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O que os trabalhadores brasileiros podem aprender com a luta de classes na França?

Diana Assunção

O que os trabalhadores brasileiros podem aprender com a luta de classes na França?

Diana Assunção

A última jornada de greve geral na França no dia 07 de março reuniu quase 3,2 milhões de manifestantes, segundo a Confederação Geral do Trabalho (CGT). Com esse número bateu o recorde da jornada anterior, chegando a ser considerada a maior em 30 anos. Muitos setores estratégicos do proletariado francês protagonizaram esta data que seguiu no dia 08 de março, com a força das mulheres. A batalha para derrotar a reforma da previdência de Macron está aberta. Quais lições os trabalhadores e a juventude brasileira podem tirar e aprender deste processo?

Neste momento a Europa está atravessada não somente pelas consequências da crise econômica mas também pelo conflito de maior magnitude internacional na atualidade que é a Guerra da Ucrânia e as muitas disputas interimperialistas que nele se inserem. Estas disputas também terminam por pressionar mais a França com um certo “endurecimento” da burguesia francesa. Como viemos definindo, esse processo reatualiza um período de crises, guerras e revoluções. A França, entretanto, já vem de inúmeros processos de luta de classes pelo menos desde 2016 com destaque para a greve petroleira da Total [1] em 2022, inúmeras lutas salariais e um forte enfrentamento ao projeto de reforma da previdência que Macron tentou aprovar em 2019. Do ponto de vista da radicalidade, a França viu emergir um processo de luta de características inéditas, principalmente por sua composição, com o que foi os Coletes Amarelos (gilets jaunes), ao final de 2018 e início de 2019, que marcaram a sociedade francesa profundamente, já que a resposta do Estado foi de enorme repressão. Mas o “fantasma” da giletsjaunetização (o que poderíamos definir em resumo como “radicalização”, com um questionamento do regime e por fora do controle das direções tradicionais dos partidos e organizações de massas) segue tirando o sono da burguesia francesa.

Agora, em 2023, no momento de menor índice de popularidade de Emmanuel Macron, o governo francês (que saudou enfaticamente a eleição de Lula) decidiu dar um passo adiante para buscar descarregar a crise sobre as costas dos trabalhadores e do povo pobre, impactando de forma brutal sobretudo mulheres imigrantes, querendo que os setores mais precários, que recebem os mais baixos salários "se esforcem para salvar o sistema de aposentadorias", como diz o governo, enquanto as multinacionais francesas têm seus lucros de bilhões intocados. A tentativa de aprovação da reforma da previdência que quer aumentar a idade mínima de 62 para 64 anos até 2030 e um aumento ainda maior do tempo de contribuição para obter o valor integral, tem, no entanto, 93% de rechaço entre a população economicamente ativa, ou seja, os que serão afetados por ela. Não parece uma boa decisão do governo insistir nesse projeto uma vez que vem também imerso em muitas crises políticas, mas o fato é que Macron está decidido a se enfrentar contra essa maciça rejeição para cumprir o seu papel como representante dos interesses da burguesia imperialista francesa e sua necessidade de aumentar da taxa de exploração dos trabalhadores e levar adiante a tentativa de aprovação desta reforma, o que pode custar o seu próprio governo. Porém, mesmo decidido a ir até o final com sua reforma, é ilustrativo o receio do governo Francês de uma greve geral, com esse nível de rejeição. O que leva Macron a inventar todo tipo de argumentação, chegando a dizer que a greve geral levaria a uma catástrofe ambiental, o que chega a ser hilário frente a catástrofe ambiental propagada pelas multinacionais francesas em países africanos, sem ter seus bolsos tocados pelas reformas do Macron.

Vale ressaltar que se no Brasil viemos denunciando os fortes traços bonapartistas e autoritários do regime brasileiro, na França estamos tratando de um dos regimes mais bonapartistas de toda a Europa. Por exemplo, a Reforma da Previdência não precisará passar pela Assembleia Nacional (parlamento francês) e sim por uma Comissão Especial para somente depois ir para aprovação no Senado que na França é eleito por voto indireto. Macron tenta impor agora que mesmo a casta totalmente antidemocrática reunida no Senado se expresse por um “voto em bloco”, dando um só voto comum sobre o conjunto da reforma. O Senado aprovou a reforma, e falta ser debatida na Assembleia Nacional. E mesmo que a Reforma seja derrotada no parlamento, Macron pode lançar mão do seu poder de decreto (o Dispositivo 49.3) aprovando-a somente com sua decisão. Ou seja, além de ter um amplo rechaço da classe trabalhadora a aprovação de tal reforma se daria se utilizando dos mecanismos mais anti-democráticos possíveis do estado francês.

