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Letícia Parks: "A classe trabalhadora brasileira é a herdeira por direito da luta negra por liberdade"

Letícia Parks

Letícia Parks: "A classe trabalhadora brasileira é a herdeira por direito da luta negra por liberdade"

Letícia Parks

Reproduzimos abaixo fala de Letícia Parks, co-autora do Prefácio do livro "Nós mulheres, o proletariado" e autora do artigo "Não somos escravas: rainhas quilombolas, guerreiras armadas e grevistas decididas – relatos de mulheres negras na luta por liberdade", em sua live de lançamento.

"A Josefina já nos emocionou e arrepiou com a fala dela, que ela trouxe e a gente pôde conhecer a história da luta das mulheres e o papel protagonista das mulheres na luta contra o capitalismo, o que é muito diferente do que tentam pintar do que pode ser a luta das mulheres, como se pudesse ser uma luta por dentro do capitalismo, como se a gente conseguisse alcançar a nossa liberdade sem destruir esse sistema de opressão e de exploração.

Ela passou por esses esses momentos eletrizantes da história da luta das mulheres como parte da luta da classe trabalhadora, então vou rapidamente contar um pouco sobre o anexo que a gente trouxe aqui para a edição brasileira do livro "Nós mulheres, o proletariado", que tem o título original em espanhol de "No somos esclavas!". A gente achou que era muito importante mostrar que aqui no nosso país, que é um país onde a classe trabalhadora é majoritariamente feminina e também majoritariamente negra, a gente carrega também uma tradição de luta muito importante das mulheres junto com seus companheiros explorados e oprimidos, como parte da luta decidida e intransigente contra o racismo e a escravidão e na luta por liberdade.

Então a gente incluiu um anexo ao livro, que é um capítulo intitulado “Não somos escravas”, celebrando esse título inteligentíssimo e muito bonito que a Josefina trouxe ao livro. Então não somos escravas, somos rainhas quilombolas, guerreiras armadas e grevistas decididas, são relatos de mulheres negras na luta por liberdade. A gente inclui esse capítulo justamente reconhecendo que o papel das mulheres na luta contra a escravidão no Brasil um papel destacado e importantíssimo. É muito importante entender que na trajetória da escravidão no Brasil, que é uma um regime de trabalho violento, assassino, a gente conhece muito aqui no Brasil todos os relatos do que foi o período escravagista no nosso país. A gente sabe que durante todo esse período houve vários tipos de luta contra a escravidão, em especial durante quase três séculos vai primar um tipo de estrutura de luta que foi chamada na historiografia brasileira como quilombos e mocambos. E é muito interessante quando a gente retoma a história do que foram os quilombos e mocambos, aparecem a todo momento histórias de mulheres rainhas, de mulheres líderes religiosas, que através dessa sua localização dentro da organização da sociedade escrava cumpriam um papel de direção desses processos de insurreição escrava que eram os quilombos e mocambos.

É muito importante também a gente entender que isso é bastante fruto de uma condição mesclada entre as mulheres terem um papel destacado nessa cultura que vinha da África, onde elas eram líderes religiosas e, como no contexto de uma situação de escravidão, esse espaço de socialização das religiões, em algum momento da capoeira, também conhecer mais histórias das líderes ligadas ao samba e toda essa cultura que circulava dentro dos ambientes socialização da vida escrava, essas mulheres tinham uma localização muito importante porque nessas sociedades, que vêm ao Brasil, esses lugares precisavam ser necessariamente dirigidos por homens. Então é através dessa localização que essas mulheres vão adquirir uma posição de direção. E também esses ambientes, por mais que eles possam parecer muitas vezes higienizados pela historiografia oficial, como se o candomblé fosse exclusivamente uma religião e se tenta apagar, por exemplo, da capoeira, tratando ela como apenas uma dança ou apenas um jogo, tenta-se apagar muitas vezes o conteúdo rebelde e insurrecional que tinha dentro desses espaços de aglomeração social. Porque inclusive espaços de culto religioso ou de samba, de música, de festa, muitas vezes era a forma como se pôde esconder que ali dentro acontecia algum tipo de preparação para uma luta escrava ou uma fuga massiva etc.

