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Para além da "Restauração burguesa": 15 teses sobre a nova etapa internacional em contraponto com Maurizio Lazzarato

Matías Maiello

Emilio Albamonte

Para além da "Restauração burguesa": 15 teses sobre a nova etapa internacional em contraponto com Maurizio Lazzarato

Matías Maiello

Emilio Albamonte

O texto que publicamos abaixo foi apresentado como contribuição de Emilio Albamonte e Matías Maiello para os debates da próxima conferência da Fração Trotskista para a Quarta Internacional – que promove a Rede Internacional de La Izquierda Diario – que será realizada nos próximos meses.

A seguir vamos desenvolver algumas definições e debates em torno da nova etapa que se abriu na conjuntura internacional e no funcionamento do capitalismo atual, que consideramos relevantes para pensar as perspectivas da revolução. Para isso, faremos um contraponto com as teses do sociólogo e filósofo Maurizio Lazzarato. Autor que, principalmente nos últimos anos, tem dedicado sua produção a debater a guerra, o fascismo e a estratégia revolucionária, em livros como O capital odeia todo mundo (2019); Guerras e capital (2021) com Éric Alliez; Você se lembra da revolução? (2022); e Guerra ou Revolução. Por que a paz não é uma alternativa (2022).

Em seu momento, Daniel Bensaïd assinalou que após a derrota do ascenso de 68, se iniciou um movimento de retirada e deserção do campo estratégico; nela, Foucault e Deleuze apareciam como expressão do "grau zero da estratégia". [1]. Porém, também é fato que ambos os autores dedicaram parte de suas obras a pensar, a seu modo, os problemas da guerra e, para isso, discutiram a teoria de Carl Clausewitz. Lazzarato posiciona-se criticamente sobre esses autores aproveitando-se dessa segunda via e aponta, por exemplo no caso de Foucault, que: “Sua posição é única, original, mas desvaloriza e despreza a tradição estratégica revolucionária do século XX (Lênin, Trotsky, Luxemburgo, Mao, Giap) que é o único capaz de se colocar no nível de um Clausewitz, continuando e inovando radicalmente conceitos que, no general prussiano, são analisados ​​apenas do ponto de vista do Estado” [2].

Lazzarato tem o mérito de colocar esses debates no centro. No entanto, as suas conclusões prendem-se com um certo "senso comum" que tende a apresentar a situação em termos de fascismo e guerra, não mais como uma perspectiva possível mas como uma realidade atuante no presente, o que leva a confundir os ritmos, diluindo a características distintivas da situação atual e, sobretudo, obscurecer o horizonte do que "está por vir" e a questão, central para os revolucionários, da preparação necessária para esses eventos. Neste quadro, está prevista uma série de debates estratégicos que iremos rever de acordo com cada uma das teses. Um fio condutor destas páginas, do ponto de vista conceitual, será a necessidade de recuperar (criticamente) a fórmula da guerra de Clausewitz como continuação da política por outros meios – que desde a década de 1970 vem sendo questionada desde múltiplos ângulos –, para abordar alguns dos fenômenos que atravessam a conjuntura internacional.

[PARTE I]

“GLOBALIZAÇÃO” E GUERRA. A CONTINUAÇÃO DA POLÍTICA POR OUTROS MEIOS

Tese I. A guerra na Ucrânia difere de todas as guerras das últimas três décadas e coloca o início de um questionamento aberto (inclusive militar) da ordem mundial estabelecida a partir da “restauração burguesa”.

Em um artigo de 2011, “Nos limites da ‘Restauração burguesa’” [3], analisamos a ofensiva neoliberal (que incluiu a queda do Muro de Berlim e a restauração capitalista nos países onde a burguesia havia sido expropriada) como uma terceira etapa da era imperialista, marcada pela ausência de revoluções – uma vez derrotado o ascenso da luta de classe dos anos 70 [4] – e, nesse sentido, comparável às décadas sem revoluções que se seguiram à derrota da Comuna de Paris no século XIX.
Quanto à guerra, a etapa da "restauração burguesa" foi atravessada por uma primeira leva de conflitos que incluiu a guerra da Bósnia (1994-95), a guerra do Kosovo (1998-99), a guerra do Golfo (1991), entre outras, que tinha como característica distintiva a hegemonia indiscutível dos EUA e da OTAN. Tanto que muitos viram a ação do imperialismo como uma espécie de “polícia do mundo”. Com o 11 de setembro, o pior atentado em solo americano, o cenário de guerras apresentadas como “humanitárias” muda e Bush inicia a chamada “guerra contra o terrorismo” como forma de reconstruir a liderança imperialista dos EUA. Uma guerra com inimigos difusos – que incluiu medidas internas (Lei Patriota) – e que deu origem, antes de tudo, à guerra no Afeganistão (2001), onde os EUA conseguiram reunir uma ampla coalizão internacional em seu apoio. Uma mudança importante já ocorreu com a guerra no Iraque a partir de 2003, quando os EUA encontraram a oposição da Alemanha, França e Rússia no Conselho de Segurança da ONU para lançar a invasão apresentando uma divisão significativa. Todas essas guerras buscaram inicialmente consolidar e, após o 11 de setembro, recompor a ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, embora a partir do Iraque em 2003 tenha se iniciado um processo de degradação desse esquema.

Num ponto limite desta situação, poderíamos situar as intervenções imperialistas após a eclosão da Primavera Árabe na Líbia (2011) e na Síria (2014) onde se verificam mudanças significativas. Os EUA intervieram na Líbia com relutância – sobrecarregados com os impasses no Iraque e no Afeganistão – sob o preceito bizarro de “liderar desde os bastidores”. Especialmente na Síria, já se percebe claramente como, a partir do recuo hegemônico da potência norte-americana, diferentes atores regionais vão intervir "por procuração" na guerra com seu próprio jogo e, no caso da Rússia, diretamente em apoio a Al-Assad. A conquista da Crimeia pela Rússia em 2014, que não chega a ser uma guerra no sentido pleno do termo devido à pouca resistência encontrada pelo exército de Putin (mesmo parte dos comandantes ucranianos ali baseados – treinados na Rússia – passaram para o outro lado), já antecipa uma transformação que se concretizará com a guerra na Ucrânia iniciada em 2022. Esta última representa uma mudança histórica fundamental: marca, para além dos ritmos que não serão necessariamente lineares, o início de um questionamento (militar) aberto da ordem mundial dos últimos 30 anos, neste caso pela Rússia, mas onde a China surge como a grande potência “revisionista” – que põe em causa a hegemonia (em declínio) dos EUA – da atualidade.

Em um livro recente, Guerra ou Revolução. Porque a paz não é uma alternativa, Lazzarato assinala que: “Para os revolucionários da primeira metade do século XX, o capitalismo era inconcebível sem guerra entre Estados, sem guerras civis contra o proletariado, sem guerras de conquista. Ao contrário da nossa consternação e perplexidade, este grande realismo político permitiu-lhes não ficar surpreendidos ou despreparados com a eclosão da Grande Guerra” [5]. Embora naquela época essas considerações só pudessem ser aplicadas a um pequeno grupo de revolucionários, o contraste que Lazzarato marca com o estágio atual é evidente. Nesse sentido, voltar a refletir profundamente sobre a relação entre a guerra e a política – uma questão que tentamos fazer com Estratégia Socialista e a Arte Militar – é cada vez mais essencial. Lazzarato também o propõe ao retomar criticamente as leituras de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre Clausewitz, daí o contraponto que se segue. Como repensar a relação entre guerra e política após décadas de neoliberalismo e “restauração burguesa”?

Tese II. O avanço relativamente pacífico da ofensiva neoliberal por várias décadas baseou-se na ampliação da democracia capitalista e no “pacto social neoliberal” (elitista, mas que incluía setores de massa por meio do consumo, do crédito etc.). Hoje ambos os pilares da hegemonia burguesa estão em crise estrutural.