As burocracias sindicais organizadas na Intersindical, como a CFDT (de Laurent Berger) e a CGT (de Philippe Martínez), são uma peça fundamental para que a estratégia de desgaste do governo seja levada adiante. Estas burocracias não desejam a expansão do movimento, sob o risco de que saia do seu controle. Berger, da CFDT, havia dito que "não será ultrapassada pelo movimento", que não irá expandir as demandas para incluir a questão salarial (que poderia elevar o grau de massividade dos protestos, incluindo os setores mais precários), e também que mesmo se Macron passasse a reforma por meios bonapartistas (por decreto), não julgaria "antidemocrático". Com um discurso aparentemente mais radical, a CGT atua como cúmplice da CFDT. Isso, em um momento em que o governo segue na defensiva diante da raiva popular contra a reforma. Essa estratégia derrotista explica em boa medida a sobrevivência de Macron.

Entretanto é importante justamente frisar o momento atual. Raymond Soubie, que foi conselheiro do ex-presidente Nicolas Sarkozy deu uma declaração sintomática sobre as dificuldades que o governo Macron enfrenta hoje para aprovar a Reforma da Previdência: "o que torna a situação mais difícil hoje do que em 2010, 2014 ou 2019 é que os franceses estão sujeitos a muitos problemas: inflação, risco de escassez de energia, insatisfação com os serviços públicos, problemas no transporte... O tema das aposentadorias, que no imaginário social dos franceses é um totem, a própria personificação da proteção social, pode servir de catalisador para a raiva”.

O elemento correto desta observação está principalmente na constatação dos temas mais sentidos pela classe trabalhadora e a população pobre. Se a reforma da previdência é amplamente rechaçada ainda é um fato que, na prática, os trabalhadores sentem com muito mais dureza a situação de penúria que sofrem agora, como os salários muito baixos diante da inflação crescente, especialmente dos alimentos como consequência da Guerra na Ucrânia, e também da precarização do trabalho, que atinge os setores mais explorados da nossa classe como as mulheres, negros, a juventude e, no caso da França, com muita força os imigrantes.

É neste contexto que o país de longa tradição da luta de classes está pegando fogo. A resposta operária a este ataque frontal do governo Macron tem sido de paralisações massivas chamadas pelas centrais sindicais, mas em alguns setores está se construindo uma greve “renovável” ou “reconduzível” que na prática significa superar as medidas de paralisações de apenas um dia sem um calendário claro e dar largada a uma greve que no Brasil seria entendida como “por tempo indeterminado” que se “renova” ou se “reconduz” a cada assembleia. Ou seja, apesar das direções que querem impor calendários bem “espaçados” entre uma paralisação e outra, há uma batalha por uma efetiva greve geral renovável na França. Ainda assim, neste momento as centrais sindicais que se organizam em uma única “Intersindical” estão legitimadas por convocarem as manifestações, enquanto escrevem cartas pedindo para serem recebidos pelo presidente Macron que já deixou claro que vai até o limite para aprovar sua reforma e se nega a recebê-los. O que, ao mesmo tempo, coloca uma contradição importante para o movimento já que parte importante das centrais sindicais e seus métodos burocráticos são responsáveis por impedir o desenvolvimento da auto-organização dos trabalhadores, ou seja, de uma auto-atividade real que vem desde as bases para definir os rumos do movimento conformando uma vanguarda ativa da greve conectada com as bases. Como disse Anasse Kazib, militante ferroviário do Révolution Permanente “é preciso tomar a greve na mão dos grevistas”. Isso também coloca a necessidade de ver a situação de ânimo atual do processo.