Então é interessante, nesse sentido, a gente poder trazer aqui algumas pérolas desse processo. Como eu falei, as mulheres não eram uma pequena minoria dentro desse processo de luta, elas eram, muitas vezes, maioria. Tem alguns casos de fugas, como na revolta do Paty do Alferes ou do Manuel do Congo, no Rio de Janeiro, onde as mulheres, inclusive, eram a maioria no relato da fuga escrava. Foi uma fuga de cerca de 200 escravos na fazenda do Paty do Alferes, que foi organizada e dirigida por uma mulher, a Mariana Crioula, que se torna depois a rainha desse Quilombo. Quando ela é presa, depois da revolta e da fuga, é atribuída a ela uma frase muito importante onde ela diz “morrer sim, voltar a ser escrava, nunca”, que é uma frase que, por mais dramática que ela possa aparecer para o nosso ouvido, ela ilustra bastante um tipo de concepção que tinha essa luta que se organizava em torno dos quilombos e dos mocambos e que tem a ver bastante com a história do próprio Zumbi dos Palmares e de Aqualtune Palmares, que também é outra mulher que figura aí como uma líder dos escravos que organizavam os quilombos e mocambos. Era uma concepção de uma luta intransigente pela liberdade, ou seja, uma luta que não tinha qualquer tipo de conciliação possível. A Mariana Crioula aceita que a única forma dela sair da luta, na concepção dela, é se ela for morta pela repressão, porque jamais vai voltar a viver a vida escrava.

O caso do Zumbi é um caso muito interessante porque, antes dele liderar, junto com a Aqualtune, o Quilombo de Palmares, o que vai acontecer é que o líder, que era Ganga Zumba, depois de várias tentativas por parte do Poder Colonial de tentar encontrar alguma forma de conciliação com Palmares, por ser um quilombo que não se conseguia derrotar de forma nenhuma, mandavam exércitos, e exércitos, e exércitos, para tentar derrotar o Quilombo de Palmares e, na verdade, esses exércitos voltavam sempre derrotados. Então o poder colonial brasileiro vai tentando negociar formas intermediárias de conseguir acabar com esse Quilombo, porque escravos eram atraídos para viver nele em liberdade, a população empobrecida também era atraída a negociar com a mercadoria que vinha de Palmares e não com mercadoria que vinha das fazendas e dos Engenhos, porque era uma mercadoria mais cara. Deste modo, Ganga Zumba oferece um desses acordos para apreciação da comunidade palmarina, um acordo que garantia liberdade aos residentes de Palmares, mas impedia que o quilombo recebesse novas escravos fugidos e também buscava garantir que eles não organizassem mais nenhum saque de escravos de outras fazendas. É muito importante isso, porque na verdade os quilombos, por mais que se trate também às vezes como espaços onde iam os escravos fugidos e ficavam instalados ali, de forma apartada da sociedade, dos engenhos da cidade colonial, o papel que os quilombos tinham era de seguirem organizados, buscando batalhar para que houvessem novas fugas de escravos, ou seja, existia uma perspectiva permanente de luta contra a escravidão, não se entendia que havia se conquistado, por aqueles escravos que estavam ali, a liberdade e estava suficiente. Então um dos acordos que se busca fazer e que o Ganga Zumba aceita, mas quando ele apresenta esse acordo conciliado com a elite colonial brasileira, os palmarinos entram em rebeldia, assassinam Ganga Zumba e colocam Zumbi como líder da comunidade, porque Zumbi era, para eles, esse personagem que justamente dizia que não se podia negociar nada porque a luta de Palmares era uma luta pelo fim da escravidão.

A gente tem outros nomes de mulheres que participaram dessa batalha, como Dandara de Palmares, que ainda existem dúvidas se Dandara foi um personagem real da história, mas o fato de existir esse mito um tanto histórico, cheio de vários detalhes do que foi a vida de Dandara, aponta justamente que ela era um símbolo do que era o papel das mulheres nesse processo de mobilização que eram os quilombos e mocambos.