A explicação de Foucault sobre o neoliberalismo proferida em suas palestras no Collège de France em 1979, publicada como O Nascimento da biopolítica, tem uma influência importante entre a intelectualidade até hoje. Sobre ela nos deteremos brevemente, pois perpassa diversos debates que abordaremos. Para o filósofo francês, o nascimento da biopolítica está inscrito na matriz governamental do liberalismo. A partir do século XIX, ocorre uma transformação crucial da governamentalidade moderna por meio da introdução da economia política como princípio de limitação da ação do governo, que só pode fazer "o que deve fazer" se respeitar as leis "naturais" da economia.

Para fundamentar essa conclusão, Foucault fará um percurso que vai desde o liberalismo clássico dos fisiocratas ou de Adam Smith, onde se desenvolve a desconfiança/"fobia" em relação ao Estado que ressurgirá fortemente no discurso neoliberal. Uma reviravolta fundamental ocorrerá a partir de 1870 com a passagem das concepções “clássicas”, que ainda se referiam ao valor do trabalho como explicação do excedente e do lucro, para a escola da utilidade marginal (Jevons, Menger e Walras). Esta última atribui o comportamento dos indivíduos à natureza egoísta de um grupo de “agentes econômicos” ativos e livres. O valor de um bem passa a depender da utilidade que ele tem para os diversos agentes. Nesta nova teoria do valor, a ênfase agora é colocada no desejo subjetivo.

No modelo neoliberal, o indivíduo torna-se um sujeito racional por meio do reconhecimento da possibilidade de maximizar suas capacidades e administrar seus comportamentos visando a determinados fins, tudo visando o maior benefício com o menor custo. Aqui, afirma Foucault, há um componente importante da ordem da interiorização da obediência, da sujeição a um poder externo acreditando exercer a própria liberdade singular. O neoliberalismo leva a lógica do liberalismo muito mais longe. Não se trata apenas de impor limites à ação estatal, mas a economia de mercado constitui o princípio de regulação interna da ação governamental. Por sua vez, o neoliberalismo norte-americano tentou alargar a racionalidade do mercado, os seus esquemas de análise e os seus critérios de decisão, mesmo a esferas não prioritariamente econômicas, como a família, a natalidade, a criminalidade, a política penal, etc.

Lazzarato critica esta concepção do neoliberalismo na medida em que: "A insistência com que Foucault define as técnicas de poder como ’produtivas’, que nos põe em guarda contra qualquer concepção de poder ’repressiva’, destrutiva e bélica, não corresponde à experiência que temos do neoliberalismo” [6]. Para Lazzarato, trata-se de uma abordagem “eurocêntrica” onde Foucault subestima a importância das ditaduras da periferia para a própria imposição do neoliberalismo, começando pela América Latina, o laboratório chileno e a ditadura de Pinochet, a Argentina e o resto das ditaduras. imposta na região com a derrota da ascenso dos anos 70 [7]. Segundo Lazzarato, o caso da América Latina mostra que, sem a força, o poder não teria chance de incitar uma subjetividade mobilizada pelo desejo de trabalhar, consumir e tornar-se “capital humano”. Para que a governamentalidade neoliberal opere, aponta, é preciso anular a experiência revolucionária. E, por sua vez, todas as guerras dos Estados Unidos e da OTAN nas últimas décadas foram necessárias para que ela continuasse operando.
De fato, o avanço da ofensiva neoliberal através de métodos essencialmente pacíficos – comparado com a primeira metade do século XX – nos países centrais não pode ser entendido sem as ditaduras na periferia (às quais devem ser adicionadas as do sul da Europa: Estado Espanhol, Portugal, Grécia). Mas também – e esse elemento aparece desvalorizado em Lazzarato – sem as posteriores “transições para a democracia” que levaram a uma certa generalização da democracia liberal (embora excluindo regiões estratégicas como o Norte de África e o Oriente Médio). O estabelecimento global da hegemonia neoliberal só pode ser entendido como a integração internacional de ambos os processos. Assim, foi também fundamental o estabelecimento de um "pacto social neoliberal" (muito mais elitista e com uma base social mais restrita do que a do pós-guerra), combinando a exaltação do indivíduo e a sua realização no consumo com o aumento da exploração, degradação social da maioria da classe trabalhadora, desemprego e pobreza, sendo o "clientelismo" e a criminalização as políticas fundamentais do neoliberalismo para esses setores.

A partir de 2008, com o salto dos níveis de desigualdade a nível mundial e, atualmente, com as consequências da guerra, aquelas técnicas “produtivas” de poder típicas do neoliberalismo ligadas ao consumo, ao crédito, etc., bem como à própria democracia burguesa, encontram-se numa profunda crise estrutural.

Tese III. A principal novidade da situação atual em termos bélicos é a eclosão da guerra interestatal com o envolvimento de potências de ambos os lados (embora com os EUA e a OTAN agindo por procuração). A "inversão" da fórmula de Clausewitz torna impossível entendê-la.

As teses de Foucault sobre a biopolítica não dão conta de toda a sua obra. Sua evolução segue um pouco a dos movimentos políticos. Anteriormente, no início dos anos 70, no quadro do ascenso, Foucault havia adotado um modelo centrado na ideia de uma espécie de guerra civil permanente como modelo de compreensão das relações de poder. [8]. A partir deste estágio vem sua inversão da fórmula de Clausewitz. Para o general prussiano "a guerra é a continuação da política por outros meios". Isto significa, por um lado, que é a política que engendra a guerra e não o contrário, para compreender uma guerra temos de compreender a política que lhe deu origem. Por sua vez, na fórmula de Clausewitz, a guerra se distingue pela utilização de determinados meios (violência militar). A inversão que Foucault faz transpõe esses termos, parte do pressuposto de que “o poder é a guerra continuada por outros meios”, e acrescenta que: “A esta altura inverteríamos a proposição de Clausewitz e diríamos que a política é a guerra continuada por outros meios”. Para o filósofo francês, essa inversão da fórmula está diretamente ligada a uma concepção em que “o mecanismo do poder é essencialmente a repressão” [9].

Lazzarato aborda de forma particular esta questão ao estabelecer uma estreita ligação entre a inversão da fórmula e a guerra colonial. Afirma que: “se a política é [...] a continuação da guerra por todos os meios, ela o é na medida em que não é a ’guerra regular’, mas sim a guerra colonial que deu impulso à ’guerra total’ e a que não conhece a paz” [10]. Essa afirmação é desenvolvida como uma crítica ao próprio Clausewitz, apontando corretamente que, como teórico das guerras napoleônicas, ele ignorou, por exemplo, a guerra contra a revolução haitiana. Ele aponta que Clausewitz foi um pensador apenas da guerra europeia, ou seja, de uma guerra em que a perspectiva era a de um certo equilíbrio entre os Estados – e, nesse sentido, a continuação da política de Estado. No resto do mundo, onde a guerra foi levada a cabo pelos impérios coloniais, não deixou de ser de conquista e pilhagem. Assim, segundo o autor, a fórmula de Clausewitz já estaria invertida desde sempre [11].

No entanto, a nosso ver, da apontada omissão de Clausewitz não decorre a inversão da fórmula. A guerra colonial ainda é a continuação da política (imperialista) por outros meios. É claro que esse ponto se cruza com uma questão que tem dividido "clausewitzianos" e "anticlausewitzianos": a capacidade de abordar as chamadas guerras "irregulares" com a teoria de Clausewitz. Colocado de forma muito sintética (para uma explicação mais ampla nos referimos à Estratégia Socialista e Arte Militar), o general prussiano distinguiu uma relação variável entre três "tendências" presentes em todas as guerras sob suas diferentes manifestações concretas (o que ele chamou de "a estranha trindade"). A saber: o ódio ou impulso elementar (de preferência associado ao sujeito "povo"), o cálculo de probabilidades (ligado ao exército e aos generais) e a política (ligado ao governo).

Comentaristas de Clausewitz – que poderiam ser chamados de “anticlausewitzianos” – argumentam que essa trindade é inútil para entender “guerras irregulares” (nas quais entrariam os movimentos revolucionários), até porque as formações irregulares não são chefiadas pelo governo de um Estado nacional. Por outro lado, entre os “clausewitzianos” argumenta-se que a trindade “não representa uma descrição sociológica rígida da guerra [...] O conceito de Clausewitz da subordinação da guerra à política, por exemplo, é aplicável a qualquer entidade política, que estabelece metas e possui meios violentos a empregar para atingir seus objetivos. [12]. Nesse sentido, tem sido proposto o uso de conceitos mais inclusivos: ao invés de “povo”, “exército” e “governo”, usa-se respectivamente “base popular”, "lutadores" e “lideranças”. [13], entre outras reformulações. Esta segunda alternativa é a mais pertinente se quisermos entender a “guerra irregular”, na medida em que, mesmo que dois Estados soberanos não se enfrentem de fato, há política dos dois lados da trincheira e ainda é isso o que causa a guerra.

