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VIOLÊNCIA CONTRA MULHER | "Não existe política pública de enfrentamento à violência contra a mulher ", diz advogada que atuou na rede de atendimento

Reproduzimos abaixo o relato da advogada Carolina Domingues que trabalhou ao longo dos últimos 5 anos nos Centros de Defesa e Convivência da Mulher de Cidade Tiradentes e de Guaianases, na zona leste de São Paulo, a respeito do aumento da violência contra a mulher e as políticas públicas para sua proteção.

sábado 18 de abril de 2020 | Edição do dia

Como todo mundo está vendo, tem sido bastante noticiado o aumento do número de casos de violência doméstica e de feminicídio nessa quarentena. As histórias de violência contra as mulheres são mesmo muito angustiantes e, diante disso, tenho visto bastante gente – amigues mais ou menos militantes, advogadas feministas, magistradas, promotora de justiça, deputada estadual e por aí vai - tentando articular algum tipo de resposta.

A esmagadora maioria das iniciativas está fundada na ideia de que faltaria informação para as mulheres. Seria preciso informá-las adequadamente sobre o funcionamento da rede de serviços de proteção para que elas possam então, finalmente, escapar do cotidiano de violência. É este o raciocínio: as mulheres pobres não conhecem seus direitos, vamos informá-las, vamos apresentar-lhes a grande e boa novidade que é a existência de uma rede pública de serviços de proteção, porque assim elas serão acolhidas, amparadas e encaminhadas para algum outro cotidiano sem violência.

A chuva de orientações indicando o “Disque 180”, ou a iniciativa de construir “mapas do acolhimento”, ou de “preencher formulários” podem até estar cheias de boas intenções, mas apontam em uma direção que é absurdamente fantasiosa. Todas essas “soluções” partem do pressuposto de que existe na cidade de São Paulo, e Brasil afora, uma rede de serviços de enfrentamento à violência. Ora, a novidade aqui é: essa rede em geral não existe e, quando existe, funciona de forma extremamente precarizada e sucateada. Me parece que, na verdade, falta informação é pra quem acha que tá dando informação – só que tá falando do que não conhece, do que não existe e/ou do que não funciona.

Como já relatei algumas vezes, eu trabalhei durante os últimos 5 anos em dois dos serviços que compõem a “rede de proteção” da cidade de São Paulo, atuando como advogada nos Centros de Defesa da Mulher de Cidade Tiradentes e de Guaianases. E é a partir dessa experiência de trabalho, junto à rede de enfrentamento da zona leste, que é a mais combativa do município que conta com a rede de proteção mais “estruturada” do país, que eu quero falar aqui sobre essa triste "novidade": não existe política pública de enfrentamento à violência contra a mulher nessa cidade. Simplesmente assim.

O tema é longo e merece uma análise mais profunda, que não quero organizar aqui porque senão isso que era pra ser um texto sucinto vai ficar ainda mais comprido. O que existe é um conjunto de serviços da chamada “proteção especial de média e alta complexidade”, mas que estão completamente precarizados, sucateados e amarrados a uma série ilógica de burocracias. As equipes técnicas são extremamente reduzidas e sua capacidade de dar forma concreta às estratégias de ruptura com o cotidiano de violência é limitada a quase zero. As trabalhadoras destes serviços, inclusive, acabaram de soltar um manifesto em que denunciam as péssimas condições de trabalho a que estão submetidas, quadro também agravado pelo coronavírus. O manifesto está circulando em algumas das mídias de esquerda e vou postá-lo abaixo também. (Cabe aqui destacar que essas trabalhadoras são terceirizadas e recebem salários irrisórios para a execução de um trabalho de alto risco e responsabilidade).

Então, quando a gente diz que é pra “ligar no 180” e/ou procurar a rede de serviços existente, a gente precisa ter clareza de que o que estamos fazendo é, basicamente, inserindo as mulheres no que chamamos de “rota crítica”, uma rota composta por muita revitimização e tempo de espera.

Para ilustrar rapidamente, um exemplo: em geral os casos mais urgentes são os que demandam abrigamento sigiloso. Ocorre que as vagas existentes em abrigos sigilosos na cidade de São Paulo são absolutamente insuficientes para dar conta do número de casos de violência (isso desde muito antes da pandemia). Os Centros de Defesa da Mulher, por uma questão burocrática, não conseguem ter acesso direto à informação de quantas vagas estão disponíveis em quais abrigos. A obtenção dessa informação leva bastante tempo, e demanda toda uma série de articulações. Muitas vezes, não há vagas disponíveis, e a mulher e seus filhos precisam ser provisoriamente alojadas em hotéis/motéis, e uma das coisas mais tristes dessa vida é ir deixar uma mãe e seus filhos, todos em risco de morte, para passar a noite em um desses lugares. Quando finalmente aparece a vaga no abrigo sigiloso, muitas vezes não há opção de transporte disponível (a prefeitura não fornece carros para esse fim), e aí resta a opção do Uber. O motorista muitas vezes se irrita com a quantidade de crianças, malas e pertences, por vezes faz perguntas constrangedoras – isso quando não reconhece a mulher e/ou seu companheiro (já aconteceu) e aí toda a operação de abrigamento fica comprometida. Isso tudo sem mencionar que muitos abrigos criaram a exigência (ilegal) de registro de B.O. para que a mulher possa ser abrigada, o que muitas vezes implica em todo um outro esforço de logística para o registro da ocorrência. Quando finalmente se instalam nos abrigos, muitas mulheres simplesmente não dão conta de se adequar à rigidez das restrições e/ou aos conflitos oriundos do convívio com dezenas de outras mulheres e seus filhos em um espaço que sempre foi o de uma quarentena (mesmo antes do vírus), e terminam por retornar à casa de onde tinham saído.

O que fazer diante desse cenário catastrófico? Acredito que talvez um primeiro passo importante seja abandonar estas "soluções" e fórmulas prontas. O buraco é muito mais embaixo, e a insistência em inserir mulheres em uma rota falida não contribui para o enfrentamento à violência. Já é passada a hora de reconhecer que o circuito-receituário-pronto formado por delegacia de polícia-judiciário-assistência social é uma rota sem saída, sobretudo porque está definida e desenhada nos marcos do neoliberalismo e de um judiciário racista e misógino. É preciso abandonar toda a ingenuidade em relação a estes fluxos.

Nossa pauta mínima diante desse cenário, que é muito anterior ao coronavírus e que se agrava com ele, deveria ser a destinação imediata e emergencial de imóveis vazios para a moradia de mulheres vitimadas pela violência. Se mesmo essa pauta mínima parece ainda um tanto quanto utópica, antes de reivindicarmos os fluxos da rota crítica, seria muito mais razoável considerar a situação de desmantelamento dos serviços especializados e darmos voz ao que estão dizendo as trabalhadoras que estão nessa linha de frente. Ao invés de ressoarmos o mantra do "disque 180", seria muito mais consequente amplificarmos a voz daquelas que estão há anos fazendo uma série de denúncias no que diz respeito ao desmonte das políticas de enfrentamento à violência, como é o caso das trabalhadoras que mais uma vez tentam se fazer ouvir através do manifesto da Rede de CDCMs da cidade de São Paulo.

Veja aqui: o Manifesto das Trabalhadoras dos Centros de Defesa e Convivência das Mulheres




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