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SEMANÁRIO

O papel dos professores como tribunos populares na crise

Marcella Campos

Flávia Telles

O papel dos professores como tribunos populares na crise

Marcella Campos

Flávia Telles

Contra as péssimas condições da educação e em meio ao reacionarismo do bolsonarismo há um certo senso comum reformista que busca restringir o papel dos professores a serem bons educadores, como parte de uma "batalha cultural" contra a extrema direita das fake news e da perseguição do escola sem partido, martelam uma ideia de formadores de bons cidadãos que possam assim transformar a sociedade. Mas a escola e o papel do professor vão além, utilizamos para isso o conceito de Estado Integral do revolucionário italiano Antonio Gramsci para buscar responder as questões de nosso tempos, afinal, qual o papel dos professores em meio a crise capitalista?

Mesmo em meio a uma crise econômica que aprofunda o cenário de desemprego, miséria social e precarização do trabalho, a ideia de que com bons professores e educadores, que consigam dar boas aulas, vamos formar bons cidadãos, ainda persiste. Não negamos a importância de termos professores bem formados, com condições adequadas para dar aula para a formação social da juventude. Mas também não nos somamos as perspectivas que buscam culpabilizar o professor pelo fracasso escolar e também colocar uma perspectiva de transformação social que é apenas de avanço cultural, negando um âmbito central e imprescindível de transformação, a luta de classes.

Para entender o que significa a escola e qual o papel dos professores, vamos ao arsenal do marxismo. Gramsci cunhou em meados dos anos 1920 a ideia de Estado Integral, que em suma significa que o Estado não consegue organizar sua dominação e hegemonia somente a partir da coerção, da violência, das normas e da força, ou seja, somente a partir do aparato estatal ou da sociedade política, ele precisa organizar a hegemonia no interior da sociedade civil e dos espaços dessa sociedade. Assim desenvolve que o “estado, em seu significado integral é: ditadura + hegemonia”.

O conceito de Estado integral portanto busca mostrar a relação entre sociedade política e sociedade civil em que esses polos se cruzam para produzir o "consenso", e assim a hegemonia burguesa. Podemos entender a escola como um espaço onde essa relação entre sociedade política e civil se expressa. Federico Puy e Virginia Pescarmona em seu artigo "Antônio Gramsci e uma educação em uma perspectiva revolucionária" buscam mostrar que a escola pode ser vista tanto como um espaço de produção da coerção como do consenso. Isso porque a escola tem como objetivo produzir disciplina, ordem e normas, vide o conjunto de códigos de conduta, horários, sinais, regras, avaliações e mecanismos de penalização dos indivíduos.

Mas também assume o papel da produção de consenso quando seu objetivo é transmitir diretamente os valores e ideologia da burguesia, parte essencial da manutenção do sistema capitalista. Os currículos escolares sofrem transformações a todo tempo com objetivo de garantir que tipo de conhecimento, valores, e ideias se está transmitindo na escola para formar culturalmente os trabalhadores e a população de acordo com o nível e o sentido que corresponde às necessidades das forças produtivas do capital. Um exemplo é a reforma do ensino médio, feita para adequar o currículo escolares as necessidades do trabalho uberizado e precarizado no país.

Isso tudo para dizer que a escola está longe de ser apenas o espaço onde se concentra uma certa "batalha cultural", em que o papel do professor é elevar culturalmente a população para aí sim chegarmos a uma transformação da sociedade. Essa leitura foi fortemente colocada pelo reformismo petista a partir de uma leitura interessada e equivocada de Gramsci, que buscou fortalecer uma visão de transformação da escola por fora da transformação da raiz dos problemas sociais. Essa relação é mais complexa, justamente porque a escola é também um aparato da classe dominante sobre a classe explorada, e portanto, ainda que os professores travem uma batalha cultural essencial em nossos tempos, seu papel vai muito além disso, porque não há como ter um avanço cultural por fora da realidade social que o capitalismo impõe e que permeia a escola.

Nesse fim de semana se comemora o dia do professor, é preciso dizer que os professores são sujeitos centrais na busca para que a escola cumpra esse papel do ponto de vista da hegemonia burguesa, para que possa transmitir a disciplina e as ideias da classe dominante. Porém, os professores não são agentes da burguesia, são parte da classe trabalhadora assalariada, explorada e oprimida, são maioria mulheres na sociedade patriarcal, são jovens precarizados que são contratados sem direitos, são trabalhadores de voz rouca, com tendinite e as mil doenças do corpo e da mente. Essa é a cara dos milhares de professores pelo mundo.