Lazzarato, mais próximo das soluções anticlausewitzianas, aponta que a “guerra irregular” extrai seus termos das guerras coloniais para contrapô-la com a explicação foucaultiana do neoliberalismo através da biopolítica. “Prisioneiros da ação positiva de um capitalismo lavado – diz –, purificado e reduzido ao ’mercado’, à ’empresa’, ao ’capital humano’, à ’livre concorrência’ etc., a biopolítica dificilmente pode nos ajudar a pensar o que deve ser pensado da/na coexistência sistemática de fascismo e democracia..." [14]. Desse ponto de vista, para Lazzarato, diante do capitalismo “devemos nos abster da ideia de que ‘ele está esperando a guerra para se transformar em um governo de destruição da humanidade’. Porque o individualismo possessivo do liberalismo, recente ou antigo, não abraça a destruição na reta final de sua carreira: para sair deste enredo de “governo através da crise”, genocida e ecocida desde o início, ele se confunde com a governamentalização da guerra em todas as suas formas (colonial e endocolonial, neocolonial e pós-colonial)” [15].

Nesse sentido, a conclusão que Lazzarato tirará mais de conjunto é que não se trata tanto da “inversão da fórmula” – embora parta dela – mas de uma certa identificação da guerra com a política e vice-versa. Para o autor: “A política não é mais, como em Clausewitz, a política do Estado, mas uma política da economia financeirizada imbricada na multiplicação de guerras que movem e vinculam a guerra de destruição em ação com as guerras de classes, de raças, dos sexos e das guerras ecológicas que fornecem o ’ambiente’ global de todas as outras” [16]. Dessa forma, voltando ao último Foucault de “O sujeito e o poder”, Lazzarato aponta que a governamentalidade não substitui a guerra, mas a controla, organiza e governa, é uma governamentalidade das guerras. Ou seja, que poder e guerra, relações de poder (relação associativa entre governantes e governados) e relações estratégicas (relação entre adversários) não devem ser pensadas como momentos sucessivos, mas como relações que coexistem e se invertem constantemente.

A ideia de que a política "não é mais a política do Estado, mas a política da economia financeirizada" impede-nos de compreender plenamente a principal novidade da situação atual: a eclosão da guerra (interestatal) na Ucrânia onde, até agora, os EUA e a OTAN agem por procuração. Uma guerra que já apresenta consequências a nível global. Ao mesmo tempo, a indistinção entre "guerra" e "paz" no plano da luta de classes omite o fato fundamental de que a resistência pura não é guerra e que ela só começa com a defesa, entendida em termos clausewitzianos como uma combinação com a maior quantidade de elementos ofensivos possível. Mas voltaremos a este último mais adiante.

Tese IV. A utilidade da fórmula de Clausewitz – como ponto de partida – não remete apenas à continuidade entre política e guerra, mas na capacidade de distinguir entre diferentes situações e temporalidades. Estas distinções são indispensáveis para a estratégia.

Embora a crítica de Lazzarato ao “Nascimento da biopolítica” de Foucault tenha a virtude de desarmar a ideia – muito difundida por sinal – de que o neoliberalismo age pacificamente sobre a subjetividade, deixando de lado sua natureza violenta, por outro lado, ao conceber uma “guerra contínua” estabelece uma tempo que dificulta a reflexão estratégica. Há dois perigos ao analisar o curso das últimas décadas. Uma é não ver a guerra, ou seja, não perceber que a guerra foi essencial para impor o neoliberalismo (seja a guerra civil ou elementos dela, seja guerras convencionais como a das Malvinas) e ficar cego ao fenômeno da guerra em geral, cedendo a uma espécie de atrofia do pensamento estratégico produto da ofensiva neoliberal. Mas outro perigo é confundir o avanço despótico do capital com a própria guerra. Por este último caminho se configura um procedimento intelectual inverso ao da social-democracia criticada por Benjamin [17] (baseado na idealização do desenvolvimento das forças produtivas) mas relacionado na sua concepção de um tempo homogêneo, neste caso, o de uma guerra permanente que torna os conceitos de “guerra” e “paz” praticamente indistinguíveis.

Para o pensamento estratégico, a chave são justamente as distinções sem as quais é impossível pensar em transições. A paz nunca é total, mas isso não implica a sua transformação automática em guerra. O crescimento capitalista, especialmente na era imperialista, nunca é harmonioso, mas isso não implica que haja uma crise permanente. A maioria dos regimes políticos burgueses na atualidade tem algum grau (maior ou menor) de crise de hegemonia, mas isso não implica diretamente um estado de guerra civil. Esses tipos de problemas são essenciais para a estratégia, para poder trabalhar na discordância dos tempos entre as crises econômica, política, militar, etc. e a subjetividade da vanguarda e do movimento de massas. Sem captar essas diferentes temporalidades, a estratégia é incapaz de cumprir seu objetivo: vincular os combates isolados com o objetivo da guerra.

Se o evolucionismo social-democrata é, por definição, incapaz de pensar e antecipar a guerra, a indistinção entre guerra e paz tem consequências semelhantes. A chave da preparação estratégica passa pela capacidade de construir pontes entre as diferentes temporalidades do processo histórico. Qualquer concepção de tempo homogêneo, seja concebida em termos de desenvolvimento evolutivo (das forças produtivas, organização política, consciência, etc.) ou em termos de "guerra permanente" é um obstáculo à estratégia revolucionária.

Por tudo isso, uma pergunta fundamental que devemos nos fazer é: onde estamos agora? No geral, como aponta Claudia Cinatti, a guerra na Ucrânia confirma que com a crise capitalista de 2008, que pôs fim à prolongada hegemonia neoliberal, agravada pela pandemia e pela crise ambiental, abriu-se um período em que tendências profundas da época imperialista de guerras, crises e revoluções (Lênin) estão novamente na ordem do dia. Mais concretamente, isto significa que as margens para o desenvolvimento evolutivo são reduzidas e que as crises, o militarismo das grandes potências, assim como as tendências para a revolução e contrarrevolução, se inscrevem, não só na lógica da época histórica (imperialista), mas também em sua etapa [18].

No entanto, resta saber quais serão os ritmos dessas tendências. As tendências a maiores confrontos militares, incluindo os confrontos entre potências, inscrevem-se cada vez mais na conjuntura mundial a partir da guerra na Ucrânia; ainda mais tendo em conta que qualquer guerra pode tender a tornar-se independente dos seus objetivos políticos porque tem uma gramática própria, sujeita a "acidentes" e escaladas. Mas isso ainda não é uma realidade e é justamente o que nós socialistas temos que lutar para impedir como destino da humanidade através da revolução.

Tese V. Uma das principais contradições da etapa atual se dá entre a inaudita internacionalização do capital e integração das cadeias de valor das últimas décadas e a tendência a uma renovada competição interestatal, cada vez mais militarista, entre potências.

A "inversão" de Deleuze e Guattari da fórmula de Clausewitz é diferente da de Foucault. Em Mil Platôs (originalmente publicado em 1980) eles desenvolvem o conceito de "máquina de guerra" em grande medida em contraponto ao de "guerra absoluta" - como um conceito abstrato de guerra - do general prussiano [19]. Distinguem-se daí, por um lado, a máquina de guerra e, por outro, o aparelho de Estado e a própria guerra. É a captura estatal dessa máquina de guerra que faz da guerra seu objeto, subordinando-a aos fins políticos do Estado. Nesse quadro, o termo "inversão" tem relevância limitada para os autores: "para poder dizer que a política é a continuação da guerra por outros meios, não basta inverter as palavras como se pudessem ser pronunciadas num sentido ou noutro, é necessário seguir o movimento real ao fim do qual os Estados, tendo-se apropriado de uma máquina de guerra, tendo-a adaptado aos seus fins, voltam a produzir uma máquina de guerra que assume uma finalidade, apropria-se dos Estados e assume cada vez mais funções políticas” [20].

