocorreria espontaneamente, ou seja, sem que se organizasse os setores mais reacionários da sociedade para conservá-la, de modo que é preciso que tenhamos em conta que, para enfrentar todo o aparato estatal, sua burocracia, Forças Armadas, setores paraestatais e todos seus mecanismos hegemônicos, é necessário um partido socialista enraizado na classe trabalhadora, com capacidade de luta nas principais concentrações operárias do país e de articulação com demais setores da população pobre, com força de coordenação e com instrumentos para enfrentar a hegemonia burguesa. E, nessa perspectiva, confluindo a auto-organização das massas trabalhadoras e a organização da vanguarda socialista, a classe trabalhadora poderá se constituir como sujeito hegemônico, sendo representante dos mais legítimos anseios de luta contra o racismo, contra o patriarcado, contra as repressões sexuais, contra a opressão aos indígenas, em suma, um sujeito aliado a todos os oprimidos contra as mazelas, explorações e opressões advindas do capitalismo.

Essa perspectiva só pode se dar como parte de uma organização internacional das trabalhadoras e trabalhadores. É tempo de avaliarmos cada uma das experiências internacionais e tirarmos lições. O chamado neorreformismo, materializado em Syriza, Podemos, Frente Ampla chilena e outras composições com essa orientação estratégica, tem fracassado em sua empreitada, sendo tragadas para dentro do regime e mostrando sua inconsistência. O mesmo se pode dizer da crise dos chamados “partidos amplos” e sua aproximação ao reformismo, como vemos na França com a implosão do NPA, o que apenas confirma os limites de organizações sem clara delimitação entre reformistas e revolucionários. A boa notícia é que essas lições estão sendo tiradas pela vanguarda francesa e a recente fundação de uma nova organização trotskista na França, Revolução Permanente, aponta no sentido de construir uma alternativa revolucionária distinta desse caminho seguido pelo NPA. Como outro exemplo que podemos destacar, na Argentina, a Frente de Izquierda e de los Trabajadores - Unidad (FIT-U), encabeçada pelo Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS), tem mostrado que é possível constituir uma frente com política e programa que baseados na independência de classe, com uma orientação claramente anticapitalista e socialista, e tem crescido cada vez mais sua influência nos setores operários e pobres da população. Trazer esses debates para o Brasil é fundamental.

Por distintas vias, o esgotamento da dinâmica de acumulação do capital nos mais diversos lugares do mundo tem se expressado. É necessária uma resposta internacional dos trabalhadores diante dessas mazelas, explorações e violências que o capitalismo tem promovido no mundo todo. Mais do que isso, é necessário recolocar no horizonte da esquerda a emancipação pela via da revolução social. Retomemos Rosa Luxemburgo em seu profundo internacionalismo e convicção na transformação radical da sociedade, já que, para ela, “a revolução é magnífica, todo o resto é besteira”. [7]

Leia também:

Apresentação de Plínio de Arruda Sampaio Jr ao livro Esquerda em Debate.


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FOOTNOTES

[1Um momento significativo da ação dos trabalhadores no país, no qual, não fosse a atuação de bloquear a potência do conflito por parte da sua direção, o chamado sindicalismo “autêntico", poderia ter derrubado o regime militar.

[2Florestan Fernandes. Florestan Fernandes na Constituinte: leituras para a reforma política. Fundação Perseu Abramo, Expressão Popular, 2014, p. 27.

[3Aqui estamos diferenciando o bonapartismo como uma tendência de repressão ao movimento operário que ocorre por dentro do Estado, distinta do fascismo que, em termos gerais, se baseia na mobilização da pequena burguesia arruinada, hegemonizada pelo capital financeiro para atacar as organizações operárias. Para uma análise mais desenvolvida, ver: Leon Trótski. Bonapartismo e fascismo. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Bonapartismo-e-Fascismo-por-Leon-Trotski.

[4Ver Roberto Schwarz. Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

[5A rigor, duas paralisações nacionais, de um dia cada uma, mas que ficaram amplamente conhecidas como “greves gerais” pela sua forte adesão em distintas categorias, além do amplo apoio popular.

[6Karl Marx. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

[7A frase, no original “Die Revolution ist Großartig, alles andere ist Quark”, está localizada na carta de Rosa Luxemburgo para Mathilde e Emanuel Wurm. Consta do volume 2 das Gasammelte Briefe, da editora Dietz, Berlim, 3ª ed., 1999, p. 259. A referência foi consultada com o auxílio de Isabel Loureiro.
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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED

Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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