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O perdão dos pais na Pixar: o sonho millennial de mandar sua família para a terapia

Maria Singla

O perdão dos pais na Pixar: o sonho millennial de mandar sua família para a terapia

Maria Singla

Publicamos um ensaio sobre a relação entre pais e filhos nos filmes da Pixar.

Nos últimos 20 anos, os grandes estúdios de animação estadunidense vêm adaptando seus roteiros e suas preocupações temáticas para atender às mudanças ideológicas hegemônicas consolidadas a partir da segunda metade do século XX. Reivindicações como o ambientalismo, o feminismo e os movimentos pelos direitos dos negros e imigrantes e da comunidade LGBTQIAP+ (ou das mal chamadas "minorias" em geral) passaram da periferia ideológica para a centralidade da agenda midática, política e cultural.

Popularizadas em sua maior parte na década de 1960, as múltiplas e variadas inquietações e lutas desses movimentos políticos (não aprofundaremos cada um deles nesta nota) já atravessaram diferentes campos de discussão pública de três gerações de adultos .

A psicanalista Judith Kastenberg chama de "transposição ideológica" a transmissão geracional e inconsciente de desejos, fantasias e ideais que pais, mães ou figuras de cuidado fazem em relação aos filhos. Essa transferência é traumática, pois se realiza por meio da vivência direta dessas práticas.

No mundo do cinema, a transposição ideológica ocorre no momento em que pessoas, grupos e dinâmicas de poder são representados. Longe de ter fins explicitamente propagandísticos, o que tenta ser verossímil nas telas é um reflexo das práticas naturalizadas da sociedade (desde que não sejam abordadas a partir de uma postura crítica). Isso é particularmente importante em filmes cujo público principal são crianças e adolescentes, cujo universo moral está em construção e apenas parcialmente atravessado por sua própria experiência.

A geração millennial de diretores audiovisuais estadunidenses (nascidos entre 1980 e 1999) cresceu dentro de uma sociedade em que se conseguiu a transposição ideológica das questões dos anos 1960 e 1970. Pelo menos discursiva e legislativamente, e em diferentes graus, se condena o racismo, a violência contra mulheres e a homofobia. Posições reacionárias – que nunca cessaram e nunca deixarão de existir – são mais sutis e sustentá-las abertamente muitas vezes implica em consequências tanto legais quanto comunitárias.

É por isso que a agenda progressista dos últimos anos tem se voltado para esses problemas, que têm mais a ver com o aspecto discursivo e sobre os quais são erguidos estereótipos e preconceitos que se traduzem em práticas sociais discriminatórias ou delimitadoras para determinados setores.

A luta por uma representação menos estereotipada e mais inclusiva de mulheres e gêneros dissidentes, sexualidades, corporalidades, etnias, grupos nacionais, religiões, deficiências, etc são impulsionados diariamente por diferentes militâncias. Grandes produções cinematográficas responderam a isso com um elenco de personagens inéditos em comparação aos protagonistas brancos, europeizados, hetero-cis e piedosos herdados das narrativas de contos de fadas do século XIX que costumavam abundar nas décadas anteriores. Em parte, o sucesso da agenda progressista teve e tem a ver com sua capacidade de adaptação ao sistema capitalista em suas diferentes versões.

A bênção de mamãe e papai

A representação que aqui abordamos não tem tanto a ver com as personagens individuais, mas com as famílias e os conflitos que surgem entre filhos e pais ou figuras de cuidado quando se trata de reproduzir ao longo do tempo este modelo de unidade comunitária que é a família. Uma preocupação cada vez mais palpável dessa geração é a necessidade de representar não apenas os conflitos dos protagonistas com seus pais, mas é igualmente importante que as figuras de autoridade peçam desculpas aos filhos pela coerção exercida sobre eles ao tentar reproduzir o modelo familiar herdado, devido ao trauma que a transposição implica.

Esse fenômeno começou talvez com a estreia de Procurando Nemo (Stanton, 2003), em que Marlin, um pai superprotetor, deve ir em busca de seu filho Nemo, que foi sequestrado por um mergulhador. É o primeiro filme de animação do estúdio Pixar cuja principal reflexão gira em torno do vínculo familiar e mais precisamente o de pai-filho.