Deleuze e Guattari tematizam a operação originária de monopolização da violência realizada pelo Estado [21]: por um lado, pela incorporação da violência nas relações sociais de produção (a violência torna-se estrutural) e, por outro, por um deslocamento que transforma a violência do aparato repressivo em violência policial legal. Agora, no final do século XIX, se dará a construção de uma nova máquina de guerra capitalista, integrando o Estado, sua soberania (política e militar) e todas as suas funções administrativas, modificando-as profundamente sob a direção do capital financeiro. No século XX, a guerra de Estado tornar-se-á, segundo os autores, uma “guerra total” onde os meios utilizados e o objetivo perseguido tendem a perder os seus limites. [22].

Essa máquina de guerra total apresentará duas figuras sucessivas: a primeira, o Estado nazista, que faz da guerra um movimento ilimitado, um fim em si mesmo; a segunda figura corresponde ao pós-guerra e refere-se a uma máquina de guerra que toma diretamente como objeto a paz baseada na dissuasão nuclear (paz de terror ou sobrevivência) e que se encarrega da ordem mundial no contexto da “guerra fria”.
A novidade que se apresenta, principalmente no pós-guerra, é que a nova máquina de guerra mundial que os Estados desencadearam surge com um grau de autonomia nunca antes visto perante as instituições estatais, enquanto se desenvolve um capitalismo monopolista transestatal encarnado nas multinacionais e na oligarquia financeira global. Por sua vez, instalam-se complexos tecnológicos, financeiros, industriais e militares que atravessam as fronteiras dos Estados nacionais. Desta forma, se a máquina de guerra deixa de estar subordinada a um fim político, é sobretudo porque o próprio fim deixa de ser político e torna-se imediatamente econômico. Nesse ponto, segundo os autores, “aparece a inversão da fórmula de Clausewitz: a política torna-se a continuação da guerra, a paz libera tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total” [23].

A "guerra fria", como tal, "nem traz paz nem honra quem a trava" [24]. No entanto, esteve claramente enquadrada na política dos acordos de Yalta e Potsdam sobre a distribuição de áreas de influência. Sem ser uma guerra no sentido estrito do termo, incluiu guerras nas fronteiras de influência (Coréia, Vietnã, etc.). Foi marcado por um amplo leque de processos revolucionários na periferia – incluindo o Leste Europeu – que, no final da década de 1960, impactariam os centros imperialistas, dando origem a um ascenso internacional, que terminou no início da década de 1980. O resultado abrupto da “guerra fria” – que surpreendeu a muitos – não foi decidido nos mapas dos Estados-Maiores, nem mesmo no campo econômico, mas, sobretudo, no quadro mais amplo dos resultados da luta de classes. Daí uma das principais limitações do conceito de “máquina de guerra” para explicar esta realidade; voltaremos a isso no adendo no final.

Para além do referencial histórico, Lazzarato faz uma apropriação crítica das teses de Deleuze e Guattari para explicar a globalização, associando-a ao desenvolvimento dessa máquina de guerra capitalista, onde os mecanismos neoliberais correspondem às táticas de guerra do capital (consumismo, endividamento, etc.). O autor, por um lado, critica com razão Deleuze e Guattari por teorizarem uma integração progressiva de economias e culturas heterogêneas com base no desenvolvimento tecnológico. Afirma que: “A ideia de uma única e grande máquina (’capitalismo mundial integrado’) é uma das miragens produzidas nos trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e que foram, vale lembrar, a exceção e não a regra do capitalismo” [25]. O capital não pode se tornar totalmente um mercado mundial porque é incapaz de se separar do Estado, "por isso é impossível criar uma única grande máquina de guerra ou se tornar um Império" [26]. Por outro lado, Lazzarato endossa a ideia de que a máquina de guerra total não tem mais como objetivo a guerra, mas a "paz" (do terror). Nesse quadro, o autor afirma que a reversibilidade entre guerra e economia está na própria base do capitalismo (com a guerra, o dinheiro e o Estado como forças constitutivas do capitalismo): “a economia persegue os objetivos da guerra por outros meios (bloqueio de crédito, embargo de matérias-primas, desvalorização de moedas estrangeiras)” [27].

No entanto, ambas as questões levantadas por Deleuze e Guattari – a ideia de uma única máquina de guerra e que esta tomou a paz como seu objeto – estão intimamente ligadas e se encontram na base de sua particular “inversão” da fórmula clausewitziana. Nesse ponto, levanta-se um dos nós das elaborações de Lazzarato, que busca articular o pensamento pós-68 que inverteu a fórmula de Clausewitz e a realidade atual do início do questionamento aberto (inclusive militar) da ordem mundial. São dois termos incompatíveis que se referem a uma das principais contradições que atravessam as classes dominantes no capitalismo atual. Por um lado, pode-se dizer que as máquinas de guerra do capital tomaram como objetivo a “paz”, produzindo uma inédita internacionalização do capital e integração de cadeias de valor em nível global nas últimas décadas. E, por outro lado, como não há – nem pode haver – um Estado global, as transnacionais são obrigadas a contemplar uma “razão de Estado” de seus respectivos imperialismos que os coloca em competição (potencialmente militar) com outros.

A ideia de que as máquinas de guerra (no plural, segundo a crítica de Lazzarato) tomaram como objeto a paz do terror é também uma miragem decorrente do impulso do avanço sem maiores resistências da ofensiva imperialista liderada pelos EUA até o início do século 21 (produto da derrota do ascenso dos anos 70 e da restauração capitalista dos Estados onde a burguesia havia sido expropriada). Isso não descarta que esses avanços tenham tido consequências fundamentais, moldando uma integração capitalista global como nunca antes. Mas, como não há Estado global, a competição interestatal entre potências imperialistas pela divisão do mundo tem sido um elemento essencial do capitalismo por quase um século e meio. A existência de um inimigo comum (“guerra fria”) ou de nenhum inimigo capaz de oferecer resistência efetiva (situação durante a ascensão do neoliberalismo) só é capaz de apaziguar essas contradições, que voltam quando essas condições se esgotam. A guerra na Ucrânia trouxe esse esgotamento à tona.

Tese VI. A guerra segue sendo a continuação da política por outros meios. O choque entre a integração global sob a hegemonia norte-americana (em crise) e o desafio (redobrado) a esta ordem mundial por parte das potências “revisionistas” marca as coordenadas da política que se continua na guerra da Ucrânia.

Para compreender plenamente a contradição que mencionamos, precisamos voltar à fórmula de Clausewitz e nos perguntar qual é a política que está sendo continuada “por outros meios” na guerra na Ucrânia. Após a queda do Muro de Berlim, a ilusão de uma única máquina de guerra foi, em parte, um legado da configuração bipolar da "guerra fria", que conduziu os demais imperialismos atrás da hegemonia norte-americana no que parecia (mas não era) uma espécie de ultra-imperialismo. Dizemos que respondeu “só em parte” a esses fundamentos porque também se apoiou no avanço sobre os países do outro lado da Cortina de Ferro que, convertidos em capitalistas, representavam uma fonte renovada de negócios, especialmente a China. Esta política de integração mundial (globalização), baseada na subordinação da China e da Rússia capitalistas, é o que o imperialismo dos EUA e a OTAN continuam na guerra na Ucrânia. E, por parte da China e da Rússia, trata-se de questionar esta ordem unipolar, onde cada um o faz, por hora, nos termos em que os EUA têm levantado o conflito. No caso da Rússia em termos diretamente militares, no caso da China ainda em termos de “guerra” econômica, embora com tensões crescentes no campo militar.

Ao contrário da China atrasada na época da restauração capitalista, a Federação Russa, herdeira do arsenal da URSS, foi vista desde cedo como uma ameaça. A política dos EUA e da OTAN, questionada por teóricos "realistas" como John Mearsheimer, que se continua na guerra é expandir-se para a Europa Oriental para "cercar" a Rússia sem entrar em um confronto militar direto. Em 1999 será a incorporação à OTAN da Polônia, Hungria e República Checa, durante a primeira década de 2000 da Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Albânia e Croácia, em 2017 de Montenegro e em 2020 da Macedônia do Norte. Junto a isso, houve ingerência nas chamadas “revoluções coloridas”, buscando capitalizar revoltas contra regimes autoritários em função da expansão da influência norte-americana.

