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O judiciário como ator nas crises orgânicas: Brasil, Peru e Argentina

Leandro Lanfredi

O judiciário como ator nas crises orgânicas: Brasil, Peru e Argentina

Leandro Lanfredi

Essa semana vimos o judiciário cumprir um papel importante em crises políticas em países vizinhos. Na Argentina o judiciário condenou a vice-presidente Cristina Kirchner e a proscreveu vitaliciamente a concorrer a qualquer cargo. No Peru, país mais atingido pela Lava Jato em todo o continente, o judiciário foi peça crucial no golpe que prendeu Castillo depois de sua ação autoritária e bonapartista buscando responder ao golpismo. Dedicamos esse artigo a pensar o papel bonapartista que crescentemente essa instituição desempenha nas crises orgânicas do Brasil e desses dois países.

Antes de abordar mais teoricamente o papel do judiciário nas crises políticas e sociais nos países vale a pena trazer ao leitor um breve resumo dos casos já traçando algumas conexões com o judiciário brasileiro e suas ações.

Argentina: uma conexão do judiciário, da oposição e empresários que nem Moro, Globo e Aécio mostravam

A ex-presidenta e atual vice-presidente argentina Cristina Kirchner foi condenada em primeira instância acusada de corrupção em uma delação relacionada a obras públicas em estradas (na causa conhecida como “Vialidad”). Na condução do caso, apesar das delações, ficou claro como a causa tomou como alvo especialmente peronistas e especialmente kirchneristas, poupando os denunciados ligados ao macrismo. A pena contra Kirchner é de 6 anos de prisão e proscrição vitalícia de participação eleitoral, que deixa clara a intencionalidade de utilizar o tema da corrupção para interferir nos futuros sufrágios.

Os juízes que a condenaram são conhecidos por jogar partidas de futebol na casa do ex-presidente e atual líder opositor Mauricio Macri. O juiz que conduziu o início do processo de acusação, Julian Ercolini foi denunciado, no mesmo dia, por participar de uma viagem a uma estância de luxo de um conhecido multimilionário junto a diversos membros de governos regionais ligados ao macrismo, membros do grupo Clarín (poderosa mídia local) e outros juízes. Foi exposto um grupo de Telegram, bem ao sabor da Lava Jato brasileira, que tinha a seguinte lista de participantes: Marcelo D’Alessandro, atual ministro de Segurança da Cidade de Buenos Aires, Jorge Rendo e Pablo Casey do grupo Clarín, o juiz Ercolini, Juan Bautista Mahiques, procurador geral da Cidade de Buenos Aires, o juiz Carlos Mahiques, Tomás Reinke, um publicitário e outro juiz, Pablo Caysals. Nesse grupo conversavam coloquialmente das acusações e especialmente como se livrar da acusação de corrupção por realizar essa viagem às custas do grupo Clarín.

O nível de relações carnais entre macrismo, grupo Clarín e juízes fica escancarado nesse caso. É conhecida a relação que a Lava Jato estabelecia com os grandes meios de comunicação brasileira para promover grandes ações midiáticas e vazar delações quando havia interesse político, também são conhecidos os sorriso entre Aécio e Moro e como os tucanos eram poupados nas denúncias, porém o nível de relações – comprovadas – como se viu na Argentina ainda não veio à tona no Brasil.
O caso também evidencia a existência de serviços de espionagem do governo que pode rapidamente levantar todos esses dados dos acusadores judiciais. Rapidamente Alberto Fernandez tinha todo um dossiê para acusar os acusadores. No Brasil dois personagens são especialmente conhecidos por manterem vivos dossiês de seus críticos, o ministro do STF Gilmar Mendes é acusado de chantagear políticos e outros colegas do STF com seus dossiês (segundo alguns deles relatam anonimamente no livro Os Onze e para o qual recomendamos essa resenha e especialmente o autoritário Alexandre de Moraes que é acusador, censor das redes sociais e julgador de todos que questionem o judiciário (condenando não somente a extrema-direita, mas também o PCO) e preparando-se para adotar ações contra os trabalhadores e a esquerda quando assim convier ao regime.

O Peru, alvo da Lava Jato e o judiciário na crise atual

A operação Lava Jato do Brasil teve repercussões internacionais. Desde sua concepção ela foi articulada junto a operadores do departamento de Estado e de Justiça dos EUA, como ficou comprovado em documentos do wikileaks. A relação que os juízes e procuradores brasileiros mantinham com seus pares estadunidenses eram ilegais, não seguiam canais oficiais, não respeitavam jurisdições como denunciavamos. Entre essas “colaborações” esteve a pressão para que a Petrobras entregasse aos EUA uma fortuna em indenizações (lesando o erário brasileiro) ou ainda que a Odebrecht realizasse acordos de delação premiada nos EUA e diversos países. Um desses países foi o Peru. Mediante acusações de delatores da Lava Jato, prontamente tomadas com especial gana pela mídia, foram presos a partir de 2016, 3 ex-presidentes (um se suicidou no momento da prisão) e ainda foram acusados de corrupção o presidente naquele momento, PPK, e a opositora direitista Keiko Fujimori. Fujimori chegou a estar presa, mas conseguiu ser reabilitada à política, liderar seu partido e seguir concorrendo a eleições e atuando na desestabilização política e golpismo contra o reformista moderado Castillo.

