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O olhar do proprietário: um estudo sobre ‘São Bernardo’ e ‘Grande Sertão: Veredas’

Pedro Pequini

O olhar do proprietário: um estudo sobre ‘São Bernardo’ e ‘Grande Sertão: Veredas’

Pedro Pequini

— Eu sei lá! Foi vontade de Deus. É um molambo. (...)
— Qual nada! É molambo porque nasceu molambo.”

  •  Paulo Honório em São Bernardo

    “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar,
    cidade acaba com o sertão. Acaba?”

  •  Riobaldo em Grande Sertão: Veredas

    Com Brás Cubas, a literatura brasileira sofre, nas palavras de Alfredo Bosi, a sua mais importante revolução formal, e isso é alcançado por meio de um narrador em primeira pessoa que funciona como uma espécie de caricatura da elite escravista. Machado de Assis, em um ousado movimento de crítica, dá então a palavra, consecutivamente, para seus inimigos de classe (Brás Cubas, Bentinho e etc), deixando com que se enforquem sozinhos. Aqui estou interessado em outros dois romances, de momentos distintos do modernismo brasileiro, mas que fazem parte desta mesma tradição que buscou narrar através dos olhos de proprietários.

    Diferentemente do mimado Brás, herdeiro de uma fortuna que sustenta seus caprichos, tanto Paulo Honório, quanto Riobaldo (narradores e personagens principais dos dois romances em questão, “São Bernardo” e “Grande Sertão: Veredas”) iniciam suas vidas na posição de explorados, indiscutivelmente miseráveis, e no decorrer do romance realizam a travessia de classe, de modo que, desde o início da contação estamos “ouvindo” proprietários rurais. Tal aproximação entre personagens tão distintas - Brás Cubas, Paulo Honório e Riobaldo - pode causar um estranhamento inicial, contudo, as perguntas norteadoras que este trabalho tentará responder dizem respeito justamente às diferentes formas utilizadas por cada autor para expressar as contradições ideológicas decorrentes do processo de aburguesamento (nos casos específicos de Paulo e Riobaldo, que não nascem burgueses) principalmente no que tange a maneira como eles passam a entender e caracterizar seus antigos pares: os trabalhadores e os jagunços.

    ***

    “Os personagens e as coisas surgem nele como meras modalidades do narrador, Paulo Honório, ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais do que um estudo analítico, verdadeira patogênese deste sentimento.” (CANDIDO, 1992, p. 32).

    Ao tratar de Paulo Honório, narrador-personagem do segundo grande romance de Graciliano Ramos, estamos falando de um homem bruto, cuja brutalidade, contudo, revela muito mais do que um traço de caráter: ela é a expressão da brutalidade do princípio de propriedade; é o início da “patogênese” apontada por Antonio Candido. E cujas raízes e consequências não escapam ao próprio Paulo Honório:

    “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.
    E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
    A desconfiança é também consequência da profissão.
    Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.” (RAMOS, 2009, p. 140).

    Paulo Honório se vê deformado, pela “profissão”, pelo “modo de vida”, que é o do proprietário, do capitalista. É, portanto, ele mesmo, enquanto indivíduo, moldado ao sabor desse princípio universal que o rege, e, por meio dele, rege a vida de São Bernardo e daqueles no seu entorno. Aquilo que não interessa diretamente à relação de propriedade aparece subordinado ou ausente, como é o caso da infância do protagonista: “Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa” (RAMOS, 2009, p. 11). Até mesmo a memória de Paulo Honório, como a imagem corporal que faz de si (boca enorme, dedos enormes), está sujeita à prisão estreita desse “princípio universal” que o embruteceu; sua mente é igualmente presa. São traços que indicam como a subjetividade de Paulo Honório, e não apenas suas ações em relação aos demais, são cativas de sua posição social como proprietário. Ao ver submetida cada fibra de seu ser consciente à necessidade do valor de troca, Paulo Honório se fez apóstolo do princípio impessoal do Capital. Como apontado por Marx e Engels, a “consciência [Bewusstssein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS; 2007, p. 94). Por isso só sabe avaliar as pessoas em termos de “valor de troca”, a começar pela personagem que cumpre o papel mais próximo do que seria uma mãe: “A velha Margarida mora aqui em S. Bernardo. [...] Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu” (RAMOS, 2009, p. 11). E quando se refere ao ato de trazê-la para viver na propriedade, fala dela numa linguagem de quem a vê como um pacote de mercadoria: “É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para não se estragar na viagem” (RAMOS, 2009, p. 37).