Por sua vez, a política que Putin segue com a invasão da Ucrânia – depois de suas tentativas frustradas, no início dos anos 2000 de se apresentar como parceiro do imperialismo estadunidense – consiste em recriar um status de poder militar para a Rússia – por meio da reformulação de seu exército e desenvolvimento de armas – sustentando a opressão nacional dos povos vizinhos de acordo como o czarismo e o stalinismo sabiam fazer. Um nacionalismo russo reacionário, que teve marcos como a guerra com a Geórgia pelo controle da Ossétia do Sul, o esmagamento do povo checheno ou, mais recentemente, as intervenções de apoio a governos reacionários na Bielo-Rússia ou no Cazaquistão.

Nesse quadro, as políticas do governo Zelensky, assim como o processo político que a Ucrânia atravessa há décadas, são incompreensíveis fora de uma trajetória pendular marcada pelo confronto entre as oligarquias capitalistas locais "pró-russas" e "pró-ocidentais”. [28]. Isso incluiu a "revolução laranja" em 2004 e sua continuidade na Euromaidan em 2014. Em torno desses confrontos, aprofundou-se a divisão alimentada pelos interesses das diferentes frações da oligarquia local. Tudo isso agravado pela existência de uma significativa minoria de língua russa (cerca de 30% da população) e pela ascensão de grupos nacionalistas de extrema direita. Uma guerra civil de baixa intensidade que data desde 2014 [29]. A política do governo de Zelensky que é continuada na guerra está fadada a subordinar a Ucrânia às potências ocidentais.

Ou seja, o que vemos na guerra da Ucrânia não é uma inversão da fórmula clausewitziana, mas toda uma série de políticas que se prolongam na guerra. O esgotamento do avanço unilateral da integração mundial hegemonizado pelos EUA agrava a contradição entre a integração internacional das forças produtivas e a volta do militarismo das potências. Assim, enquanto os Estados europeus implantam um militarismo renovado, as multinacionais europeias anunciam processos de desinversão na Europa para fortalecer suas posições no mercado norte-americano e escapar do aumento dos custos de energia provocados pela guerra. Ou, no caso da Alemanha, vemos a política contraditória, produto da divisão de suas próprias classes dominantes, de se alinhar aos EUA na guerra da Ucrânia enquanto várias de suas principais transnacionais (como Volkswagen, Deutsche Bank, Siemens ou BASF, entre outras) buscam estreitar o relacionamento com a China, em cuja economia estão amplamente integrados e da qual dependem. Assim, os diferentes setores burgueses, os mais e os menos transnacionalizados, começam a divergir em seus interesses, levando essas brechas à disputa política dentro de cada regime (conforme o nível de alinhamento com os EUA ou o nível de vínculo com a Rússia ou China).

Por outro lado, longe da ideia de um “imperialismo coletivo”, segundo a denominação de Samir Amin que Lazzarato retoma, entre EUA-Europa-Japão, o que se viu na escalada favorecida pelos EUA foi uma intenção clara de priorizar seus interesses em detrimento da Europa e, em primeiro lugar, da Alemanha. Na verdade, esse elemento pode fornecer uma explicação plausível para o próprio erro de cálculo inicial de Putin na guerra, baseado em uma superestimação dos interesses (comuns) ocidentais em priorizar a integração global.

Em torno do desenvolvimento dessas contradições, define-se a questão dos ritmos da situação, a possibilidade de momentos de "distensão", como se poderia pensar no final de 2022 a partir da cúpula entre Xi Jinping e Biden durante a reunião do G20 na Indonésia, ou momentos de maior agravamento como aconteceu nos meses anteriores. A verdade é que o equilíbrio das forças políticas internas (divisões entre setores das classes dominantes) e externas (disputa entre Estados) voltam a ser protagonistas de um jogo perigoso e cada vez mais decisivo, onde a política, enquanto economia concentrada (Lênin), é o que engendra a guerra.

Tese VII. A guerra da Ucrânia já não responde aos modelos da etapa anterior: o novo é o retorno dos enfrentamentos militares “regulares”, a volta da guerra como “batalha em um campo entre homens e maquinaria” que pode afetar decisivamente a ordem internacional.

Em Guerras e Capital (originalmente publicado em francês em 2016, e em espanhol em 2021), Lazzarato aponta que: “a completa subordinação da guerra aos objetivos do capital toma sua forma final no final do século XX, quando o esgotamento da guerra interestatal dá lugar ao paradigma simultaneamente exclusivo e inclusivo da guerra – isto é, das guerras – nas populações, criando um continuum virtual-real entre as operações econômico-financeiras e um novo tipo de operações militares que já não se limitam a ’periferia’” [30]. No entanto, a ideia de um “esgotamento da guerra interestatal” e sua substituição por guerras “dentro das populações” é o que veio a desmentir a guerra da Ucrânia em 2022 (e em certa medida a invasão da Crimeia em 2014). Como assinala Richard Haass sob o sugestivo título de “10 lições sobre o retorno da História”: “Uma coisa que aprendemos em 2022 é que a guerra entre países, considerada obsoleta por não poucos acadêmicos, é tudo menos isso” [31].

O conceito de “guerra dentro da população”, utilizado por Lazzarato, é retomado explicitamente de um influente livro do general britânico (aposentado) Rupert Smith, publicado em 2005, The Utility of Force. Ali, Smith faz uma retomada histórica desde Napoleão em torno do que ele chama de paradigma da "guerra industrial" que dominou grande parte do século 20 e que, com o desenvolvimento dos arsenais de bombas atômicas, foi se tornando gradativamente obsoleto (levando a derrota dos EUA no Vietnã ou, mais recentemente, a impasses como no Afeganistão ou no Iraque, por exemplo). Em seu lugar, impor-se-á o paradigma da "guerra entre os povos" (ligado à genealogia das "pequenas guerras" e da "guerra irregular"), onde uma das chaves é que "ao contrário da guerra industrial, na guerra entre o povo nenhum ato de força jamais será decisivo: vencer o teste da força não atingirá a vontade do povo e, em última análise, esse é o único objetivo verdadeiro de qualquer uso da força em nossos conflitos modernos” [32].

Essa equação é muito importante. Mas o que ela mostra, justamente, é a centralidade nessas guerras dos problemas políticos em relação aos militares. Por exemplo, o problema-chave com a intervenção dos EUA no Iraque desde 2003 não foi a derrota do exército de Saddam Hussein. Como Carl Schmitt apontou, uma coisa é destruir as relações sociais (o que pode ser feito com bombardeios ou aviação), mas outra coisa muito mais difícil é criar novas relações sociais para substituí-las. [33]. Embora o sucesso político inicial dos EUA consistisse em evitar uma guerra de libertação nacional, mantendo e consolidando a divisão entre sunitas, xiitas e curdos, a incapacidade de integrar os setores sunitas, assim como os xiitas, sempre foi um problema ao esquema de ocupação dos EUA. Isso deu origem a fenômenos aberrantes como o ISIS, mas também, principalmente a partir de 2016, manifestações contra a ocupação, além de protestos massivos contra o desemprego e as péssimas condições de vida, como vimos em 2019 com mais de 100 mortes. Em outras palavras, a (violenta) luta de classes tornou-se um problema central que impedia a estabilização política.

O problema do livro de Rupert Smith, apesar dos vários elementos que traz para pensar os conflitos militares recentes, é que ele generaliza (e radicaliza) um modelo que se ancora nas intervenções militares dos EUA e da OTAN que enfrentaram exércitos fracos ou forças irregulares na década de 1990 e início dos anos 2000 (Bósnia 1995, Iraque 1991 e 2003, Kosovo 1999, etc.). Em seu livro, Smith argumentava provocativamente: “A guerra não existe mais. Sem dúvida, o confronto, o conflito e o combate existem em todo o mundo [...] e os Estados ainda possuem forças armadas que usam como símbolo de poder. No entanto, [...] a guerra como uma batalha no campo entre homens e maquinaria, a guerra como um grande evento decisivo em uma disputa em assuntos internacionais: essa guerra não existe mais. Considere o seguinte: a última batalha de tanques real conhecida no mundo, uma em que as formações blindadas de dois exércitos manobraram uma contra a outra com o apoio da artilharia e das forças aéreas, uma na qual os tanques em formação foram a força decisiva principal ocorreu em 1973 ” [34].