O poder conquistado pelo judiciário local se fez mostrar em diversas ocasiões das crises políticas recentes no país vizinho. Quando o presidente PPK propôs dissolver o Congresso e convocar eleições (medida parcialmente semelhante a adotada por Castillo) o Supremo julgou legal a proposta e foi possível que o governo sobrevivesse mais um período. Era interesse de setores das classes dominantes que houvesse continuidade de um governo que se apresentava por fora dos partidos tradicionais e ao mesmo tempo era defensor de diversas medidas neoliberais. Já agora a maior corte peruana julgou que a proposta autoritária de Castillo dissolvendo o Congresso e instituindo um estado de exceção era golpista e avalizou a decisão relâmpago de impeachment do presidente por “incapacidade moral”. Atuando, como bem conhecemos no Brasil, como árbitro das disputas políticas para alterar leis e ditar conforme os interesses, o que é legal e o que não.

Castillo no momento encontra-se arbitrariamente preso e as manifestações que exigem eleições estão sendo brutalmente reprimidas.

Para se aprofundar na crise política peruana ler, em espanhol: “Ante el intento fallido bonapartista de Castillo y el golpe parlamentário de derecha em Peru”

O judiciário peruano participa ativamente das conexões internacionais dos judiciários do continente, trocando notas de apoio com o brasileiro Dallagnol que já publicou artigos em defesa dos congêneres e eles de Moro e do MPF brasileiro. Uma das intenções do projeto PONTES que os EUA desenvolveu a partir da” república de Curitiba” (ver link nesse mesmo artigo) era a promoção de integração dos judiciários dos países para juntos promoverem “o combate à corrupção e o predomínio da lei”. Outra intenção nada escondida era abrir maior caminho para empresas americanas em detrimento de “global players” brasileiras, notadamente a Petrobras, mas também diversas gigantes brasileiras da construção civil, como a Odebrecht que antes da Lava Jato era maior que qualquer concorrente no continente americano. Para se aprofundar na Lava Jato como parte das disputas do imperialismo norte-americano com outros (como o europeu que adotou postura mais crítica ver “A Lava Jato como parte da disputa entre imperialismos e para uma pesquisa mais aprofundada de interesses no petróleo brasileiro ver “Lava Jato: por trás de Moro e da grande mídia se escondem alguns donos do mundo.

Crises e atuação bonapartista do judiciário

Pelos limites de objetivo e espaço não iremos abordar como detalhe e rigor as particularidades das crises políticas e sociais em cada país, mas vale, em linhas gerais, pontuar como há alguns elementos de crise orgânica que se nota nos três países. Para se aprofundar nesse conceito tomado do revolucionário italiano Antonio Gramsci, sugerimos o artigo “Brasil: crise orgânica” de Juan Dal Maso e Fernando Rosso.
Há marcados sinais de falência dos regimes políticos e parte do sistema partidário se expressando particularmente no Peru e sua crise com o regime fujimorista de 1993 e no Brasil relativo ao regime de 1988 e que o único de seus pilares partidários que segue vigente é o PT e graças ao que o golpe institucional de 2016 o poupou e toda a reabilitação de Lula que o STF promoveu (depois de ter avalizado a Lava Jato quando convinha).

No regime brasileiro vigente há um papel assumido de “moderador” que o judiciário avoca para si (em disputa com os militares). O papel de “moderador” como já disse o ministro Toffoli remete explicitamente ao papel bonapartista constitucional do imperador Pedro II (havia constitucionalmente um papel separado e superior do imperador por cima dos demais 3 poderes) e que as Forças Armadas sempre se auto atribuíram.

Tanto no Brasil como no Peru há uma extrema direita com peso político institucional, e alguma capacidade de mobilização de rua.

Na Argentina, palco de jornadas revolucionárias em 2001, o regime reconstituído pelo kirchnerismo não encontra capacidade de reconstruir uma hegemonia, enfrentando desgaste popular por continuidade de submissão ao FMI e por outro lado pela força “resistente” mostrada pela direita tradicional (ou renovada com a cara Macrista ou da extrema direita) em alguns redutos como a capital federal e localidades com maior peso do agronegócio.

Uma característica das crises orgânicas, como pontua Gramsci, é o enfraquecimento da relação entre representantes e representados e o fortalecimento de setores sem voto, tais como as mídias, as igrejas, o “mercado” e as burocracias (civis e militares). Vemos em todos esses países uma tentativa da burocracia civil togada, eleita por ninguém, elevar-se a um papel maior na política.

Com particularidades de cada um dos países, também podemos afirmar que em todos eles a luta de classes não tem se mostrado até o momento como um fator de primeira monta e justamente nesse cenário “não clássico” sem enfrentamento aberto entre revolução e contra-revolução, as classes dominantes tem podido apelar a atores não armados para intervir em processos políticos como supostamente “neutros” para arbitrar conflitos e regular interesses (mas sempre em defesa das classes dominantes).

