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Direito ao aborto | Lula e o discurso sobre o aborto: não é com conciliação e demagogia que vamos conquistar esse direito

As declarações recentes de Lula sobre o direito ao aborto causaram alvoroço nas redes. O clã Bolsonaro, Damares Alves e conservadores da bancada evangélica como Marcos Feliciano reagiram imediatamente, ignorando as centenas de mortes causadas todos os anos por abortos feitos de forma clandestina e insegura e destilando todo seu ódio contra as mulheres. Em menos de 24 horas, Lula já recuou, mediando sua declaração anterior se dizendo pessoalmente contra, embora trate como uma questão de saúde pública. Mas a questão é: Por que em 13 anos de governo o PT não legalizou o aborto?

Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil

sábado 9 de abril de 2022 | Edição do dia

A defesa do direito ao aborto legal, seguro e gratuito é uma questão séria que não cabe demagogia, nem deve ser moeda de troca em negociatas políticas para construir consensos rifando direitos elementares dos oprimidos. Vale lembrar que, de acordo com o Ministério da saúde, ocorrem no Brasil cerca de 800 mil a um milhão de abortos todos os anos. O perfil das mulheres que abortam está bem longe do que é pintado pelos moralistas. São mulheres trabalhadoras, casadas ou em uma união estável, com filhos, cristãs, usuárias de algum método contraceptivo. Abortam porque entendem que mais um filho na atual situação das mulheres trabalhadoras que acumulam jornadas duplas ou triplas, sem creches ou qualquer auxílio governamental mínimo que assegure o direito à maternidade, é um peso maior do que podem suportar.

Durante o governo Bolsonaro é preciso lembrar todos os esforços feitos pelo presidente, pelos ministros do governo, em especial a ministra da mulher, da família e dos direitos humanos, Damares Alves, pelo congresso, STF e lideranças religiosas para impedir a realização de abortos no Brasil até mesmo nos casos permitidos por lei, como quando a gestante corre risco de vida, foi vítima de estupro ou o feto sofre de anencefalia. Vale lembrar o escandaloso caso da menina de 10 anos que, depois de ser estuprada por um familiar e engravidar, ainda foi sujeita a todo um julgamento moral público, como se a menina pudesse ter instigado o violador e a realização do aborto para proteger sua própria vida fosse assassinato.

Na porta do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, especializado em saúde da mulher, grupos católicos se revezam na entrada para coagir vítimas de estupro a não abortarem. Ironicamente, nas proximidades do hospital que fica na região central, é possível ver crianças pedindo dinheiro ou vendendo balas nos semáforos por que não tem o que comer. Famílias inteiras estão nas ruas porque não tem emprego e não conseguem pagar o aluguel.

Porém, a seriedade do debate em torno do aborto, também nos exige combater a demagogia de grupos políticos que se utilizam das pautas democráticas dos oprimidos, como o direito ao aborto. No mundo todo e na América Latina em particular, testemunhamos um novo florescer do movimento de mulheres, que apelidamos de Primavera Feminista, que na Argentina teve sua expressão mais forte com as jornadas por Ni Una a Menos, em resposta a violência de gênero, e com a Maré Verde pelo direito ao aborto. No Chile, milhões de jovens mulheres denunciaram a violência machista cometida pelos agentes do estado durante a repressão contra a revolta popular que tomou as ruas chilenas e significou uma enorme derrota para a constituição pinochetista. Mulheres na linha de frente dos protestos no Equador, Chile, Bolívia, demonstraram que a primavera feminista que fez as terra tremer não será facilmente derrotada pelos governos conservadores que ascenderam ao poder, ou ao menos não sem resistência. No Brasil, essa primavera se expressou nos atos contra Eduardo Cunha em 2015, contra a violência de gênero, depois de um escandaloso caso de estupro coletivo que chocou o país, contra o machismo institucional, refletido no julgamento do caso Mari Ferrer, que levou a aprovação da lei Mariana Ferrer que pune agentes públicos por constrangerem vítimas de violência.

Apostando nessa potencialidade do movimento de mulheres internacionalmente e no Brasil, Globo, bancos como Itaú, Bradesco, grandes marcas etc. buscam constantemente cooptar esse novo “nicho” que se apresenta nas lutas. Até mesmo partidos conservadores passaram a fazer propaganda para arregimentar mais mulheres e com isso preencher a cota de gênero 30% para as próximas eleições. A sanção da lei Mariana Ferrer sem vetos também expressa interesses de Bolsonaro em ganhar a simpatia de setores do movimento de mulheres.