Com a guerra na Ucrânia, justamente, voltaram esses elementos que se pensavam ultrapassados. Não que a guerra “não existisse mais”, mas que sua forma como “batalha no campo entre homens e maquinaria” não é constante – ou seja, não há “guerra permanente” – mas emerge em determinadas ocasiões históricas. O que Smith tem razão é que a constante é “confronto, conflito e combate”, mas isso, em termos marxistas, nos remete justamente à luta de classes e não necessariamente à guerra em si. O exemplo dos tanques utilizados pelo autor é um bom símbolo do que há de verdadeiramente novo no cenário aberto pela guerra na Ucrânia, onde uma potência "revisionista" como a Rússia - e não os EUA, como era costume - invade nada menos que um país da periferia europeia apoiado pela OTAN. Embora isto não implique que muitos elementos desenvolvidos nas guerras das últimas décadas não tenham vindo para ficar (a começar pelo enorme peso dos meios políticos), na Ucrânia tem-se demonstrado que o "esgotamento da guerra interestatal" foi uma ilusão. É necessário repensar a guerra no novo contexto que reconsidera a perspectiva – não necessariamente imediata – da guerra entre potências.

Tese VIII. A escala histórica alcançada pela integração da economia mundial (que o capitalismo é incapaz de levar até o final) torna mais confuso o limite entre “guerra econômica” e guerra militar propriamente dita. Mas isto implica que a distinção entre ambas é mais e não menos fundamental para a estratégia.

Outra referência muito relevante na análise de Lazzarato é o livro Unrestricted Warfare, escrito em 1999 por Qiao Liang e Wang Xiangsui, ambos coronéis do exército chinês. Este é um livro que teve grande repercussão e passou a ser apresentado como uma espécie de "plano mestre" da China contra os EUA. Os autores buscam repensar a guerra em tempos de globalização e integração tecnológica, em que, afirmam, o direito das armas para determinar o que é uma guerra foi eliminado tornando muito mais confuso o que é e o que não é guerra. Isto tendo em conta, por exemplo, a capacidade das organizações transnacionais para influenciar a política dos Estados, a expansão das capacidades de "guerra econômica" num mundo muito mais integrado econômica e produtivamente, a dimensão "informática" e “cibernética" da guerra [35], a comunição, o terrorismo, etc.

A integração global efetivamente obscureceu a linha entre o que é e o que não é um ato de guerra. Mas precisamente por isso é mais importante distinguir entre “guerra econômica" (que não é guerra no sentido estrito do termo) e guerra militar, vale a redundância, entendida “como uma batalha num campo entre homens e maquinaria" (Smith). Sem esta distinção não poderíamos compreender a situação concreta. O confronto Ucrânia-Rússia desde a invasão de Putin é uma guerra interestatal com todas as letras. A intervenção dos EUA e da OTAN, por meio de sanções econômicas, bem como assistência, treinamento, armamento e abastecimento do exército ucraniano é aberta, mas seu envolvimento militar até agora não é direto. A “guerra econômica” com a China também está aberta e traz consigo tensões militares crescentes, mas ainda não é uma “batalha no campo entre homens e maquinaria”. Essas diferenças "sutis" significam, nem mais nem menos, que ainda não estamos enfrentando a Terceira Guerra Mundial.

Não é muito difícil ver na atual guerra da Ucrânia o desdobramento de muitas daquelas dimensões apontadas por Qiao e Wang (ampliação das capacidades da “guerra econômica”, o peso da dimensão comunicacional, etc.). Os EUA, sem envolver abertamente tropas no terreno, embora fornecendo todo tipo de ajuda militar e armamento, lançaram uma enxurrada de sanções sem precedentes, excluindo a maioria dos bancos russos do sistema de pagamento global, usando o próprio dólar dos EUA como uma “arma” congelando metade das reservas cambiais da Rússia (cerca de 300 bilhões) e proibindo as empresas russas de comprar todo tipo de insumos, inclusive microchips. A batalha pela opinião pública internacional, especialmente a europeia, assumiu dimensões não vistas em décadas contra uma potência. O fim simbólico disso foi a proibição de atletas russos de eventos esportivos internacionais, com sanções até mesmo contra artistas individuais, etc. Outros tipos de meios, como ataques cibernéticos, que no início da guerra muitos analistas pensaram que teriam um papel importante, não o tiveram.

No entanto, o balanço de todas essas medidas têm sido muito mais contraditórias do que o esperado. Nesse terreno multidimensional, a globalização tornou a guerra mais confusa em um sentido específico: a integração global significa que as medidas tomadas para atacar o inimigo podem acabar afetando mais o próprio agressor do que a vítima. A queda do PIB russo como resultado das sanções, que foi estimada em 15% em março, agora é estimada em cerca de 6%, com a venda de energia gerando um superávit em conta corrente de mais de 250 bilhões de dólares para 2022, em grande parte como resultado do aumento de preços causado pela própria guerra. Isso não implica, é claro, que com o prolongamento da guerra essa situação não possa mudar; mas uma consolidação do isolamento russo dependeria, sobretudo, de fatores políticos: um alinhamento internacional dos países muito mais amplo do que o alcançado até agora pelos EUA. Por outro lado, as sanções (e não apenas a guerra em si) desencadearam a inflação à escala global e afetaram sobretudo a Europa, devido à sua dependência energética da Rússia. Essas medições requerem uma precisão relativamente impossível para produzir os resultados desejados. Como Shylock, eles podem cortar meio quilo da carne de seu inimigo, mas se derramarem uma gota de sangue ao fazê-lo, podem acabar condenando a si mesmos; neste caso, por exemplo, afundando a Europa. Isso também significa que a China não está em condições de participar mais abertamente da guerra devido aos interesses conflitantes que a atravessam, tanto com os EUA quanto com a Europa e com a Rússia.

As propostas de Qiao e Wang, embora sejam responsáveis ​​por ampliar os parâmetros para se pensar a guerra hoje, subestimam a dimensão propriamente "militar" da guerra. Na Ucrânia, quanto aos efeitos na própria guerra, a “ajuda” militar direta da OTAN tem influenciado, muito mais do que as sanções, através de informações de inteligência de todo tipo, treinamento e assessoria e, sobretudo, na fase mais recente da guerra, a entrega de armamento de última geração, incluindo sistemas avançados de alta mobilidade e artilharia superfície-ar [36]. O livro Unrestricted War, escrito há mais de 20 anos (1999), assim como o de Smith, está imerso no universo das reflexões militares típicas das guerras lideradas pelos Estados Unidos na década de 1990. De fato, muitos dos esforços do governo chinês nos últimos anos foram para a modernização e expansão de seus porta-aviões, caças furtivos, tecnologia de mísseis hipersônicos, etc., embora seu progresso ainda esteja atrás do dos EUA na maioria dos terrenos. Enquanto isso, a disputa por Taiwan tornou-se um dos pontos potenciais de conflito militar no quadro da disputa mais global pela hegemonia mundial.

Entre as conclusões que Lazzarato tira desses debates, ele aponta que: “a crise é indistinguível do desenvolvimento da guerra. Para isso, é preciso que a fenomenologia do conceito de guerra não mais se refira à guerra interestatal, mas a uma nova forma de guerra transnacional que esteja ligada ao desenvolvimento do capital e não mais se diferencie de suas políticas econômicas, humanitárias, ecológicas, etc.” [37]. Pelo que vínhamos assinalando, não é que “a crise seja indistinguível do desenvolvimento da guerra”: a primeira tem suas próprias causas estruturais – a elas nos referiremos a seguir –; nem que os conflitos bélicos não mais se refiram à guerra interestatal ou que os Estados tenham passado a cumprir um papel marginal. A guerra continua a ser a continuação da política por outros meios, o que acontece é que a escala histórica alcançada pela integração da economia mundial (que o capitalismo é incapaz de levar até ao fim) borra esse limite que, no entanto, continua a ser decisivo do ponto de vista da estratégia. Isso, por sua vez, significa que qualquer guerra envolvendo grandes Estados têm consequências globais muito mais imediatas e de longo alcance do que em qualquer período histórico anterior. A guerra da Ucrânia (com as suas consequências monetárias, com os aumentos dos preços da energia e dos alimentos, as consequências diretas que tem na maioria dos habitantes do planeta e as implicações que já está a ter do ponto de vista da luta de classes em vários países) é um exemplo limitado disso.