As saídas reformistas mostram seu fracasso

Importante levar em consideração que na França como “oposição” ao governo Macron há também alguns setores da extrema-direita como a Rassemblement National de Marine Le Pen que é o partido mais conhecido da extrema direita francesa. É hoje a principal oposição parlamentar ao governo Macron. Tem uma orientação trumpista de "tornar a França grande de novo". E o Reconquête de Eric Zemmour que é o novo partido da extrema direita que ficou famoso nas últimas eleições, fruto da desilusão com Marine Le Pen. Zemmour defende por exemplo a expulsão dos imigrantes sob a bandeira de "evitar a Grande Substituição" (de franceses por imigrantes), a "desislamização" do país e ataques aos muçulmanos, rebate a suposta "ideologia de gênero" nas escolas, novas leis de deportação, entre outros. A existência dessa extrema-direita ativa é também um dos motivos que leva o governo Macron cada vez mais à direita.

Dentre os setores reformistas se destaca a chamada La France Insoumise (“A França insubmissa" - LFI) surgida em 2016 com a figura de Mélenchon na esteira dos fenômenos neorreformistas europeus do Podemos espanhol, Jeremy Corbyn na Inglaterra e Bernie Sanders nos EUA. A LFI se fortaleceu com os resultados presidenciais de Jean-Luc Mélenchon em 2021, que ficou em terceiro lugar com a expectativa de ser algum tipo de alternativa diante da polarização Macron x Le Pen. Mas a principal novidade no campo reformista é a chamada NUPES, a Nova União Popular Ecológica e Social, que é uma semi-coalizão parlamentar reformista que a LFI compartilha com o Partido Socialista, o “Europe Ecologie - Les Verts (conhecido como os “verdes”) e o Partido Comunista Francês. Trata-se de uma coalizão com relevância já que juntos têm cerca de 20% da Assembleia Nacional. O surgimento deste verdadeiro “conglomerado” reformista foi um dos catalisadores da crise do NPA (Novo Partido Anticapitalista) que diante de um engendro como este se adaptou completamente, apoiando muitas das posições da NUPES no parlamento, e adotando inclusive uma postura pró-OTAN na guerra da Ucrânia (política similar à da LFI).

Desde o começo do processo de luta contra a reforma da previdência atual, o papel que veio cumprindo a LFI e a NUPES foi de dividir o movimento. Isso ficou claramente marcado quando, diante da primeira paralisação em janeiro, decidiram convocar um “segundo dia de manifestação cidadã” em um sábado para que a população pudesse também se manifestar além do “movimento sindical”. Na prática, este “segundo dia”, além de dividir o movimento, foi apenas um palanque para Mélenchon transmitir sua perspectiva extremamente reformista de qual caminho seguir, colocando centro total na expectativa da atuação parlamentar da LFI. Vale dizer que esta política ultra-adaptada foi apoiada pelo NPA de Philippe Poutou e Olivier Besancenot, e também os setores que seguem se denominando NPA apesar de terem sido excluídos do partido em seu último Congresso. Na prática a LFI não está chamando uma greve renovável, está completamente adaptada aos planos dos setores mais de direita das direções sindicais, como a CFDT de Laurent Berger, e incentivando manifestações aos sábados, sem greve. Neste momento estão inclusive colocando ilusões em uma solução na Assembleia Nacional (parlamento francês). Tudo isso faz com que também, neste momento, a própria LFI não esteja com força de direção nenhuma no movimento social, o que torna ainda pior a adaptação do NPA a eles. A verdade é que a luta da classe trabalhadora está muito à frente dos planos da LFI.

