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LITERATURA | Literatura: "Experimento Surrealista 2", por Afonso Machado

A pequena obra abaixo é uma montagem de textos automáticos, visões obtidas em passeios à deriva e cenas de sonhos. Seu contexto particular diz respeito a uma série de experiências poéticas que tive na cidade de Campinas entre os anos de 2009 e 2011.

quarta-feira 11 de novembro de 2020 | Edição do dia

Imagem: MULTIPLE EXPOSURE(1934) de Man Ray

Após uma morna chuva de verão no início da tarde, eu estava flanando nas proximidades da Avenida Princesa do Oeste. Embaixo de uma majestosa árvore havia uma luva de mulher atirada sobre a rua. Cerca de uma hora depois eu estava na casa de uns amigos vendo um álbum de fotografias da Guerra Civil Espanhola(1936-39). Chamou -me a atenção uma das fotos em que uma jovem (cujo o rosto não foi captado com precisão pelo fotógrafo) estava sentada em um Café. Noto atordoado que lhe falta a luva da mão direita. No fim da tarde, daquele mesmo dia, parei para comer algo em uma padaria do centro da cidade. Nos fundos do estabelecimento havia um cartaz de uma antiga propaganda de cigarros: o cartaz trazia o rosto de uma jovem . Estou certo de que a luva na rua era da moça do álbum de fotografias, cujo rosto revelou-se para mim na padaria.

Beba Capim Santo

Num poste da Avenida Francisco Glicério o cartaz dizia:
“ VENDO OURO “. A ventania que se sucedeu após a leitura desta frase emitiu um brilho de luz tão intenso que me obrigou a colocar óculos escuros numa passante desconhecida.

Às vezes, se prestarmos atenção nas vitrines de butiques, podemos obter gratuitamente uma embriagante imagem produzida a partir da combinação dos seguintes elementos: vestidos das manequins, carros que passam na rua refletidos no vidro, a figura descarnada de um mendigo, a silhueta de uma senhora faminta, uma flor em chamas e pequenos objetos misteriosos dispostos no interior das próprias vitrines(frascos de prata, penas de pavão, pedras verdes e lenços coloridos). Talvez seja possível obter nesta síntese imagética uma oculta história do capitalismo.

No cruzamento entre a Rua Conceição e a Avenida Anchieta existe um espaço de calçada cuja misteriosa geometria fala-me de luas, flautas, revoltas, porões, escadarias e ônibus perdidos.

Uma viúva de batom roxo assalta um carrinho de doces em frente a uma antiga Igreja. A paçoca custa 0,50 centavos, o canudinho de doce de leite 1,50 e os lábios da viúva custam o canto de um Uirapuru que vive secretamente em sua gaiola de chumbo numa pensão popular que foi lacrada pelos tiras.

Fervendo o caldeirão na antiga gruta localizada no Largo do Pará, uma velha feiticeira está disposta a descobrir o que se passa no interior das sombras. Ela perguntou:

- Quanto custa uma sombra ?

PROMOÇÃO DE SOMBRAS ENGARRAFADAS!

Próximo ao Cemitério da Saudade é possível ouvir pés ao vento, olhos em asas e unhas cravadas na luz. Estou afogado no ar porque preciso nadar por entre as matas secretas da minha cidade. Das costelas de uma árvore foram ouvidas vozes autoritárias:

  •  Cortem este horizonte de bananeiras! Eliminem esta farofa que tosse!

    Cuidado passante! O canto do Pombo leque que habita a Avenida Aquidabã no fim da tarde, anuncia um desconhecido evento. Este pombo passa os finais de semana no Reino das sombras : um local subterrâneo cuja o território alucinado se encontra no fundo das igrejas vazias e na boca dos bosques.

    Dizem que antes da lua fritar, um anjo malvado irá aplaudir a mulher felina devorando o meu corpo no Bosque dos Jequitibás.


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