Por isso, a burguesia e seus governos buscam sempre controlar, cooptar, cercear os professores para impor seu projeto, ainda mais quando a hegemonia burguesa está em crise. Foi o que vimos diante da crise capitalista mundial que já dura mais de 14 anos e é produtora de pandemias e guerras como a da Ucrânia. Os professores foram escolhidos como inimigos centrais dos diferentes governos da extrema direita e direita pelo mundo. É o que também vimos no caso do Brasil, com ataques, reformas e um discurso ofensivo para desmoralizar esse setor da classe. Mas como os professores responderam?

Professores na vanguarda dos trabalhadores contra a crise capitalista e seus governos

Podemos dizer que nos principais momentos de grandes ataques burgueses os professores foram o setor da classe trabalhadora que melhor compreendeu do que se tratava os planos da burguesia e buscou responder no único terreno possível, a luta de classes. No mundo todo vimos milhares de professores em marcha e greves contra os governos da crise capitalista, como Trump, Piñera, Macron. Em meio a pandemia da covid-19, os professores protagonizaram greves para impor protocolos sanitários mais seguros.

Esse ano, em Minneapolis nos EUA, fizeram a maior greve em 50 anos, se ligando as reivindicações por Black Lives Matter. No Equador contra Guilherme Lasso os professores chegaram a fazer greve de fome exigindo o fim do ataque aos seus salários. Na França vimos greves e paralisações recentes contra as condições sanitárias da pandemia que chegaram a organizar 75% dos professores primários e do ensino fundamental. No Uruguai professores e estudantes protagonizaram mobilizações e paralisações contra a reforma educacional de Lacalle Pou que busca avançar na privatização do ensino e abriu as portas para uma forte greve geral por salários.

No Brasil de Bolsonaro, marcado por um golpe institucional, também podemos dizer que os professores estiveram na linha de frente das principais lutas e do rechaço às reformas que foram aplicadas no país, sejam elas diretamente sobre a educação ou não. Mesmo antes desse momento já vinham a frente de responder aos ataques. Quem não se lembra da verdadeira batalha campal das professoras do Paraná contra a polícia de Beto Richa em 2015?

Quando veio o golpe institucional de 2016 e Temer assumiu a presidência certamente os professores entenderam que ali se tratava de um ataque central, que a única coisa que produziria era um aprofundamento dos ataques a nossa classe e aos mais oprimidos. Por isso, estiveram na linha de frente dos principais atos e mobilizações contra o golpe institucional. Depois, a primeira reforma foi a do ensino médio, aprovada por medida provisória em menos de 1 mês da entrada de Temer na presidência, essa atacou frontalmente a educação e os professores, isso porque a burguesia sabe que para atacar a classe trabalhadora e impor níveis ainda mais profundos de precarização do trabalho e da vida precisa impor esse projeto aos professores.

Mesmo assim vimos os professores se mobilizarem contra todas as reformas e ataques, contra as privatizações, contra a reforma trabalhista, PEC do teto, reforma da previdência, travando verdadeiras batalhas físicas nos estados contra os governadores e seus projetos. Depois, na linha de frente contra o bolsonarismo, se enfrentando com o escola sem partido e os projetos que buscavam cercear a liberdade de pensamento e de crítica do professor em sala de aula e defendendo uma educação com debates sobre gênero e sexualidade e racismo, como parte de uma educação crítica e laica.

Todas essas batalhas não puderam ir à frente, foram boicotadas e travadas pelas direções burocráticas dos sindicatos e centrais sindicais, grande parte dirigidos pela CUT e CTB, isso tudo para abrir espaço a outra estratégia, institucional e parlamentar, o que não pode produzir outro caminho senão a derrota. Inclusive vimos os próprios governadores do PT nesse momento acordando algumas reformas e aplicando elas nos estados onde governam, o que também os professores foram protagonistas em buscar enfrentar. Em São Paulo foi uma batalha com repressão policial do PSDB de Doria que garantiu a aplicação da reforma da previdência. E esse ano vimos mais uma vez fortes exemplos de luta pela aplicação do piso salarial docente cruzando o país, se expressando fortemente em Minas Gerais e no Piauí com mais de 100 dias de greve.

Portanto, os professores são parte da classe trabalhadora e tem forte presença em sua vanguarda e sempre reagiram aos principais momentos onde os trabalhadores foram fortemente atacados e buscaram se articular para responder. O que nos faz afirmar que também vão ter papel destacado frente aos desafios e batalhas que virão como continuidade da crise capitalista.

Além disso, os professores são capazes de sistematizar e dar um conteúdo mais totalizante para demandas que são particulares, justamente pelo papel que cumprem enquanto intelectuais no seio da sociedade, levando a frente demandas que não são apenas suas e da sua categoria, mas que compõe um quadro maior de demandas sociais que são reivindicadas pelos estudantes e a comunidade escolar, um exemplo é o apoio que deram aos estudantes secundaristas quando eles ocupavam escolas contra Alckmin. Esse papel e localização são estratégicos também para a luta da classe trabalhadora em meio a crise capitalista.