Apenas para que se entenda no Brasil, vale a pena resgatar alguns elementos sobre a crise do NPA que teve como origem a política de sua própria ala historicamente majoritária, oriunda da corrente dirigida pelo falecido Ernest Mandel. Essa ala – que já havia perdido vários aderentes desde 2009 para formações mais conservadoras e de direita, como o antigo Parti de Gauche (que precedeu à LFI) ou mesmo o Partido Socialista – decidiu avançar em acordos nas eleições regionais em 2021 (na Occitânia e na Nova Aquitânia) justamente com a LFI. Como se não bastasse, essa ala deixou a porta aberta para acordos de segundo turno com o Partido Socialista (PS) [2] e Os Verdes, partidos que foram governo no Estado imperialista francês, ou que fazem parte de acordos governamentais em outros países europeus, como na Alemanha. Esse giro à direita por parte da ala historicamente majoritária do NPA tornou inviável uma linha de independência de classe, e destruiu inclusive as barreiras difusas que o NPA ainda carregava de não aliar-se com a centro-esquerda que atua diretamente pela conciliação de classes e pelo fortalecimento do Estado Francês. Diante do fracasso de seu projeto de “alternativa à social democracia tradicional”, o neo reformismo volta aos braços dos partidos socialistas em toda a Europa (já vimos a tragédia do Podemos como sócio do PSOE no governo imperialista espanhol, e a própria política de Mélenchon que, depois de sair do Partido Socialista Francês, negocia possíveis acordos eleitorais com os mesmos). Essa política desencadeou uma série de crises que teve como culminação seu último Congresso totalmente dividido no qual os setores da ala esquerda centrista do NPA foram excluídos do partido, apesar de seguirem se denominando como NPA. A questão é que, como já apontamos, as consequências principais dessa política se expressam fortemente na luta de classes, mostrando uma organização e suas correntes que não fazem nenhuma diferença concreta no processo em curso.

A auto-organização da classe para vencer e um programa para unificar o proletariado francês e imigrante

O autoritarismo estatal francês evidencia a falência da estratégia de "guerrilhas parlamentares" levada a cabo pela NUPES, assim como as ilusões alimentadas pelas direções sindicais que organizam reuniões com deputados da direita governista ou exigem um encontro com Macron que já respondeu negativamente na última sexta-feira. Enquanto a Intersindical utiliza a inflação como argumento para dizer que os setores mais pobres não podem fazer greve e por isso propõe manifestações aos sábados e diz para os setores que aprovaram greves renováveis a "aproveitar os dias" entre uma manifestação e outra, isolando-os, é a esquerda revolucionária que impulsiona a principal iniciativa de generalização da greve geral renovável enquanto o NPA segue em completa adaptação às políticas da LFI e da NUPES. O Révolution Permanente está impulsionando uma Rede pela Greve Geral, reunindo lideranças sindicais de distintas categorias junto a intelectuais e personalidades para batalhar pela greve geral renovável buscando superar um dos elementos principais de freio da classe trabalhadora, que é o fato da Intersindical não se colocar à frente deste chamado mantendo os trabalhadores em uma “espera” e com o medo permanente da “greve por procuração”, que poderia ser definida como uma ou poucas categorias dos setores estratégicos da economia saírem em greve por tempo indeterminado, enquanto os demais setores "apoiam a luta", mas não entram em greve.

Nesta primeira reunião da Rede pela Greve geral muitos setores estavam representados: o setor dos transportes (RATP, SNCF, Transdev, aeroportos Roissy e Orly, EasyJet, Geodis), metalurgia (Sidel Le Havre, Stellantis Mulhouse e Hordain, Airbus, CIM Aéro, terceirizados aeronáuticos), indústria química e refinarias (Total Normandie, Carling, Grandpuits, Argedis e terceirizadas), mas também trabalhadores da energia, centrais nucleares, agro-alimentares, sociais ou mesmo do serviço público (professores, funcionários públicos, hospitais e outros). Por fim, advogados, organizações antirracistas, artistas e intelectuais também estiveram presentes. No total, cerca de 150 sindicalistas, estudantes e ativistas da atual mobilização, que se reuniram presencialmente em Paris. Se trata de um primeiro passo que precisaria se generalizar e conseguir se dirigir ao conjunto da classe trabalhadora.