    Tal brutalidade, agora em relação aos seus próprios funcionários - trabalhadores cujos males e sofrimentos Paulo compartilhou boa parte da via - muda de qualidade e alcança níveis aberrantes, gerando impactos imediatos na relação com Madalena, no capítulo XXI, quando chega a espancar Marciano. Não à toa, este trecho se inicia com “Pois, apesar das precauções que tomamos, do asbesto que usamos para amortecer os atritos, veio nova desinteligência. Depois vieram muitas” (RAMOS, 2009, p. 79). Através do advérbio de tempo “depois”, vemos como o autor deseja imprimir uma qualidade particular para este evento (que divide um “antes” de um “depois”) como um momento de inflexão, particularmente na relação com Madalena. Sem dúvidas, é no capítulo XIX que o romance, na sua macro-estrutura, apresenta seu grande momento de virada, no qual o Paulo Honório do instante da enunciação começa a se fundir com o do enunciado, transportando assim as angústias sentidas pelo Paulo do fim da vida - cuja sina será viver sem aquela que recusou dobrar-se perante seu implacável processo de reificação, que impunha a objetificação de tudo e todos - para o Paulo que está revivendo seus feitos. Todavia, no capítulo XXI, vemos um importante momento em que, ao tentar justificar o injustificável, Paulo Honório deixa evidente marcas bastante sugestivas do funcionamento ideológico burguês que está por trás da naturalização da violência de classe e da exploração.

    “Aqueles que lucraram com a escravização de negros - os comerciantes de escravos e marcadores capitalistas, primeiramente da Europa e em seguida dos EUA, e os senhores de escravos - exigiram uma racionalização e justificativa moral para uma instituição social arcaica que obviamente desrespeitava os princípios relativamente ilustrados defendidos pela sociedade capitalista em sua luta contra o feudalismo. Racionalizações sempre surgem quando interesses econômicos poderosos as necessitam e, nesse sentido, a teoria de que os negros são “inferiores” surgiu logo após a descoberta de que a escravisão era excepcionalmente lucrativa. Essa teoria foi abraçada entusiasticamente, envolta em uma roupagem pseudocientífica e citações bíblicas, e seguiu sua marcha como uma verdade tão evidente em si mesma que somente loucos ou subversivos poderiam duvidar ou negá-la.” (BREITMAN, 2019, p. 47).

    Em 1954, em seu célebre texto “Quando surgiu o preconceito contra o negro”, George Breitman aponta como o racismo é um fenômeno social tipicamente capitalista (“Até mesmo nos círculos conservadores do movimento trabalhista, se reconhece atualmente que o preconceito de raça beneficia os interesses de classe capitalista e prejudica os interesses da classe trabalhadora. O que não é tão conhecido (...) e deveria sê-lo é que o preconceito de raça é um fenômeno singularmente capitalista, que não existia ou não possuía influência perceptível em sociedades pré-capitalistas”) que encontrou justificativas calcadas primeiro na religião e depois na pseudociência eugenista/determinista, para a qual os indivíduos são produto exclusivo do meio, momento histórico e raça. Tal leitura nos interessa em particular porque podemos ver, no diálogo em que Madalena questiona o sentido da brutalidade que Paulo destina a Marciano, o quanto as respostas do patrão vão no sentido de ambas as tendências, tanto religiosas, quanto pseudocientíficas:

    “As últimas cargas de algodão chegaram ao descaroçador. Houve um apito demorado e os trabalhadores largaram o serviço. Consultei o relógio: seis horas.
    — É horrível! bradou Madalena.
    — Como?
    — Horrível! insistiu.
    — Que é?
    — O seu procedimento. Que barbaridade! Despropósito.
    — Que diabo de história...
    Estaria tresvariando? Não: estava bem acordada, com os beiços contraídos, uma ruga entre as sobrancelhas.
    — Não entendo. Explique-se.
    Indignada, a voz trêmula:
    — Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma?
    — Ah! sim! por causa do Marciano. Pensei que fosse coisa séria.
    Assustou-me.
    Naquele momento não supus que um caso tão insignificante pudesse provocar desavença entre pessoas razoáveis.
    — Bater assim num homem! Que horror!
    Julguei que ela se aborrecesse por outro motivo, pois aquilo era uma frivolidade.
    — Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.
    — Por quê?
    — Eu sei lá! Foi vontade de Deus. É um molambo.
    — Claro. Você vive a humilhá-lo.
    — Protesto! exclamei alterando-me. Quando o conheci, já ele era molambo.
    — Provavelmente porque sempre foi tratado a pontapés.
    — Qual nada! É molambo porque nasceu molambo.” (RAMOS, 2009, p. 81)

    Na dança ritmada pelo apito da fazenda-fábrica, o fim do "horário de expediente” (Consultei o relógio: seis horas) marca a deixa para Madalena expressar sua indignação, que não é compreendida por Paulo Honório, o qual responderá centrando sua argumentação na seguinte tese: “Marciano não é propriamente um homem”.

    Destituído da categoria de humano, Paulo define repetidamente Marciano como um mero “molambo”, palavra essa que se inseriu em nosso vocabulário por meio dos negros escravizados, pois dava nome, inicialmente, ao pano que algumas tribos africanas amarravam à cintura. Com o passar do tempo, o termo foi tomando a forma racista, depreciativa e de insulto e passou a ser usado como um adjetivo para caracterizar negros sujos ou mal arrumados. Ao dizer, então, “Foi vontade de Deus. É um molambo”, P. H., que personifica a modernização conservadora brasileira (desenvolvimento das forças produtivas típico da periferia do capitalismo, cujo avanço carrega consigo, necessariamente, o atraso mais arcaico e reacionário), vale-se de um argumento religioso/metafísico, filosoficamente atrasado, ilustrando o panorama traçado anteriormente por Breitman: “Essa teoria [o racismo] foi abraçada entusiasticamente, envolta em uma roupagem pseudocientífica e citações bíblicas”.

    Para fechar o sistema, até agora traçado, das forças em ação na justificação ideológica do porquê Marciano, um trabalhador, ao que tudo indica, negro, não seria “propriamente um homem”, Paulo Honório busca encerrar a discussão com um “xeque-mate”: “Qual nada! É molambo porque nasceu molambo.” Tal encadeamento, que busca explicar os fenômenos pelo nascimento, já havia sido problematizada por Machado e muitos outros pensadores no século XIX e carrega uma lógica profundamente naturalista e biologizante, cujos elementos sociais são secundarizados frente aos determinantes hereditários/genéticos. O interessante aqui é pensar também como Madalena responde a essas barbaridades:

    “— Eu sei lá! Foi vontade de Deus. É um molambo.
    — Claro. Você vive a humilhá-lo.
    — Protesto! exclamei alterando-me. Quando o conheci, já ele era
    molambo.
    — Provavelmente porque sempre foi tratado a pontapés.”

    Em face do preconceito do patrão e seu marido, a antiga professora, sentida como louca por Paulo Honório (“Estaria tresvariando? Não: estava bem acordada, com os beiços contraídos, uma ruga entre as sobrancelhas”) apresenta um entendimento refinado e materialista da formação da “alma” humana, dando ênfase para a forma como esses indivíduos são tratados pela sociedade e como isso vai forjando, dialeticamente, suas subjetividades.