É interessante que, depois de um determinado momento, quando as cidades começam a adquirir um volume populacional maior e conquistar um ritmo próprio de uma vida em cidade, mais urbanizadas, não como a imagem das cidades europeias do século XIX, chegando já no século XIXA no Brasil, que a gente sabe que são cidade diferentes das europeias, mas já com características diferentes também desses séculos anteriores, onde a forma clássica de luta era fugir das fazendas e ir para os quilombos e para os mocambos. Nesse momento, no século XIX, começa a surgir um novo tipo de mobilização, que são as revoltas urbanas, são muitas revoltas urbanas que a gente poderia citar. Escolhemos tratar no livro especificamente da Revolta dos Malês, que é uma revolta onde surgiu também uma personagem histórica mítica, que é a Luiza Mahin, uma personagem que aparece pela primeira vez em um relato de Luiz Gama dizendo que a mãe dele tinha sido essa mulher Luiza, que foi uma líder da Revolta dos Malês, e que foi também – e mais uma vez é muito importante essa ideia de como surgem personagens assim, com o nome que talvez não se confirma na história – a ideia de que talvez essa mulher representasse um conjunto de mulheres que estavam presentes ali naquele processo de mobilização.

O que se sabe dos Malês é que as mulheres tiveram uma participação menor do que elas tinham nos quilombos e mocambos. E por que isso? Essa é uma pergunta que me ocorreu escrevendo esse artigo e encontrei algumas hipóteses, talvez valha a pena lançar aí para o público para a gente poder pensar junto. Mas a hipótese que me surge é justamente a de que, com toda essa experiência dos quilombos e dos mocambos, e em especial com a experiência da Revolução Haitiana, essa elite brasileira já se transformando em burguesia nacional, vai aprimorar os seus métodos de repressão e instalar contra as mulheres, especificamente, um tipo de repressão característica, exclusiva às mulheres. Angela Davis vai falar disso no "Mulheres, raça e classe", mostrando como essas burguesias da escravidão começam a aprender não dá para você importar a feminilidade burguesa para as mulheres escravas porque elas tinham que exercer trabalhos masculinos, mas que era possível usar desse discurso da feminilidade para encontrar formas específicas de castigo que pudessem ser empregadas apenas contra as mulheres. E nesse caso a gente sabe de todos esses relatos do estupro, do estupro coletivo, da mutilação dos seios, da mutilação das vaginas, a retirada de clítoris, torturas que eram utilizadas contra essas mulheres escravizadas. Isso leva, obviamente, a que as mulheres passem a ter que cumprir papéis muito mais secretos dentro dos processos de revolta.

Então uma pergunta que eu me coloquei escrevendo é: as mulheres participaram menos ou elas passaram a ser mais clandestinas nesses processos de luta? A Revolta dos Malês é um símbolo de que talvez essa segunda hipótese seja comprovável, porque ali a gente tá lidando com escravizados letrados, que conseguiam trocar cartas e se comunicar de forma clandestina e secreta, e que, desta forma, várias mulheres hipoteticamente poderiam ter participado. Existe o registro de três nomes de mulheres interessantes nesse processo, uma delas que circulou cartas secretas dentro de pãezinhos e dentro de mercadorias que ela vendia na cidade de Salvador. Uma outra mulher, a Gertrudes, que é uma das que aparece morta primeiro, pela repressão da polícia nesse momento, e a Maria da Conceição que, junto com uma outra mulher de nome desconhecido, vão ser acusadas de fornecer comida aos rebeldes. Dá para ver aí as mulheres encontrando o que tinham à sua disposição como ferramenta justamente para poder se mobilizar.

Mas tem um caso em particular que a gente traz nesse livro, que é um caso muito especial, arrepiante, eletrizante, que é nessa mesma cidade de Salvador, com uma burguesia em nascimento ali, uma burguesia brasileira que a gente sabe que é herdeira da escravidão, então ela está crescendo ali, está surgindo, se enriquecendo com a escravidão negra e indígena, e essa burguesia baiana já tinha aprendido um pouco como se organizavam as revoltas, os quilombos, os mocambos e já tinha uma certa expertise repressiva instalada ali. Agora o que eles jamais poderiam prever era que essa massa negra que mobilizava as ruas de Salvador ia chegar, em 1857, e tomar uma decisão contra uma medida repressiva e de humilhação promovida pelo governo soteropolitano contra os ganhadores, que era uma das principais categorias que poderíamos chamar, entre algumas aspas, de “proletárias” da época, porque era na cabeça e nas costas dos ganhadores que se alimentava economicamente toda a cidade de Salvador. Tem uma imagem muito interessante, que é de um reverendo chamado Daniel Kidder, que ele fala sobre Salvador, no relato de 1847, que tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega, é negro. Ou seja, essa era a imagem da cidade de Salvador – e ainda é – já em meados do século XIX.