Ao mesmo tempo, como apontamos acima, é muito difícil vencer essa batalha sem uma política hegemônica da classe trabalhadora que busque unificar o proletariado francês. E essa política passa justamente por unificar as demandas que sentem os setores mais explorados, que passa pela questão salarial, da precarização e também contra a lei da imigração que vai endurecer muito as medidas contra os imigrantes. Como expressou Juan Chingo em recente entrevistaPorque limitar-se à questão da reforma e não abordar a questão das escalas salariais, que é o tema de muitos conflitos salariais atuais?”. Efetivamente, se o movimento atual se ampliar para a questão dos salários isso significaria um salto importante para o conflito de conjunto. Mas também como apontou Juan Chingo “sair de um movimento defensivo requer um plano de luta e reivindicações mais amplas que unifiquem a classe. Isso é o que as direções sindicais querem evitar a todo custo. Contrariamente ao que dizem os dirigentes sindicais, acredito que os setores mais empobrecidos da nossa classe podem ir à greve, sempre que vejam que há algo em jogo e perspectivas. Se vêem que há, ainda que seja o começo, de uma dinâmica que possa mudar a situação, poderiam entrar na luta, inclusive com o método da greve. Os que recebem os salários mais baixos, os mais precários, não vão se envolver em um movimento fraco, mas podem entrar em uma grande luta se houver uma determinação séria. A lógica estratégica que defendo é, portanto, oposta a da Intersindical”.

Por isso a política que estão impulsionando a partir desta Rede é exemplar: um abaixo-assinado exigindo que a Intersindical inclua entre as reivindicações a questão salarial como medida concreta para unir o proletariado francês. Em programa de TV, Adrien Cornet, petroleiro da Total em Grandpuits e militante do Révolution Permanente falou sobre como expandir a greve justamente levantando a questão salarial, a aposentadoria plena aos 60 anos e defendendo que os sindicatos coloquem dinheiro no fundo de greve. É sintomática a reação da ex-ministra da Saúde que fica chocada com semelhantes propostas. Estas medidas são elementos importantes para a classe trabalhadora brasileira pensar seus desafios atuais, o que passa por não esperar que as burocracias sindicais atuem, uma vez que sempre querem conter o desenvolvimento da luta. Mas sim pensar medidas concretas que possam dar passos na auto-organização (seja em cada local de trabalho seja coordenando distintos setores), na unificação da classe (pensando efetivamente qual programa levantar para unir o conjunto da classe trabalhadora e setores oprimidos) e medidas para exigir e conseguir impor que estas burocracias (que hoje contam com o apoio de setores amplos da classe trabalhadora que tem ilusão nas mesmas) se movimentem efetivamente a favor da luta. Como conclui Juan Chingo, “Hoje, quando falamos com os setores mais precários, percebemos que estes trabalhadores são contra o aumento da idade da aposentadoria, mas eles também falam sobre inflação, salários de miséria, etc. Estas questões são parte do que muitos setores estão discutindo. Neste sentido, é interessante ver como a Intersindical os trata politicamente. Eles usam a inflação para dizer que os setores mais pobres não podem fazer greve, e em vez disso propõem manifestações aos sábados. Penso que esta estratégia é um erro e que a questão deveria ser como ampliar as demandas e preparar uma greve de massa, alcançando a todos.

A esquerda brasileira diante da longa crise do NPA francês e o novo momento da luta de classes na França

O que vem ocorrendo na França tem enorme importância para a luta de classes mundial e devemos acompanhar com toda a atenção inclusive diante das incertezas de para onde seguirá este movimento. Mas especialmente para a esquerda é uma experiência nova que deveria ser examinada com toda atenção. Mas não é de se estranhar no Brasil a pouca atenção ao processo de luta de classes na França e especialmente as políticas que tem a esquerda francesa. A verdade é que a maioria das organizações da esquerda brasileira ficou bastante “perdida” diante da longa crise do NPA nos últimos anos. Como já explicamos em outros artigos o NPA surgiu da diluição da Liga Comunista Revolucionária (LCR), integrante do Secretariado Unificado, que mesmo em ruptura aberta com a tradição do marxismo revolucionário se define como “a IV Internacional”, por mais irônico que isso possa parecer. No começo dos anos 2000, a LCR literalmente queimava suas bandeiras e jogava fora a defesa da ditadura do proletariado para defender uma difusa “democracia até o final”. O surgimento do NPA em 2009 foi um salto na diluição de fronteiras entre reformistas e revolucionários. Estes, naquele momento, se propuseram a reunir os setores da classe trabalhadora, da juventude e dos movimentos de maneira independente da esquerda institucional e a adotar um programa socialista de “ruptura” com o capitalismo. A possibilidade da existência de tendências em seu interior abriu espaço para a formação de distintas correntes que, cada uma à sua maneira, defenderam seu programa e sua estratégia, entre elas os companheiros e companheiras da Fração Trotskista - Quarta Internacional na França que conformaram uma corrente dentro do NPA de bandeiras abertas, sem nunca ter defendido os princípios fundacionais do NPA (defesa de partidos amplos, sem delimitação entre reformistas e revolucionários). Desde então, nossa atuação em seu interior sempre foi lutar pela construção de um verdadeiro partido revolucionário dos trabalhadores na França.

