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O retrato da Guerra Civil Espanhola sob a voz de Rolando Alarcon

Noah Brandsch

O retrato da Guerra Civil Espanhola sob a voz de Rolando Alarcon

Noah Brandsch

Em processos revolucionários e de intensa luta de classes, é comum vermos uma subversividade e uma reviravolta em diversos aspectos culturais e de costumes, desde os relacionamentos amorosos até a arte. O presente artigo busca fazer um retrato da Guerra Civil espanhola sob a voz do artista chileno Rolando Alarcon.

Certamente, a Guerra Civil Espanhola, ou Revolução Espanhola, teve uma grande importância para uma série de fatores, desde a geopolítica internacional pré guerra, passando pela formação social, econômica e política da Espanha e suas áreas de influência, até para a esquerda e o movimento operário. Esse impacto chegou, evidentemente, à arte e à cultura, inclusive pelo extenso e profundo desenvolvimento cultural que decorreu junto à própria revolução; e a música não pôde passar por fora disso.

Neste texto, iremos analisar o álbum de Rolando Alarcón, gravado em 1968, com 10 canções, chamado Canciones de la Guerra Civil Española; e posteriormente reeditado em 1997 e 2001 com algumas modificações e novas canções. Destrinchando as canções e apontando o possível sentido de se regravar tais músicas no momento em que foram gravadas.

Antes de mais nada: quem era Rolando Alarcón e o que foi a Guerra Civil Espanhola?

Alarcón, entre várias coisas (como professor, escritor, ativista social e poeta), era um cantor chileno, nascido em 5 de agosto de 1920 em Santiago, e falecido em 4 de fevereiro de 1973, ano do golpe de Estado de Pinochet. Com sua voz e seu violão, foi autor de 17 álbuns em vida, e 16 álbuns póstumos, e foi um dos representantes da chamada Nueva Canción Chilena. Começou sua carreira artística em 1955, com seu primeiro álbum em 1960, e formando seu próprio selo musical em 1968. Era um ativista social de esquerda e foi simpatizante e seguidor do Partido Comunista Chileno, e em 1972, durante o governo Allende, foi designado como assessor musical do Ministério da Educação.

A Revolução Espanhola, resumidamente, foi um processo que se deu no pré Segunda Guerra Mundial. As tensões acumuladas desde a formação do Estado Espanhol foram se agudizando. Com a monarquia apoiada em uma nobreza fundiária e aristocrática, a Igreja Católica detendo quase metade das terras e exercendo uma forte influência política, ligado ao desenvolvimento de uma débil burguesia fragmentada, à uma colonização de Marrocos que custou vários anos e esforços, e a uma forte influência do Exército que se colocou como um “árbitro” por cima das classes, e com sua espada unificou o Estado sob a monarquia e foi central para sua estabilização (inclusive, com o golpe de Estado do Primo de Rivera em 1923), cumprindo também um papel central na colonização e ocupação de Marrocos. E por outro lado, uma forte concentração do proletariado nas cidades e uma imensa população camponesa insatisfeita. A época imperialista do capitalismo e os resquícios da Primeira Guerra, agudizados com a crise de 1929, colocaram revolução e contrarrevolução cara-a-cara em diversos países, como a Alemanha, França, Áustria, e sobretudo na Espanha.

Em 1931, uma onda de mobilizações e greves derrubam a monarquia e é proclamada a Segunda República Espanhola, com a coalizão dos socialistas e republicanos burgueses à frente. As imensas reivindicações do povo espanhol não foram atendidas, como a reforma agrária, a separação entre Igreja e Estado, e a autodeterminação do povo basco, catalão e também marroquino, que vivia sob um Protetorado. O reflexo disso foi a canalização da insatisfação para a direita, que saiu vitoriosa nas eleições municipais de 1933, com a Falange (organização fascista criada por Primo de Rivera) e a CEDA (Confederação Espanhola das Direitas Autônomas) se fortalecendo. A crise política e social teve um salto de qualidade com a insurreição em todo o país em 1934, organizada pelas Alianças Operárias, e que teve sucesso em uma província mineira no norte do país, formando a Comuna das Astúrias por duas semanas, porém que foi reprimida pela própria República com a Guarda Nacional e com o Exército, nesse momento já comandado por Franco, e com um forte contingente de tropas marroquinas.

Nas eleições seguintes, em 1936, a coalizão da Frente Popular (com o PSOE, PCE, partidos burgueses republicanos e tendo sua ala esquerda no POUM) ganhou as eleições. Alguns meses depois, os militares fascistas, representando a grande burguesia, deram um golpe de Estado, iniciando a guerra civil.

A guerra é colocada por grande parte da historiografia como “fascistas/monarquistas vs. republicanos”. De fato, a República sofreu um golpe, e a Frente Popular, que era governo, se colocou contra ele. Entretanto, o que profundamente estava em questão era um lado revolucionário, com o proletariado expropriando e tomando o controle de fábricas e empresas, formando milícias de autodefesa, conselhos próprios, os camponeses fazendo a reforma agrária na força, e surgindo como um sujeito independente para influenciar político, econômico e socialmente. A classe trabalhadora, entretanto, estava sob direção da Frente Popular e dos anarquistas (que posteriormente também integraram ao governo), que tinha como estratégia a defesa do Estado Espanhol, e disputavam para integrar os comitês, milícias e conselhos independentes ao regime burguês, atando o lado revolucionário. Esse foi um dos motivos pela derrota militar do lado “republicano”, que representava muito mais do que um “regime República”, significava o germe de uma sociedade fundada sobre outras bases.