Estamos falando que esses trabalhadores negros que carregavam tudo nas costas tiveram que produzir a vida em Salvador. E aí que a burguesia soteropolitana não poderia prever que, em 1857, frente a essa ameaça de que os ganhadores teriam que andar emplacados, com placas no pescoço, eles não conseguiram prever que esse trabalhadores iam ter a criatividade de organizar, pela primeira vez, uma paralisação do seu trabalho. E é muito interessante porque, alguns anos antes desta ameaça da placa no pescoço, as mulheres já tinham sido forçadas a uma série de medidas de humilhação por parte do governo de Salvador, por serem ganhadoras. Isso porque o trabalho de ganhador era uma forma do escravo fazer uma espécie de dupla jornada com a qual pudesse economizar para se libertar da escravidão. Então muitos trabalhadores encontravam nesse trabalho a via para se libertar, e o volume de libertos por essa via era muito grande já, então o governo vinha tentando encontrar formas de limitar e conduzir esse trabalho a um tipo de trabalho regularizado, que pudesse ter mais controle e gerar menos economia no bolso desses trabalhadores. E aí o que acontece é que essas mulheres, que antes já tinham passado por essas humilhações e não tinham conseguido encontrar uma forma de se mobilizar, vão ser encorajadoras desse movimento dos homens de várias formas também muito criativas e convincentes, como disse a Josefina. Uma delas, que está relatada nos jornais, é que elas passavam pelos escravos que tinham aceitado usar a placa e hostilizavam, humilhavam, falavam “Como assim? Você tem que entrar na greve! Por que você está usando esse negócio no pescoço?”. E era por elas também que se fazia uma série de comunicações clandestinas para organizar essa greve, com bilhetinhos dentro do pão. Eu brinquei outro dia que me parece um pouco aquela imagem da série "The Handmaid’s Tale, não sei se estou dando pspoiler, mas na última temporada tem essa cena que eu lembrei com essa ideia, dessas mulheres clandestinamente fazendo de tudo possível para contribuir para essa greve dos ganhadores homens.

A greve foi parcialmente vitoriosa e o que é muito legal é que, como essa burguesia já tinha visto formas de rebeldia anteriores, surgiu uma grande crise conceitual, os jornais da época não sabiam do que chamar essa luta, eles chamavam de “parede”, que era uma forma de mobilização com paralisação estudantil que já tinha acontecido na França, outros chamavam de “muro”, e tem um jornal do Rio de Janeiro que chega a falar, desesperadamente pedindo algum tipo de controle para o governo de Salvador, que aquilo ali é uma revolução.

Trago esse relato para a gente poder ver a potência que tinha o papel das mulheres negras em todos os processos de luta negra no Brasil, porque na verdade pra gente existe uma concepção que essa greve é capaz de mostrar, simbolicamente, que a classe trabalhadora brasileira é a herdeira por direito da luta negra por liberdade. Ou seja, a luta negra, que naquele momento era uma luta, sim, contra uma estrutura econômica, assim como nós trabalhadores lutamos hoje contra a estrutura econômica do capitalismo, querendo fazer revolução, isso era a cara da luta negra por liberdade, era uma luta contra o sistema econômico e que tinha esse imagem, essa concepção, de mulheres com a Mariana Crioula, como Dandara, esse símbolo, ou o Luiza Mahin também simbolicamente, de mulheres que iam levar adiante uma luta intransigente contra esse sistema econômico e por nada menos do que a sua liberdade.

É nesse sentido que coloco aqui essa história e também no livro, pra gente poder lembrar que a primeira greve no Brasil, e isso é muito importante dizer, foi uma greve negra."

Veja também: Não somos escravas: rainhas quilombolas, guerreiras armadas e grevistas decididas – relatos de mulheres negras na luta por liberdade


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