    ***

    Ao adentrarmos no universo de ‘Grande Sertão: Veredas’, é necessário lembrar que, para esta história, Guimarães cria uma instância narrativa nova: o jagunço filósofo. Rompendo com os princípios da verossimilhança, os quais norteiam boa parte da produção de Graciliano Ramos, por exemplo, neste romance somos apresentados a um mundo onde “aquilo que não havia, acontecia” (ROSA, 1994, p.1). A obra, “sem ser rigorosamente um monólogo, não chega a diálogo.” (SCHWARZ, 2022, p. 441). E, neste “falso” diálogo, aquele que detém a palavra é exclusivamente Riobaldo: um proprietário rural que passou boa parte da vida como jagunço (miliciano do sertão) e então ascendeu socialmente mediante a herança recebida do pai, cuja real identidade foi omitida durante boa parte da vida de Riobaldo. Tendo o jagunço filósofo, na infância, sido alfabetizado e intelectualmente formado, Guimarães Rosa criou um mecanismo que permitiu ao próprio sertanejo contar a épica jornada de sua vida, sem intermédio.

    Assim como em ‘São Bernardo”, busquei, dentro do monumento que é este livro (considerado por Antonio Candido como o grande romance do século XX), um trecho que capturasse a forma como Riobaldo - cuja posição, desde o princípio do diálogo-monólogo, é de patrão - descreve seus antigos companheiros de ofícios, os jagunços. Para tanto, resgato aqui a breve caracterização que Riobaldo faz dos jagunços signatários do pactário Hermógenes, logo após adentrar temporariamente no bande deste:

    Cabralhada. Tiba. De boa entrada, ao que me gasturei, no vendo. Aqueles eram mais de cento e meio, sofreúdos, que todos curtidos no jagunçar, rafaméia, mera gente.” (ROSA, 1994, p. 224)

    Os adjetivos aqui usados (cabralhada = rebanho de cabras; rafaméia = gente da classe baixa, plebe, ralé) apontam para um conteúdo de classe evidente. Contudo, dentro da narrativa, parece-me que a imagem do jagunço carrega uma contradição pungente: por um lado, como podemos ver no trecho acima, existe um caráter negativo, que se relaciona a um sofrimento agudo das camadas mais precarizadas, o qual será um dos fatores que moverá Riobaldo a optar pela classe exploradora; ao mesmo tempo, há uma profunda valorização decorrente da aproximação, apontada por Candido, da jagunçagem com os cavaleiros medievais.

    “Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que fossem mesmo de constância assim, por tempero de propensão; ou, então, por me arrediarem, porquanto me achando deles diverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eu soube que eu era mesmo de outras extrações. Semelhante por este exemplo, como logo entendi: eles queriam completo ser jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o que avistei, seguinte.” (ROSA, 1994, p. 225)

    Após ser incluído no bando que, do ponto de vista de Riobaldo, é composto por “mera gente”, o nosso narrador faz questão de marcar as diferenças que nota entre ele e os demais, realizando um comentário que aponta para visão preconceituosa (“sendo que eu soube que eu era mesmo de outras extrações”). Há aqui uma tentativa de justificar as diferenças pela origem (familiar, espacial, cultural, etc), apontando para a lógica determinista desenvolvida anteriormente sobre o pensamento de Paulo Honório. Além disso, neste trecho, conseguimos visualizar a diferença central, que divide Riobaldo dos demais jagunços: diferentemente de Riobaldo, “eles queriam completo ser jagunços”.

    Curtidos no jagunçar, esses indivíduos buscam se fechar nesta posição social, quebrando, de um certo modo, com um princípio central da obra: o da mudança.

    “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!” (ROSA, 1994, p. 25)

    Ao se decidirem exclusivamente pela jagunçagem, eles justamente quebram com o sentido do rio da vida e são colocados no campo do demoníaco, nos termos usados por Walnice Nogueira Galvão:

    “A essência da vida é o movimento e a mudança. Este, o sentido dela: o de um processo dinâmico, sem pressa, constante em sua inconstância. (...) Querer ter alguma certeza no seio do movimento e da mudança é atentar contra a desordem natural das coisas, que é sua ordem recôndita.” (GALVÃO, 2022, p. 455)

    Ao mesmo tempo, neste mesmo momento do acampamento do Hermógenes, podemos vislumbrar como se dá esse processo de curtição na jagunçagem, de tornar-se um jagunço por inteiro, cujas leis, ao que tudo indica, seguem o princípio da reversibilidade apontado por Antonio Candido:

