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Palmares e o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo brasileiro

Noah Brandsch

Palmares e o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo brasileiro

Noah Brandsch

A história do Quilombo de Palmares, que perdurou durante boa parte do século XVII, sempre foi um tema emblemático para a historiografia, bem como para o imaginário popular e para as correntes políticas de esquerda. Com uma população majoritariamente negra, a ideia dos escravizados se levantando contra os senhores de engenho é fantástica. Entretanto, qual foi a influência de Palmares para a formação do capitalismo brasileiro? Vamos tentar elencar alguns pontos e tirar algumas conclusões.

Primeiramente, busquemos algumas definições sobre como a colonização brasileira se insere no desenvolvimento do mercantilismo, e depois do capitalismo. Começando por um dos maiores analistas do capitalismo, Karl Marx, no capítulo 24 d’O Capital sobre o desenvolvimento e o sentido da colonização:

“A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfrentamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marca a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato seque a guerra comercial das nações europeias, tendo o mundo por palco.” [1]

Da mesma forma, Caio Prado, em A Formação do Brasil Contemporâneo, aponta que o sentido da colonização brasileira foi a vasta exploração agrária para a exportação e acumulação primitiva de capitais na metrópole, bem como a utilização da mão de obra escravizada nas lavouras e engenhos. Desse modo, desde as capitanias hereditárias, o território que viria a ser o Brasil estava baseado no grande latifúndio e pautado para a produção externa, subordinado às metrópoles e ao imperialismo na formação da divisão internacional do trabalho e da constituição das classes, o que fez com que, desde seu início, a burguesia se desenvolvesse a partir do campo. Como mostram Mário Pedrosa e Lívio Xavier em seu Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil:

“Desde a sua primeira colonização, o Brasil não foi mais que uma vasta exploração rural tropical. A coroa de Portugal repartira as terras por seus serviços e fidalgos, e assim, sob a forma de um ‘feudalismo particular’, criou-se o monopólio dos grandes senhores de terra. Não houve aqui terra livre, não se conheceu aqui o colono livre, senhor dos meios de produção. O pequeno proprietário não pode desenvolver-se, na formação econômica do Brasil. O Estado brasileiro organizou-se com um rígido esquematismo de classes e repousou na exploração do braço escravo pela minoria de senhores de terra. Trabalho escravo, propriedade latifundiária, aristocracia rural, constituída aos azares do favoritismo da metrópole, na caça ao índio e do tráfico negreiro, imprimiram cunho particular à formação histórica do Brasil na América Latina, onde, em geral, a ausência da agricultura organizada acarretou a luta do colono pela terra, contra o índio e contra o monopólio da coroa espanhola. Numa sociedade assim constituída não há lugar para um desenvolvimento ponderável da classe dos pequenos proprietários (camponeses independentes) e podem-se considerar desprezíveis historicamente a burguesia urbana e a camada de trabalhadores livres, tão insignificante é o seu papel na produção nacional. A burguesia brasileira nasceu no campo e não na cidade. A produção ligou-se umbilicalmente ao mercado externo. [2]

Bem como, na economia açucareira do Nordeste, que dava o sentido da colonização naquele momento (pela exportação de açúcar), e região na qual os palmarinos formam o quilombo durante quase um século, a mão de obra escrava era indispensável e os colonos dependiam de sua importação do continente africano através do tráfico negreiro. Como sinaliza Celso Furtado, em Formação Econômica do Brasil:

“Assim, enquanto na região açucareira dependia-se da importação de mão de obra e equipamentos simplesmente para manter a capacidade produtiva (...)” [3]

A importação da mão de obra negra dependia dos sequestros na África, para Portugal, principalmente em Angola. O que estava também em disputa com outras potências marítimas que buscavam seu espaço na formação desse novo sistema, como a Holanda, expresso nas guerras luso-holandesas nas duas costas da África e no Nordeste brasileiro. Ali se disputava diretamente a mão de obra negra que seria chicoteada nas terras coloniais e nos engenhos portugueses e holandeses, “levando sua experiência sul-americana de combate para consolidar a expansão negreira na África Centro-Ocidental” [4], e vice versa. “Faziam valer seus talentos de bugreiros e capitães do mato nos dois lados do mar”. [5]

A partir dessa breve análise, podemos afirmar que se consolidavam dois pontos centrais para os que lucravam com a colonização: a terra e a mão de obra escravizada. Palmares se antagonizava centralmente nesses dois pontos.