Toda essa energia revolucionária se materializava, também, em diversas canções, muitas de autores desconhecidos, que eram cantadas nos campos de batalha, nas greves e na revolução. O fato do álbum Canciones de la Guerra Civil Española ter sido gravado em 1968 é bem significativo, pois internacionalmente foi um ano com fortíssimas convulsões sociais e luta de classes, e com uma forte revolução artística também, se pensarmos, por exemplo, o Maio Francês, a Primavera de Praga, a luta dos estudantes no México, até os anos de chumbo no Brasil. Rememorar essas músicas revolucionárias em meio à tal período remonta que existem fios de continuidade em relação à memória, mesmo que mais subjetivamente, e os momentos em que vivemos na atualidade.

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A primeira das 10 músicas do álbum é uma das mais conhecidas, chamada Si Me Quieres Escribir, também conhecida como El paso del Ebro, se refere à Batalha del Ebro, uma das maiores e mais sangrentas batalhas da guerra, que durou quase todo o semestre de 1938. A batalha foi uma das últimas da guerra, e a vitória franquista nela deu espaço para a dominação da Catalunha pouco depois, um dos bastiões do exército republicano e da revolução. A canção, basicamente, conta sobre o “paradeiro” do soldado: ele está na linha de frente, na batalha, lutando contra os mouros (marroquinos, que compunham a maior parte do exército franquista).

El Quinto Regimiento, a segunda música do álbum, conta sobre as batalhas do tal na defesa de Madri contra os fascistas. O Quinto Regimento foi um dos regimentos das milícias operárias e populares, nesse caso impulsionada pelo Partido Comunista, que se formavam a partir das greves e ocupações de fábricas, e enfrentavam as tropas fascistas. O Quinto Regimento atuou em Madri, e em janeiro de 1937 ela foi dissolvida pelo PC e passou a integrar o Exército Popular Republicano, atrelado ao Estado e ao regime burguês.

Outras músicas, como El Tururururu, Los Quatro Generales e No Pasaram, também contam sobre as batalhas dos milicianos contra os fascistas, principalmente em Madri. O interessante de tais músicas é a ênfase, por um lado, na bravura e no heroísmo dos combatentes que enfrentam Franco e, por outro, sobre como as batalhas são travadas contra os mouros. Este elemento de combate aos marroquinos é certamente contraditório, pois se tratava de uma população que era oprimida e explorada pela burguesia espanhola, mas, que por falta de uma direção política (e isso se deve principalmente à Frente Popular, que não levantava nenhuma demanda de libertação nacional marroquina em seu programa), ficava a mercê de suas direções nacionalistas e colaboradoras com o franquismo. Além do mais, o fator central para a vitória fascista não foi apenas o aspecto militar, mas o aspecto moral das tropas também: por um lado, a desmoralização da integração das expropriações, conselhos e milícias operárias e camponesas ao Estado burguês do lado republicano, e a não desmoralização das tropas franquistas (principalmente mouras), por outro. Levantar um programa que libertasse a população marroquina e unificasse a classe trabalhadora da colônia e da metrópole era central para desmoralizar as bases militares (que se baseavam em aspectos políticos) franquistas era central para a vitória da revolução.

Outra música famosa é ¡Ay, Carmela!/Viva La Quince Brigada. Ela foi inicialmente composta e interpretada pelos soldados que lutaram contra a ocupação francesa na guerra de independência espanhola (1808-1814), e foi recriada por soldados republicanos durante a Guerra Civil Espanhola, reivindicando a décima quinta Brigada Internacionalista (brigadas de voluntários que vinham de diversos países lutar contra os fascistas). Essa música foi uma das mais reeditadas e regravadas por diversos autores e cantores, e também carrega a contradição de colocar um combate aos mouros.

No álbum também estão presentes músicas, como Las Morillas de Jaén, Dime Donde vas Morena, Eres Alta y Delgada e Nubes y Esperanza. Estas não trazem diretamente o sangue, o heroísmo e o calor das batalhas, e muitas se tratam de romances que possivelmente ocorreram durante o processo revolucionário, mas todas também estão intrinsecamente ligadas ao processo revolucionário em curso. A primeira delas foi escrita por Federico García Lorca, conhecido como o “Poeta da Revolução”, e pelo que comentadores dizem, se trata de alguma metáfora mais profunda sobre “a busca de algo”. A segunda, coloca a necessidade de, inclusive as mulheres, empenharam fuzis e lutarem contra os fascistas (algo que foi proibido pela Frente Popular em seu exército, ao contrário das milícias operárias e populares, que contavam com as mulheres na linha de frente). A quarta delas também traz uma metáfora, de uma estrela como esperança.

No final do século XX e bem no início do XXI, o álbum foi reeditado. O interessante é que, nesse momento, assim como em 1968, havia grandes mobilizações e uma grande convulsão social, em especial na América Latina, como na Bolívia, Argentina e Venezuela. Isso retoma a ideia de que a memória faz parte da constituição do presente, e nas artes isso se expressou com a reedição deste álbum que trazia essa lembrança de um processo revolucionário e de luta. Nessas reedições, foi incluída uma das músicas mais famosas da Revolução: A La Huelga, que significa "para a greve".


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Noah Brandsch

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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