A origem do conflito que move todo o filme é justamente a desconfiança que o pai tem em relação à capacidade do filho de se desenvolver sozinho na imensidão do oceano. Curiosamente, quando o filho decide desafiar o modo de vida medroso do pai, ele efetivamente se coloca em perigo e Marlin prova estar certo.

A novidade aqui é que, para que o final seja consagrado como feliz, Marlin deve fazer uma autoavaliação de seu papel de cuidador e confiar em Nemo, mesmo depois de provar seu ponto. Enquanto seu filho não pode realmente se defender sozinho no oceano, Marlin aprende ao longo do caminho que ninguém realmente pode, que a sobrevivência depende do trabalho em equipe. Pedir perdão ao filho e aceitar que o pai errou (pelo menos parcialmente neste exemplo inicial) faz parte da nova bagagem de objetos de felicidade (Ahmed, 2022), aquelas condições necessárias que constroem a representação do que implica uma família ideal para esta geração: que os pais reflitam sobre o que transmitem em sua educação.

Um caso mais recente e completo dessa dinâmica é o de Valente (Andrews & Chapman, 2012). Merida é uma princesa escocesa cujos pais a forçam a se casar. Quando a protagonista se recusa, o conflito com sua mãe, Elinor, que é a figura de autoridade encarregada de realizar a transposição ideológica dentro de sua família, se agrava. O que acontece é que em 2012 o casamento arranjado é um tema totalmente inaceitável no mundo ocidental e os cineastas, ao invés de punir a desobediência da filha, optaram por punir as más decisões da mãe. Merida pede à bruxa na floresta que lhe conceda um encantamento para mudar Elinor e, assim, "mudar meu [seu próprio] destino". O feitiço acaba transformando a mãe em ursa e a única forma de devolvê-la à sua forma humana é restabelecer "o vínculo que foi rompido". Somente quando Merida e Elinor mudarem e valorizarem o papel uma da outra dentro do relacionamento, elas poderão retornar a uma espécie de marco zero. A dinâmica entre mãe e filha deve ser revista para que ambas possam ser aquela família ideal do imaginário millennial.

A benção da avó, da bisa, do tatara... Traga o Ouija!

As representações de diferentes grupos nacionais nos filmes da Pixar também trouxeram novas formas estereotipadas de mostrar a família na tela. No caso das comunidades latinas ou imigrantes, a família nuclear não inclui apenas pais e filhos, mas também tios, avós, primos, etc., que muitas vezes vivem sob o mesmo teto dos protagonistas.

É o caso de Coco (Unkrich e Molina, 2017), em que o protagonista Miguel desafia o mandato familiar ao querer cantar e tocar violão. Sua tataravó Imelda baniu a música de sua casa quando seu marido abandonou ela e sua pequena filha, Coco, para se dedicar a ser cantor, compositor e intérprete. O mandato foi passado de geração em geração sem causar grandes traumas aos demais antepassados ​​de Miguel, mas ele deve enfrentar sua avó Elena, que é quem mantém o modelo familiar herdado vivo por meio da administração de recompensas e punições. No momento em que Miguel desafia Elena no Dia dos Mortos, um feitiço acidentalmente faz com que o menino entre na terra dos mortos. Para voltar aos vivos, é necessário que um familiar lhe dê a bênção. Lá ele conhece a matriarca Imelda, que continua com o exercício da coerção geracional mesmo de forma paranormal: ela dará seu consentimento para retornar apenas se abandonar a música.

Só quando Miguel consegue reencontrar seu tataravô Héctor e descobre que ele não abandonou a família, mas foi assassinado, é que Imelda e o resto do clã se reconciliam com a música. O protagonista volta à vida trazendo a bênção de seus antepassados ​​e só com ela pode receber a de sua família no plano dos vivos.

O novo objeto de felicidade que torna a família millennial ideal, podemos dizer então, inclui a revisão de métodos parentais ou figuras de autoridade - avós neste caso -, mas também entende que eles devem fazer sua própria jornada reflexiva que inclui não apenas o relacionamento com seus descendentes, mas também com seus próprios pais.


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