Um aspecto que Luiz Felipe de Alencastro desenvolve em seu artigo Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica é a relação dos militares e milicianos que serviam à Coroa nas guerras na África e em Palmares nesse mesmo período. Diversos comandantes e governadores do Nordeste, conhecidos pela repressão e caça aos índios e quilombolas (incluindo Palmares), são convocados para as batalhas em Angola e outros reinos africanos entre os anos de 1640-70. Da mesma forma, os interesses das diversas patentes militares era de, depois de vencidas as batalhas, sua recompensa: a divisão dos presos (escravizados) e um pedaço de terra da região conquistada.

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Os paulistas, dirigidos pelo bandeirante Jorge Velho, também se incorporaram em diversas expedições, a mando do Conselho Ultramarino, que durante os anos de 1670-90 “reservara grande atenção às medidas ‘para se extinguirem estes negros de uma vez’ " [6], fortalecendo a ideia de integração dos territórios, e reivindicando seus interesses econômicos e comerciais em relação à terra e aos escravos prisioneiros. Esse aspecto tem uma relação direta com o fortalecimento do aparato militar e a posterior formação do Estado brasileiro, que desde o Império, passando pela República da Espada e pelas ditaduras militares, até os dias de hoje, sempre teve os militares como peça central. Nesse caso, se fortaleceram sob a defesa da propriedade da terra e da repressão sob os que viriam a constituir a maior parte do proletariado brasileiro.

“Nem todos os combatentes transitando pelo mar meridional participaram em todas essas batalhas. Mas todos contribuíram para difundir os métodos de guerras tropicais, rações militares compostas de mandioca, milho e cachaça, práticas escravistas e hábitos culturais do Arquipélago de Capricórnio, núcleo da formação do Brasil contemporâneo.” [7]

O quilombo dos Palmares ocupava grande parte do território do atual estado de Alagoas, na região da serra da Barriga, e atacavam os dois pilares da colonização: a terra, pois a ocupavam com outra relação, de tipo comunitário e não de exploração selvagem para os lucros do senhor de engenho e da metrópole; e a mão de obra, pois eles mesmos eram a mão de obra que se revoltava, fugia, queimava engenhos e libertava senzalas.

Durante toda a segunda metade do século XVII, a Coroa e os senhores de engenho tentavam destruir Palmares, até finalmente conseguirem em fevereiro de 1694 com a chegada de 6 canhões contra os palmarinos, após a vitória de Zumbi em 1692 e a rebelião contra o ex-líder Ganga Zumba que havia negociado um tratado de paz com a Coroa em 1678. Zumbi, que resistia com outros palmarinos que haviam sobrevivido, ainda é assassinado 2 anos depois, em 20 de novembro de 1695.

“Palmares continuaria a ameaçar a colônia, como marca maior da resistência negra no imaginário das autoridades. Palmares era entendida, pelas autoridades coloniais, como a mais forte ameaça da resistência negra, sendo sempre necessário evitar que novos Palmares surgissem." [8]

Partindo desta citação de Luiz Felipe de Alencastro podemos desdobrar duas reflexões, como parte da resposta à pergunta central da razão pela qual Palmares era visto como a principal ameaça ao que podemos chamar de "sentido da colonização” no Brasil. Já abordamos o duplo enfrentamento às estruturas da colônia, no âmbito da propriedade da terra e da propriedade escrava, mas é importante demarcar que:

a) A resistência palmarina não se bastava enquanto resistência, na verdade a importância dada pela Coroa no combate a Palmares advinha principalmente do fato daquela organização societária de negros insurretos constituir um poder político centralizado, preparado para a guerra e que buscava atacar os pilares da sociedade colonial. Ou seja, estamos falando sobre uma disputa à altura sobre os rumos do desenvolvimento da sociedade, à dizer se prevaleceria o latifundio e a escravidão negra, ou se a revolta e organização dos escravizados poderia dar luz a um retrocesso do sentido da colonização, seja por Palmares, ou pelo surgimento de novos quilombos inspirados na força palmarina.