A declaração de Lazzarato em seu livro mais recente, Guerra ou revolução, de que "uma eventual hegemonia chinesa só poderia ser estabelecida após guerras das quais talvez a da Ucrânia seja apenas o começo" [38] mostra um panorama que dá muito mais conta dos fenômenos pelos quais estamos passando. Mas se for esse o caso, então um conflito dessa magnitude (mesmo na hipótese limitada às ilhas taiwanesas Matsu na costa da China), não apenas militarmente, mas em termos de "guerra irrestrita", teria o potencial de "desestabilizar” o mundo, com profundas consequências para a luta de classes, numa escala que mais de 70 anos depois da Segunda Guerra Mundial ainda é difícil de medir, mas que certamente mostraria como completamente inoportuna a ideia, sustentada por Lazzarato, de que o que estamos atravessando hoje já é uma “guerra civil global”.

Tese IX. Diante do esgotamento dos novos espaços de acumulação conquistados durante as últimas décadas e ao fato de que as crises não cumprem sua função de “limpeza” de capitais, a crescente financeirização da economia e a intervenção estatal não é um caminho que se possa seguir indefinidamente. Apenas atrasa (e faz potencialmente mais explosiva) a luta por quem pagará os custos do esgotamento do ciclo neoliberal.

Lazzarato argumenta que: “o fracasso da globalização contemporânea é muito semelhante ao fracasso da globalização anterior entre o final do século XIX e o início do século XX, e só pode levar à guerra porque uma vez que o capital financeiro entrou em colapso, os Estados e seus exércitos parecem lutar pela hegemonia sobre o mercado mundial” [39]. Para além de considerarmos que existe uma integração qualitativamente superior à que existia há um século, partilhamos a afirmação anterior sobre as perspectivas belicistas colocadas pela crise da “globalização”. Mas a questão aqui é de que tipo de guerra estamos falando?
Diante da contradição entre: 1) maquinaria de guerra que adotam a “paz” como seu objetivo durante a “globalização” – que, como vimos, na realidade constantemente colocam uma relação específica e variável entre o político, o econômico e o militar – e 2) a incapacidade do capital de se separar do Estado, Lazzarato destacará duas vias de "saída" (intimamente ligadas) dais quais o capital adota para avançar e ultrapassar seus próprios limites. A saber: 1) a continuidade da acumulação originária (retornando em parte às teses de Rosa Luxemburgo e em parte de David Harvey), ou seja, a “acumulação por desapropriação” como resposta à queda da taxa de lucro; e 2) uma internalização dos métodos de guerra colonial – também nos países imperialistas – no que ele define como “guerras de classes”. Vamos começar com o primeiro.

Lazzarato critica o que considera ser a concepção de boa parte do marxismo sobre a acumulação originária, aquela que a limita a uma mera fase do desenvolvimento capitalista destinada a ser superada uma vez estabelecido seu modo de produção específico. Diante disso, aponta que a acumulação primitiva acompanha constantemente o desenvolvimento do capital. O capitalismo precisa de mercados e camadas sociais não capitalistas para acumular. Embora tenda a eliminar ou absorver todas as outras formas econômicas, não pode existir sem elas, sem outras formas econômicas para se alimentar. É em suas análises da acumulação originária que Marx enfatiza a guerra, juntamente com o poder do Estado e o crédito público, e concebe a força como um agente econômico. Com base nessas coordenadas, o argumento que Lazzarato enfatiza é que, tanto no centro quanto na periferia, a acumulação originária é a criação contínua do próprio capitalismo: “Os fluxos de crédito, a dívida pública (que ‘se torna uma das alavancas mais efetivas da acumulação originária’) e a guerra de conquista mantêm-se e reforçam-se mutuamente num processo de desterritorialização imediatamente global” [40].
A ideia de continuidade da acumulação originária é uma das teses mais desenvolvidas (a partir de uma interpretação da obra de Rosa Luxemburgo) por David Harvey em torno de seu conceito de “acumulação por desapropriação”. Ele a define como a utilização dos mesmos métodos de "acumulação originária" das origens do capitalismo para, na atualidade, fazer com que os setores mais empobrecidos dos países mais pobres paguem os custos das crises de superacumulação regional. Esses mecanismos consistiriam em utilizar formações sociais não capitalistas ou setores do capitalismo onde a valorização fosse relativamente proibida. Exemplos disso seriam as privatizações de empresas públicas e serviços sociais, políticas de ajuste fiscal do FMI, dívida externa, desvalorizações e crises controladas. [41]. Desta forma, Harvey destaca corretamente a importância dos mecanismos de “acumulação por desapropriação” sob o neoliberalismo.

Ora, se há uma crítica que, a nosso ver, a abordagem de Harvey merece, é a de deixar progressivamente em segundo plano a “acumulação por exploração”, quando é através delas que se produz e reproduz o capital, e o é gerado valor apropriável. No caso de Lazzarato, sua crítica a Harvey aponta na direção oposta. Segundo o autor, o problema de Harvey se materializa no seguinte: “O fato de evitar a questão política imposta pela hegemonia do capital financeiro, a saber, a impossibilidade de distinguir acumulação por exploração e ‘acumulação por desapropriação’, equivale a ignorar a guerra da/na econômia” [42]. Embora possamos compartilhar a crítica à "separação" entre os dois termos, no caso de Lazzarato ela se baseia em uma "radicalização" da tese de Harvey em favor da existência de "uma guerra civil que adquiriu uma forma mais abstrata, mais desterritorializados: a guerra de credores e devedores”. [43].

Todos os elementos que mencionamos com Harvey e o problema fundamental da dívida que Lazzarato destaca estão entre os principais mecanismos pelos quais o capitalismo tem funcionado. Com efeito, como assinala Lazzarato, "antes de aterrar na Europa, a dívida funcionou como arma de destruição maciça primeiro em África, depois na América Latina e depois no Sudeste Asiático, pondo de joelhos países inteiros e impondo desde os anos 80 a austeridade ao planeta inteiro” [44]. Hoje, a dívida tornou-se colossal. Em 1970, a dívida global era de 100% do PIB mundial, em 2020 era de 250%. No entanto, a ideia que Lazzarato propõe de uma indistinção entre acumulação por exploração e acumulação por desapropriação, onde esta última parece engolir a primeira, é altamente problemática, entre outras coisas, ao dar conta da dinâmica da estrutura de crise que permeia o sistema capitalista hoje.

O problema fundamental que o capitalismo tem hoje está relacionado à ausência de novos motores de acumulação de capital ligados, em primeiro lugar, à "acumulação pela exploração". Em “O fim dos ’ventos favoráveis’ da globalização neoliberal desde o final dos anos 1970”, Juan Chingo aponta como os retornos dos investimentos nos principais setores de criação de valor estão próximos dos mínimos pós-1945, o que é insustentável para o capitalismo. Durante as últimas décadas, o ciclo neoliberal conseguiu expandir seus limites por meio de certas tendências contrárias à queda da taxa de lucro, mas não resolveu as causas profundas da queda da produtividade [45]. Após a restauração do capitalismo na ex-URSS, Leste Europeu e especialmente na China, o capitalismo encontrou uma nova “floresta virgem”; aquele “afora” de que falava Luxemburgo, um “novo” lugar para acumular capital. Ele foi capaz de expandir enormemente a lei do valor e incorporar massivamente nova força de trabalho (aumentando a mais-valia absoluta em todo o mundo). Mas o que tem marcado a tendência nos últimos anos é que essa contra-tendência está se esgotando, não só porque os salários estão subindo na China, mas também porque o gigante asiático está competindo com os EUA e as grandes potências. Transformou-se de nação pobre, destino de acumulação de capital das potências imperialistas, em nação que compete no mercado mundial por oportunidades de acumulação de capital.

