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CINEMA | Os relatos selvagens de cada dia

domingo 28 de dezembro de 2014 | 21:23

Uma sociedade onde o indivíduo é o centro de tudo; um mundo onde todos são cobrados o tempo todo para serem “vencedores”; uma existência em que o peso da burocracia e da corrupção estatal esmaga qualquer possibilidade de vida; as regras, as convenções, a hipocrisia. Enfim, a impossibilidade de existir sem que nos tornemos vítimas e algozes, sem o confinamento à camisa de força de um mundo em que somos meras engrenagens de um mecanismo sórdido, e que, mais dia menos dia, pode nos levar à loucura, à destruição de nós mesmos e daqueles que nos cercam. É o retrato disso tudo que nos traz a mais recente obra prima do cinema argentino, “Relatos Selvagens”.

Em uma série de seis curtas metragens, os temas do ódio, da loucura, da violência e a relação do indivíduo com a sociedade são sintetizados em histórias breves, mas que conseguem retratar com habilidade como cada um de nós está sujeito a “quebrar” sob o peso de um mundo, este sim, completamente selvagem e desumanizante.

Gabriel Pasternak, músico frustrado, incapaz de estabelecer relacionamentos bem sucedidos, uma e outra vez humilhado por professores, colegas, jurados de concurso, impossibilitado de pagar por sua análise, submetido a problemas por conta da sua relação com os pais. Sem nunca colocar o protagonista da história em cena, e num episódio de poucos minutos, somos levados a rir da triste história de Pasternak e da cruel vingança que ele planeja contra o mundo que lhe ofereceu tanto desprezo, tal como os emblemáticos jovens de Columbine que fuzilaram seus colegas de escola e lançaram uma verdadeira “tendência” nos EUA, que rapidamente se espalhou pela sociedade ocidental, onde o indivíduo e o sucesso cobram seu preço na mente daqueles que não se encaixam. A morte e o homicídio são a expiação pelo pecado de uma sociedade onde não se tem valor se não por quanto se vale, quanto se ganha, o que se tem. O ódio do mundo é um vulcão pronto a entrar em erupção; a violência represada em uma vida de rejeição e fracassos explode numa violência contra o outro, visto como o agente dessa humilhação de não ser aceito, e contra si mesmo, incapaz de sobreviver nesse meio.

É recorrente isso em “Relatos Selvagens”: o riso da tragédia, apresentada de forma cômica ao espectador. O riso nervoso e amarelo, o riso de nós mesmos e da sociedade doentia em que vivemos. Um riso que pode levar o espectador que vai ao cinema em busca de puro entretenimento satisfeito, saindo do cinema para tocar sua vida, sem saber que aquele filme fala dele, de seus amigos, familiares, vizinhos; de seu mundo cotidiano. Mas, para quem tome o filme com um pouco mais de seriedade, é um riso que gera a inquietação de ver o ponto a que esse mundo nos conduz. De saber que nenhum de nós está imune de ser a vítima que, logo na próxima esquina, pode se deparar com a gota d’água em uma vida que consome a cada momento o que temos de sensível, de tolerante, de altruísta. Em que nos transforma o lema ainda vigente do “cada um por si”?

Talvez possamos encarar os episódios de “Relatos Selvagens” como uma paródia, um exagero do que vemos todos os dias. Mas o exagero é aparente. Se o olhar superficial pode remeter a uma hipérbole dos conflitos cotidianos, um exame de nosso mundo verá que não há ali exagero algum. Aquela é a vida que vivemos, nua e crua, exposta a nós.

Podemos nos tornar homicidas, terroristas, pessoas amargas e vingativas, suicidas? Aquele que responde sem pestanejar que nenhuma dessas coisas nunca lhe passou pela cabeça provavelmente está mentindo ou negando a si mesmo. Que há em todos nós impulsos perversos é algo difícil de negar. Mas a questão fundamental não é essa, mas sim o que fazemos de nossos impulsos, e onde e como eles se criam e se transformam. Em quê? Para quê? Seria absurdo pensar que isso não está relacionado ao outro, a como nos relacionamos em sociedade. E é justamente aí que está o nó que liga todos os episódios de “Relatos Selvagens”. Em como a sociedade capitalista é capaz de elevar à última potência o que há de mais nefasto em nós; de nos distanciar do outro como o inimigo, ou de nos tornar sua presa fácil.

Quem sabe é o seu “final feliz” o que nos demonstra com mais precisão, com sua alegoria, as soluções que o mundo em que vivemos dá ao conflito. O episódio denominado “Até que a morte nos separe” retrata fielmente o que é o casamento em nossa sociedade. Um poço de frustrações, um mundo de aparências. As famílias burguesas, como as dos protagonistas, gastam milhões em festas extravagantes para convencer, a si mesmo e aos demais, que ali está o marco inicial do “felizes para sempre”. O sonho da família, da propriedade e da herança tem ali o seu alicerce sólido, o marco onde irá se edificar o sucesso do indivíduo e de seus entes queridos.

Mas é pura hipocrisia. A traição, o jogo de poderes, o contrato de propriedade continuam, ontem, hoje e sempre, sendo o marco da família burguesa. Há salvação para ela? O filme dá sua resposta. A salvação para a família, bem como para qualquer dos dramas retratados pelo filme, é a repressão, a aceitação das coisas tal como elas são, a manutenção da hostilidade velada, sempre a ponto de explodir de forma brutal e selvagem sobre nosso semelhante, que é visto como o culpado por todos os nossos males. Essa explosão, presente na maioria dos episódios, pode levar a diferentes resultados: a prisão, a morte, a um “final feliz” onde todos saiam bem. Mas, de qualquer maneira, o filme é bem sucedido em demonstrar que nada está resolvido. Seja qual for a saída que se dê, e mesmo para aqueles que resolvem seus problemas enterrando eles numa montanha de dinheiro, como a família que compra seu jardineiro para assumir o homicídio praticado pelo filho, nada ali está resolvido. O casamento continua, infeliz por décadas a fio, terminando em divórcio, violência, morte ou frustração; o crime, enterrado no suborno da polícia e do peão, continua vivo e atormentando o assassino.

Uma sociedade que quer fingir que não existe a violência, o ódio, que quer exigir dos seus membros que resolvam tudo com o mito do sucesso individual, com as pílulas mágicas da indústria farmacêutica, ou com qualquer outra “cura milagrosa”, enquanto vira a cara para os milhões (bilhões?) que “não se adaptam” de uma forma ou de outra, nunca poderá oferecer histórias menos cruéis do que esses relatos selvagens. Vivemos, ainda, como dizia Marx, "a pré-história da humanidade", com suas históroas bárbaras e selvagens, que são o pão com manteiga da vida cotidiana. E, na melhor das hipóteses, se poderá rir deles, fingindo que se tratam de histórias absurdas, exageradas, inventadas, que nada têm a ver com a feliz vida que levam em sua sociedade de consumo “cor-de-rosa” onde todos podem se realizar com um pouco de trabalho e esforço.


Temas

Cinema    Cultura



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