Outra expressão dessas crises orgânicas pode-se notar com a debilidade não somente de sistema partidários mas como em cada um desses países débeis "coalizões" devem fazer o lugar de partidos para buscar algum nível de eficácia eleitoral e governabilidade. É particularmente exemplificadora dessa debilidade o lugar da direita tradicional no Brasil, por exemplo o que foi o PSDB. Nesse vácuo de partidos orgânicos e em uma situação com menor luta de classes (também garantida pela atuação de burocracias sindicais que impedem seu desenvolvimento) é possível que o judiciário se poste como um "partido" para faz o lugar de partidos.

O bonapartismo, seguindo uma definição do revolucionário russo Leon Trótski em “Bonapartismo e Fascismo” é um governo do “sabre como juiz-árbitro da nação”, porém, o “o sabre não dá à si próprio um programa independente. É o instrumento da “ordem”. Está chamado a salvaguardar o existente. O bonapartismo, ao elevar-se politicamente por cima das classes como seu predecessor, o cesarismo, representa no sentido social, sempre e em todas as épocas, o governo do setor mais forte e mais firme dos exploradores. Em consequência, o atual bonapartismo não pode ser outra coisa que o governo do capital financeiro, que dirige, inspira e corrompe os setores mais altos da burocracia, a polícia, a casta de oficiais militares e a imprensa”.

O próprio Trótski confrontado com a situação de desenvolvimento capitalista dependente e com traços semi-coloniais em países como o Brasil e México, formulava como nesses países, o bonapartismo tinha características sui generis apoiando-se nas massas contra o imperialismo para conquistar maiores margens de manobra para a burguesia local tendo características “de esquerda” ou pelo contrário, apoiando-se no imperialismo contra as massas locais tendo mais características de “direita” ou similares ao conceito clássico de bonapartismo.

Nos casos recentes onde sequer há bonapartismo instituídos mas degradações bonapartistas de regimes democráticos burgueses já nascidos com diversas deformações o judiciário se advoga um papel de apoiar-se nos imperialismos, particularmente no americano para fazer valer interesses do grande capital, arbitrando entre interesses burgueses e tomando medidas autoritárias contra as massas.

Esse papel de avalizador de movimentos golpistas (como fez também para coroar Añez na Bolívia), de perseguição política à esquerda como fez no Brasil a Lava Jato ao PT e Lula, como faz o judiciário argentino a alguns ativistas (especialmente na província argentina do norte argentino de Jujuy há casos escandalosos) o judiciário atua como um ator pre-bonapartista que não prescinde e nem substitui o uso de forças “armadas”. O poder bonapartista do judiciário pressupõe forças sociais que o apoiem, pressupõe forças armadas (como serviços de espionagem e polícias). Trata-se de uma força pré-bonapartista ou de uma intervenção bonapartista parcial à altura do que a situação da luta de classes exige até o momento.

Em um artigo importante onde desenvolve o conceito de “bonapartismo de toga” Matias Maiello desenvolve teoricamente como esse lugar interventor do judiciário se dá num lugar teórico “sui generis” entre a intervenção judicial constitucional reguladora “normal” de Kelsen e o estado de exceção de Schmitt, ou valendo-se das palavras do autor: “O bonapartismo de toga é uma via para fortalecer “por cima” - tentando conjurar o desenvolvimento da luta de classes - os interesses capitalistas contra o povo trabalhador, e dentro das classes dominantes, do imperialismo norte-americano frente a determinados grupos capitalistas locais, assim como também contra o avanço de competidores (em especial da China cuja inserção na região deu um enorme salto na última década). Uma arbitragem muito mais bonapartista que o imaginado por Kelsen na hora de pensar o papel de seu tribunal e com aspectos que se tocam com o “estado de exceção” que teoriza Schmitt. Uma combinação "sui generis" especialmente funcional aqui, onde o peso do capital estrangeiro é determinante.”

Compreender a força e conteúdo da atuação do judiciário valendo-se de denúncias de algo estrutural do capitalismo, a corrupção, e como as conduz direcionadamente escolhendo quem poupar e quem atacar, deve nos fazer remeter mais uma vez a uma compreensão crítica de como deve se postar a esquerda e os trabalhadores diante do judiciário. Muito para além das defesas “os outros também são corruptos” como faz agora o kirchnerismo na Argentina, ou contra aqueles que embelezam o judiciário e a Lava Jato cabe termos uma postura crítica. O judiciário busca arbitrar e tutelar os regimes políticos para favorecer determinados setores burgueses e sempre utilizará (mais cedo ou mais tarde) cada avanço autoritário seu contra os trabalhadores e as massas.

Os pontos de contato de atuações políticas e arbitrárias dos judiciários de países em nosso continente também podem e devem nos servir para tirarmos lições pensando não nas particularidades de tal ou qual caso de corrupção, ou de tal ou qual judiciário, mas da natureza de classe de sua atuação e dos interesses que defendem.


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Leandro Lanfredi

Rio de Janeiro | @leandrolanfrdi
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