    “Pois não era que, num canto, estavam uns, permanecidos todos se ocupando num manejo caprichoso, e isto que eles executavam: que estavam desbastando os dentes deles mesmos, aperfeiçoando os dentes em pontas! Se me entende? Senhor ver, essa atarefação, o tratear, dava alojo e apresso, dava até aflição em – aflito, abobante. Os que lavravam desse jeito: o Jesualdo – mocinho novo, com sua simpatia –, o Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles eram o Simião e o Acauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes de diante, apoder de gume de ferramenta, por amor de remedar o aguçoso de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco – piranharedoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense que para esse gasto tinham instrumentos próprios, alguma liminha, ou ferro lixador. Não: aí era à faca.” (ROSA, 1994, p. 226)

    O interessante aqui é ver que, para ilustrar esse processo de metamorfose, o qual levaria ao estágio máximo da jagunçagem, é escolhido justamente um personagem como o Jesualdo, caracterizado pela mocidade e simpatia. A animalização decorrente desta escolha faz com que um simpático jovem transforme-se em uma espécie de transmorfo homem-piranha. Sem dúvidas, o impacto seria menor, e tal feito não se enquadraria na reversibilidade candiana, se estivéssemos falando de um brutamonte que deseja tornar-se ainda mais bruto, e para tanto se mutila com uma faca. O que vemos aqui, ao contrário, é a simpatia cedendo lugar à animalização. Ou seja, se por um lado nota-se, como desenvolvido acima, uma negativa, por parte destes personagens, da essência da vida (que é a mudança) quando buscam fechar-se na jagunçagem; por outro, vemos que mesmo eles não escapam à lógica do mundo e também estão sujeitos às suas transformações. Notamos, portanto, que este evento se liga à lógica geral do livro, captada por Walnice a partir de algumas historietas, aparentemente sem razão de ser, do começo do livro:

    “Essas histórias mostram como o contrário sempre surge do seu contrário.” (GALVÃO, 2022, p. 446)

    ***

    Posto isso, é possível concluir que, ora mais nitidamente, ora escondido na própria composição/ forma narrativa, é praticamente incontornável a temática de classe na literatura de um país periférico tão desigual e excludente, marcado a ferro pela escravidão. As pistas, cifradas na psicologia dos narradores-personagens, abrem reflexões riquíssimas acerca da formação social brasileira e realizam debates fundamentais sobre como chegamos até a barbárie atual.

    Finalizo recuperando uma importante reflexão do Roberto Schwarz, contida no texto “Uma desfaçatez de classe”, na qual ele aprofunda nesse aspecto que une a literatura brasileira com sua particular formação social:

    “No que diz respeito ao ideário liberal, encontraremos uma variação de apreciações correlata. Necessário à organização e à identidade do novo Estado e das elites, ele representa progresso. Por outro lado não expressa nada das relações de trabalho efetivas, as quais recusa ou desconhece por princípio, sem prejuízo de conviver familiarmente com elas. (…) Esta complementaridade entre instituições burguesas e coloniais esteve na origem da nacionalidade e até hoje não desapareceu por completo. Pela posição-chave, e também pelo pitoresco, no qual se registra o desvio em relação ao modelo canônico anglo-francês, aquela articulação — desçonjuntada por natureza — tem estado no centro da reflexão literária e teórica sobre o país, de que se tornou quase a marca distintiva. Contudo basta considerar a nova divisão internacional do trabalho, em que às ex-colônias coube o papel de consumidores de manufaturados e fornecedores de produtos tropicais, para entender que o desenvolvimento moderno do atraso só em primeira instância era uma aberração brasileira (ou latino-americana). O fundamento efetivo estava no que a tradição marxista identifica como o “desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo”, expressão que designa a equanimidade sociológica particular a esse modo de produção, o qual realiza a sua finalidade econômica, o lucro, seja através da ruína de formas anteriores de opressão, seja através da reprodução e do agravamento delas.” (SCHWARZ, 2000, p. 27)


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