b) Isto se liga a um segundo elemento, reforçando a característica do desenvolvimento desigual e combinado no que chamamos hoje de Brasil, de que mesmo após a derrota de Palmares a burguesia brasileira compreendeu uma contradição latente de seu projeto colonial. Ao passo em que aumentava o contingente de negros sequestrados do continente africano para trabalhar forçadamente em suas lavouras, a burguesia criava assim, dialeticamente, seu próprio coveiro (ou coveiros), que posteriormente viriam a se irmanar das ideias do haitianismo, com os ex-escravos que enforcaram seus “senhores”, aboliram a a escravidão e formaram uma república negra na América, conquistando a independência derrotando nada menos do que o exército de Napoleão. Este fantasma assombrou a burguesia nos dias de então, e esta herança à assombra até os dias de hoje.

Talvez um exemplo emblemático disso seja, quase um século depois, o exemplo de Tiradentes:

“o medo das elites da colônia e do império em relação aos negros, em contínuo estado latente e por vezes aberto de rebelião, fez com que estas fugissem – como o diabo da cruz – da possibilidade de armar as massas para uma genuína luta de independência nacional, restando saídas sempre conciliadoras com os impérios (...) Sob a pressão imperialista e o medo da revolta escrava e negra, se formava uma semicolônia, estruturalmente incapaz de encarar de forma minimamente séria qualquer uma das demandas democráticas estruturais ou formais mais sentidas do país.” AFONSO, Daniel; MATOS, Daniel (orgs.), Questão negra, marxismo e classe operária no Brasil. São Paulo, Edições Iskra, 2013., pág. 60

Dessa forma, vemos que a constituição das classes no Brasil se desenvolveu de forma que a burguesia nasce subordinada à metrópole, e negando o direito à terra e à liberdade ao povo negro, futuro proletariado brasileiro, que ao mesmo tempo a amedrontava. A burguesia brasileira nasce pautada no latifúndio, covarde e espremida entre a metrópole/o imperialismo e a potência disruptiva das massas negras e do proletariado.

Bibliografia:

1. CARNEIRO, Edison, “Os negros no quilombo”, O quilombo dos palmares. São Paulo, CEN, 1958 (1947)

2. ALENCASTRO, Luiz Felipe de, “Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica” in: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2021

3. AFONSO, Daniel; MATOS, Daniel (orgs.), Questão negra, marxismo e classe operária no Brasil. São Paulo, Edições Iskra, 2013.

4. XAVIER, Lívio; PEDROSA, Mário, “Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil” e “Projeto de Teses Sobre a Situação Nacional” In: ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS, Dainis (orgs). Na Contracorrente da História - Documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. São Paulo, Editora Sundermann, 2015.

5. FURTADO, Celso, Formação Econômica do Brasil. São Paulo. Cia. Editora Nacional, 2000.

6. MARX, Karl. “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” In O Capital, Volume I. São Paulo, Editora Ltda. 1996.

7. PRADO JR., Caio, Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Cia. das Letras, 2011


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FOOTNOTES

[1MARX, Karl. “A Assim Chamada Acumulação Primitiva” In O Capital, Volume I. São Paulo, Editora Ltda. 1996., pág. 370

[2XAVIER, Lívio; PEDROSA, Mário, “Esboço de uma Análise da Situação Econômica e Social do Brasil” e “Projeto de Teses Sobre a Situação Nacional” In: ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS, Dainis (orgs). Na Contracorrente da História - Documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. São Paulo, Editora Sundermann, 2015., pág. 130

[3FURTADO, Celso, Formação Econômica do Brasil. São Paulo. Cia. Editora Nacional, 2000., pág. 63

[4ALENCASTRO, Luiz Felipe de, “Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica” in: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2021, pág. 47

[5ALENCASTRO, Luiz Felipe de, “Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica” in: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2021, pág. 63

[6ALENCASTRO, Luiz Felipe de, “Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica” in: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2021, pág. 54

[7ALENCASTRO, Luiz Felipe de, “Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica” in: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2021, pág. 54

[8ALENCASTRO, Luiz Felipe de, “Palmares: batalhas da guerra seiscentista sul-atlântica” in: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.), Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 2021, pág. 45
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Noah Brandsch

Estudante | Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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