Professores como tribunos dos explorados e oprimidos

Usamos a ideia de tribuno do povo a partir do arsenal teórico desenvolvido por Lênin. Como afirmou Emílio Albamonte:

"Tribunos do povo ou tribunos populares é um termo tirado da Revolução Francesa que, por sua vez, lembrava os tribunos do povo da República romana. Na luta dos plebeus em Roma, havia uma instituição dos tribunos que podiam pôr veto a tudo o que fosse contra seus interesses. Os tribunos do povo se desenvolvem na Revolução Francesa e daí Lenin os toma para seu trabalho em Que fazer. Eram pessoas que tinham um pensamento muito mais amplo do que os dirigentes sindicais, porque buscavam influir com sua política em outras camadas e setores da população. Era dentro de uma teoria de revolução democrática que Lenin tinha nessa época, contudo o que tinha totalmente correto era que buscava que os trabalhadores não tivessem apenas um pensamento corporativo ou sindical, mas sim que falassem a outros setores de explorados e oprimidos e fizessem o que Gramsci chama de “hegemonia”. E o que é ter hegemonia? É falar às mulheres, aos jovens, é falar aos trabalhadores que têm emprego sem convênio, falar aos precários, aos contratados e conduzi-los no combate. Se não se consegue isso, não se avança muito."

Portanto, a localização dos professores enquanto intelectuais da classe trabalhadora, organicamente inseridos entre a juventude e seus familiares, que são parte de outros setores da classe trabalhadora, leva a que os professores tenha a potencialidade de falar à juventude, falar à comunidade escolar, falar aos mais pobres e explorados. Por isso, que sempre sofreram uma campanha difamatória por parte das grandes mídias e governos burgueses, justamente para minar essa potencialidade, separar esses setores e buscar desmoralizar os professores.

Ou seja, os professores podem não só ser porta-vozes das demandas da juventude e dos trabalhadores, mas possui um laço indissociável a esses setores na dinâmica concreta do seu trabalho. Apesar das inúmeras tentativas a burguesia não foi capaz de quebrar esse laço e é por isso que sempre que há uma necessidade de ataques mais profundos, em que a burguesia lança mão de medidas de força, como é o bonapartismo e as disputas que vemos nesse momento no país, também se coloca a necessidade de em primeiro lugar atacar esse setor tão fundamental da classe.

Isso coloca não só a responsabilidade, mas a possibilidade que os professores possam cumprir um papel central de buscar um caminho que confie nas próprias forças diante da crise capitalista e dos desafios de 2022. Essa possibilidade depende da disputa entre ser um agente transmissor da ordem e do ideário burguês, ou a partir da concepção de que a escola não é neutra, possam transmitir um sentido para que a escola possa se transformar num espaço de luta de classes se colocando ao lado da juventude e dos trabalhadores. Esse deveria ser o papel dos sindicatos da educação, organizar os professores nessa perspectiva de unidade e de carregar consigo essas demandas da nossa classe.

2022 coloca um grande desafio aos professores e a todos os trabalhadores, enfrentar Bolsonaro e o bolsonarismo no único caminho que ele pode ser enfrentado, que é a luta de classes. Por isso, estamos juntos com todos os trabalhadores que rechaçam e querem enfrentar o bolsonarismo e que para isso vão votar em Lula, nulo ou abstenção. Mas não prestamos qualquer apoio a chapa Lula-Alckmin, apoiadas pelo capital financeiro e por Biden. É preciso apontar o caminho da independência de classe, da mobilização para enfrentar a extrema direita e seus ataques que mesmo que perca as eleições vai seguir como força social e política do regime.

É preciso apontar o caminho da luta dos trabalhadores para lutar por melhores condições de trabalho e estudo nas escolas, por efetivação sem concurso dos professores e demais trabalhadores da educação contratados, por educação sexual e debates de gênero e sexualidade na escola, por uma educação laica e por uma escola que seja unitária, contra a separação do trabalho intelectual e manual, que possa promover uma educação que forma o indivíduo em sua totalidade, do ponto de vista do trabalho, da ciência, da arte e da criatividade, o que é impossível na sociedade capitalista do lucro, da desigualdade e da exploração. Esse papel os professores, vanguardas da classe e tribunos do povo, também estão convocados a assumir.


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Marcella Campos

Professora da rede pública de São Paulo, membra da Executiva Nacional da CSP-Conlutas e conselheira estadual da Apeoesp pela oposição. Militante do Grupo de Mulheres Pão e Rosas.

Flávia Telles

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