Este processo todo de discussão política foi atravessado pelo ciclo da luta de classes na França demonstrando claramente os caminhos que se tomaram. Enquanto uma parte importante do NPA não “passava à prova” da luta de classes diretamente não intervindo nos processos de luta, nossa organização naquele momento confluiu com uma nova vanguarda operária da luta de classes francesa. Este processo se deu em meio a uma forte luta política no interior do NPA contra o avanço de suas alianças e diluição no “melenchonismo” junto a LFI como já explicamos. O ápice dessa batalha foi a candidatura de Anasse Kazib, com amplo apoio da vanguarda destes últimos anos de luta de classes no país, e buscando inclusive uma plataforma comum com os companheiros do NPA naquele momento através de um programa de independência de classes, o que não foi possível mediante os acordos reformistas que queriam manter. O resultado disso foi a exclusão de mais de 300 militantes revolucionários do NPA, incluindo essa nova vanguarda operária, que a partir disso fundaram com mais de 400 pessoas uma nova organização revolucionária na França, o Révolution Permanente. Desde o pós-guerra na França sempre existiram três tendências da esquerda revolucionária: o mandelismo, a corrente Lutte Ouvrière e o lambertismo. Nunca emergiu uma quarta corrente, trotskista, que não fosse parte do centrismo europeu, com possibilidade de atuar e impactar concretamente na vanguarda dos movimentos de luta de massas na França.E o surgimento da nova organização revolucionária na França no final de 2022 se trata exatamente disso. Por isso o caráter histórico para a esquerda internacional deste acontecimento. Vale ressaltar que essa organização decidiu em seu Congresso de fundação integrar as fileiras internacionalistas da FT-QI.

No Brasil houve um silêncio rotundo sobre este processo na esquerda francesa. Isso porque historicamente aqui as correntes que reivindicam o trotskismo sempre louvaram o NPA tal qual era. Já sabemos que é uma característica recorrente de algumas organizações da esquerda brasileira “louvar” projetos “amplos” neo-reformistas, como o caso do Syriza ou também do Podemos. Aqui vimos fotos talvez já apagadas de Luciana Genro com Alexis Tsipras do Syriza, o ajustador do povo grego, e também vimos Guilherme Boulos viajar para o Estado Espanhol para “aprender” com Pablo Iglesias do Podemos que, depois de ser humilhado nas eleições de Madri pela direita trumpista, “pediu pra sair” e se aposentou da política. Mas para debatermos o caso do NPA especificamente – que inclusive diante destes engendros neo-reformistas ainda manteve, durante sua existência até pouco tempo, fronteiras de independência de classe mais elementares – é preciso dizer que a grande maioria das correntes de esquerda sempre foi entusiasta do NPA justamente pelo seu caráter amplo. E estamos falando das correntes brasileiras que integram o Secretariado Unificado, o que em si mesmo é um capítulo à parte. Mostra da sua falta de organicidade é que não há uma “seção brasileira” do SU e sim várias correntes que decidem, sem um conteúdo muito claro, sua integração ao SU. O que pra eles, certamente, é expressão de “amplitude”, na realidade é uma mostra da decadência desta organização internacional que tem seu centro de gravidade justamente na França e, neste momento, sem ter absolutamente nenhuma iniciativa diante da luta de classes em curso.