No bojo disso, o PT com Lula, tenta arrancar o seu quinhão desse nicho de eleitoras que, diante de um governo misógino asqueroso, busca uma saída nas eleições de 2022. Não é a primeira vez que Lula faz declarações em relação ao direito ao aborto. A Marcha Mundial de Mulheres, que no Brasil é dirigida pelo PT, tem em seu programa a defesa do direito ao aborto legal. Mas, é preciso escovar a história a contrapêlo para perceber a diferença entre discurso e prática. Aliás, é preciso se atentar ao próprio discurso que separa a opinião pessoal e moral do fato em si, que ele significa.

Já exploramos em diversos textos porque em 13 anos do PT no poder, o direito ao aborto não foi conquistado. Retomemos alguns exemplos que nortearam a prática governamental petista em relação ao aborto:

  • Em nome da governabilidade era preciso “dialogar” com a bancada evangélica e com o Vaticano. Para isso, o PT cedeu a presidência da Comissão de Direitos Humanos a Marcos Feliciano, pastor homofóbico, machista e racista que carrega uma acusação de estupro, além das declarações abjetas em defesa da ditadura e torturadores.
  • A Carta ao Povo de Deus de Dilma em 2010 que assegurava às lideranças religiosas conservadoras que a defesa da família tradicional, assegurando assim que o aborto não seria aprovado durante seu governo.
  • Mais recentemente na eleição de 2018 contra Bolsonaro, a chapa Haddad-Manuela D’Ávila foi ainda mais direto ainda :

“Nenhum dos nossos governos encaminhou ao Congresso leis inexistentes pelas quais nos atacam: a legalização do aborto, o kit gay, a taxação de templos, a proibição de culto público, a escolha de sexo pelas crianças e outras propostas, pelas quais nos acusam desde 1989, nunca foram efetivadas em tantos anos de governo. Também não constam de meu programa de governo”

A carta de Fernando Haddad deixa claro que o PT não fez absolutamente nada para defender o direito ao aborto, ao contrário, foi um empecilho para a conquista desse direito.

Agora Lula novamente declara que o “aborto deveria ser um direito de todo mundo” para, em seguida, mediar "Eu Lula, pai de cinco filhos, fui contra aborto e sempre fui. Agora, eu chefe de Estado, preciso tratar o assunto como saúde pública”. Poderia ser uma opinião honesta de uma pessoa que tem suas convicções morais, mas que defende a separação entre as convicções religiosas individuais e o direito público num estado laico. No entanto, dado o histórico das práticas é preciso deixar a ingenuidade de lado e ler nas entrelinhas. Ao falar do Lula “pai de 5”, ele se coloca no pedestal da moralidade fazendo um aceno aos conservadores que, embora considere uma questão de saúde pública, não é um princípio seu defender esse direito elementar das mulheres sobre o próprio corpo, e que, portanto, os seus esforços não serão nesse sentido. Aliados de Lula correram a responder que ele, Lula, se referia apenas a ser favorável ao aborto nos casos permitidos pela lei.

A ambiguidade do discurso de Lula pode encantar setores da esquerda que não se fazem de rogados em dar os braços com Marina Silva, da Rede, que abertamente declarou que é contra o aborto e vetaria se fosse eleita presidente e o congresso aprovasse. Com a atual composição do congresso eles podem respirar aliviados. No entanto, ao tratar dessa forma leviana uma questão tão fundamental, esses setores acabam por enfraquecer a luta das mulheres nas ruas pelo aborto legal, seguro e gratuito, tornando toda a potencialidade dessa luta em algo quase inofensivo aos interesses da burguesia.

As feministas da Marcha Mundial vão tomar essa luta para si com força num possível governo Lula? Não tomaram nem durante os quatro anos de governo Bolsonaro. A CUT e os sindicatos dirigidos pelo PT, irão colocar a classe trabalhadora em defesa do direito das mulheres trabalhadoras pelo próprio corpo? Nem diante dos ataques brutais à nossa classe, como as reformas e as medidas verde-amarelas de Bolsonaro, foram suficientes para a CUT romper a paralisia. Isso porque, mais uma vez, fomentam uma expectativa passiva pelas eleições de 2022, isolando as lutas em curso, para não atrapalhar as negociatas com setores evangélicos, com o empresariado, o agronegócio e com partidos burgueses. A aliança com Alckmin, que dispensa comentários, anuncia o porvir.

Por isso, a luta pelo direito ao aborto precisa partir da necessidade imperiosa da auto-organização dos trabalhadores e da juventude do movimento estudantil em aliança com o movimento de mulheres para impor com a força das ruas e com os métodos da nossa classe o direito ao aborto legal, seguro e gratuito. É nessa perspectiva que nós do Pão e Rosas atuamos nos locais de trabalho e estudo, para fazer emergir uma força independente dos trabalhadores que se coloque como tribuno dos oprimidos e possa derrotar Bolsonaro, Damares e a extrema-direita, sem depositar nenhuma ilusão em saídas de conciliação de classe como as de Lula e do PT, na perspectiva de avançar na luta por um governo operário de ruptura com o capitalismo.




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