No Brasil, a Insurgência/PSOL integra o SU, e não é claro se suas rupturas como a Subverta e a Comuna seguem integrando esta “internacional”. O MES/PSOL, que sempre está buscando algum aliado internacional para suprir sua deficiência nesse âmbito, também vem integrando o SU. Não se sabe se como “seção”, como “simpatizante” ou como “observador”, mas é o suficiente para dizerem nas notas de sua revista que são parte de uma suposta “IV Internacional”. Se durante a abertura da crise do NPA, que não é de agora, essas correntes mantiveram total silêncio, agora nem falar. Como criticar a adaptação aos reformistas na França se no Brasil estão integrando o governo Lula-Alckmin? A realidade é que não há nenhuma crítica a essa diluição do NPA, e sim a consideração de que estão indo pelo caminho correto e que aqui no Brasil significa, na prática, a integração ao regime e ao Estado brasileiro.

Mas ao contrário esta situação deveria abrir uma grande discussão entre todas as correntes que se reivindicam trotskistas, já que é o símbolo da falência dos projetos de partido amplo “anticapitalista”, ainda mais em uma situação de luta de classes aberta. Quando debatíamos as experiências do Syriza na Grécia e do Podemos no Estado Espanhol, era ainda mais evidente a armadilha do projeto neo-reformista e as consequências desastrosas dessa política que a maioria da esquerda brasileira pagou para ver e sobre as quais nunca, jamais, fez um balanço público. Qual o balanço em relação ao Syriza e seu ataque ao povo grego a mando da Alemanha, que resultou no retorno da direita na Grécia em 2019? Qual o balanço sobre a aposentadoria precoce de Pablo Iglesias que estava co-governando o Estado imperialista espanhol com os social-liberais de Pedro Sánchez e se opôs à independência da Catalunha, ficando ao lado de ninguém menos do que a reacionária monarquia espanhola? A verdade é que seria impossível combater o giro à direita da ala historicamente majoritária do NPA, de braços dados com o neo-reformista e soberanista Mélenchon, sem esses balanços políticos claros. Será por isso que essas correntes se calam sobre a “questão NPA” até hoje? O silêncio serviria para se preservarem de reconhecer os erros políticos no apoio ao Syriza e ao Podemos? Ou porque significa ter que olhar para sua própria política no Brasil que dá saltos a galope na adaptação ao regime brasileiro? Aparentemente todas as alternativas são verdadeiras.

Sem essas discussões, como é possível ter uma política internacionalista que seja revolucionária? Não é possível. Mais ainda quando justamente emerge uma corrente revolucionária na França, reconhecida por amplos setores da intelectualidade e dos movimentos sociais, inserida em bastiões estratégicos da classe trabalhadora francesa e que no último 8 de março reuniu somente em Paris, mais de 1 mil pessoas em seu bloco pela greve geral e pelos direitos das mulheres, depois de ter feito muitas atividades inclusive com a reconhecida atriz Adele Haenel que foi duramente atacada pela extrema-direita. o Congresso de fundação do Révolution Permanent contou também com inúmeros ativistas com destaque para Assa Traoré liderança da luta negra na França. Também nestes espaços viemos buscando insistentemente um diálogo com os setores da esquerda centrista do NPA para justamente debater um balanço sobre este partido e todo este processo.

Deste ponto de vista também uma das principais lições que os trabalhadores e a esquerda brasileira podem tirar do processo francês é sobre a necessidade da independência de classe e a confiança de que não são atalhos ou uma política de “mal menor” a que permitirá a emergência de uma corrente revolucionária e sim seu programa de classe, sua atuação orgânica no movimento operário, sua luta ideológica permanente e especialmente sua atuação na luta de classes. Porque se há algo que as grandes greves de massas na França hoje mostram é que esquerdas que não fazem a diferença na luta de classes são muitas e para fazer essa diferença é preciso ter programa e estratégia que sejam abertamente revolucionários. Por isso o Révolution Permanente, organização irmã do MRT na França, se coloca de corpo para fazer essa diferença na batalha por construir um partido revolucionário na França e internacionalmente que conduza a força da classe trabalhadora a vencer a batalha contra as burguesias nacionais e construir uma nova sociedade, socialista, sobre as ruínas do Estado capitalista.


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FOOTNOTES

[1Sexto maior grupo de exploração de petróleo e gás do mundo.

[2Este partido implementou medidas de ataques ao movimento de massas com François Hollande que desencadeou uma importante crise do próprio partido.
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São Paulo | @dianaassuncaoED
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