O avanço da financeirização da economia, embora até agora tenha servido como válvula de escape diante desse cenário, está longe de ter se tornado um novo mecanismo de duração indefinida para o funcionamento do capitalismo, como sugeria a tese de Lazzarato. Segundo nosso autor, no capitalismo atual “a ’crise’ não segue o ’crescimento’, mas ambos coexistem; a paz não segue a guerra, mas são co-presentes; a economia não substitui a guerra, mas institui uma forma diferente de realizá-la. A ’crise’ é infinita e a guerra não tem trégua..." [46]. Assim como discutimos em relação aos conceitos de “guerra” e “paz”, aqui as crises não mudaram de natureza. A ideia de que a crise é infinita não dá conta do fato, muito importante para entender a situação atual, de que as crises, devido aos mecanismos implementados pelos Estados, não têm cumprido sua função principal: a “limpeza” de capitais. Esta é a chave para a saída da crise de 2008/9 onde o fenomenal apoio prolongado de bancos centrais e governos, especialmente nos EUA, Europa Ocidental e Japão, impediu uma destruição significativa de capitais nos setores industrial, financeiro e comercial; não houve sequer destruição significativa de capital fictício [47].

Ambos os elementos, o esgotamento dos novos espaços de acumulação conquistados pelo capital nas últimas décadas e o fato de as crises não estarem cumprindo sua função de limpeza de capitais, colocam um acúmulo de contradições, onde o capital está tentando o tempo todo ultrapassar seus próprios limites. Mas não se trata de uma dinâmica que pode se perpetuar, de um novo mecanismo encontrado pelo capital para sobreviver indefinidamente ou de um novo "regime de acumulação", mas de um processo potencialmente explosivo de acumulação de contradições que está na base do renovado auge de tensões geopolíticas e o militarismo das grandes potências. Esta é a corrente profunda que impulsiona para futuras guerras interestatais "pela divisão do mundo" ou, em outras palavras, para quem paga os custos do esgotamento do ciclo neoliberal da globalização.

[PARTE II]

LUTA DE CLASSES: A “GUERRA” COMEÇA COM A DEFESA

Tese X. A guerra é também a continuação, por outros meios, da política entendida nos termos da luta de classes. As tendências a maiores enfrentamentos militares colocam, por sua vez, a perspectiva de choques entre revolução e contrarrevolução.

Para os marxistas revolucionários do começo do século XX, como afirma Lazzarato: “A guerra sempre é lida do ponto de vista da guerra civil entre as classes, pelo qual estudam com atenção especial o comportamento das massas porque estas, e não os Estados, são o verdadeiro sujeito político. Seria mais correto falar de guerra de resistência do que de guerra” [48]. Ainda que esta ideia seja correta enquanto ponto de vista, isso não significa que a guerra se apresente na realidade desta forma. A máxima de Lenin, retomada por Lazzarato, de “transformar a guerra imperialista em guerra civil” partia, justamente da realidade da guerra interestatal e da existência de “elos débeis” na cadeia imperialista (por exemplo, a Rússia) para colocar o objetivo estratégico de transformá-la em revolução. Ou seja, a guerra civil não era um fato “dado”.

Em Estratégia Socialista e Arte Militar, tentamos analisar como Lênin faz uma interpretação original da fórmula de Clausewitz, que hoje segue sendo muito útil para não cair em opções polares. Por um lado, parte de definir a guerra, assim como Clausewitz, pelos meios específicos que utiliza, a violência física, e não pela função que cumpre [49], e reserva o conceito de guerra para quando a política adota a violência física em grande escala como meio para seus fins, ou seja, para aqueles enfrentamentos “no campo de batalha entre homens e maquinaria” que fazíamos referência com Smith. Por outro lado, desenvolve uma compreensão da fórmula em termos marxistas, onde a política não diz respeito à “inteligência da nação personificada” (pelo Estado) como entendia Clausewitz, mas à luta de classes. Raymond Aron sinaliza que Lênin “não ignora que a luta de classes nem sempre exija o caráter violento próprio da guerra. Mas concebe a inversão da fórmula, implícita no rechaço da unidade nacional. Toda violência é física, escreve Clausewitz, pois a violência moral não existe fora do domínio do Estado e da lei. No marxismo de Lênin, o Estado e a lei derivam também da violência física mais ou menos camuflada. Toda paz, em uma sociedade de classes, dissimula a luta” [50]. Contudo, este rechaço da “unidade nacional” não significa que Lênin inverta a fórmula.

Para Lênin, ao mesmo tempo em que em uma sociedade de classes toda paz dissimula a luta (de classes), somente em determinados momentos esta se transforma em guerra civil. Este tipo de aproximação, onde a noção de luta de classes engloba e é muitíssimos mais ampla que a da guerra civil que expressa uma etapa determinada, é o que permite para Lênin por um lado manter a distinção entre violência “física” e violência “moral”, fundamental para intervir na luta de classes e na atualidade aparece amplamente indiferenciada nos discursos políticos do progressismo, por exemplo, identificando o “fascismo” com os chamados “discursos de ódio”, em uma amálgama pós-moderna. Por outro lado, lhe permite visualizar o caráter classista da sociedade e a luta que os discursos hegemônicos buscam disfarçar. Sobre essa base pode desenvolver conceitos como o de “escola de guerra” [51] para dar conta de enfrentamentos parciais (o elabora em torno do que chamamos hoje de “greves selvagens”) que ainda não são a própria guerra mas mostram em pequeno muitos dos seus elementos.

Tratam-se de diferenciações e conceitos que são fundamentais. Não existe uma descontinuidade absoluta entre situações pré-revolucionárias e revolucionárias (ou contrarrevolucionárias). Um conceito como o de “situação transitória”, elaborado por Trótski, dá conta daquelas situações intermediárias, híbridas, que expressam momentos fundamentais onde é definida a correlação de forças para um lado ou para o outro. Ainda que Lazzarato retome esta noção de Trotski, o faz para sinalizar uma espécie de identidade entre “luta de classes” e “guerra civil”, para dar como real a existência de uma espécie de “guerra civil permanente”. Onde Trótski diz que a “oposição absoluta entre uma situação revolucionária e uma situação não revolucionária é um exemplo clássico do pensamento metafísico” [52], Lazzarato deixa de lado o adjetivo “absoluta” e afirma que, em si, “a oposição entre uma situação revolucionária e uma situação não revolucionária é uma oposição metafísica” [53].

Mas Trótski não só debateu contra aqueles, como o stalinismo francês dos anos 30, que queriam justificar seu próprio conservadorismo erguendo um muro metafísico entre situações não revolucionárias e revolucionárias, mas também, assim como Lênin em “O Esquerdismo, doença infantil do comunismo” e posteriormente Gramsci, contra aqueles que confundiam a luta de classes com guerra civil. Neste sentido, explicava a relação nos seguintes termos, que valem a pena retomar: “A verdade é que a guerra civil constitui uma determinada etapa da luta de classes, quando esta, rompendo os marcos da legalidade, chega a se localizar no plano de um enfrentamento público, e em certa medida físico, das forças enfrentadas. Concebida deste modo, a guerra civil abarca as insurreições espontâneas, determinadas por causas locais, as intervenções sanguinárias dos bandos contrarrevolucionários, a greve geral revolucionária, a insurreição para a tomada do poder e o período de liquidação das tentativas de levantamentos contrarrevolucionários” [54].

Lazzarato também retoma outra definição importante de Trótski na qual sinaliza que “Aquele que não vê que a luta de classes conduz inevitavelmente a um conflito armado é um cego. Mas não é menos cego quem, frente ao conflito armado, não vê toda a política prévia das classes em luta”. [55]. Para Lazzarato, esta posição reafirma sua visão, segundo a qual para os marxista revolucionários: “Não captar as condições para a guerra na ‘paz’ da produção capitalista era considerado política e teoricamente irresponsável” [56]. No entanto, como dizíamos, não existiam nem para Lênin, nem para Trótski, condições de guerra constantes, mas sim luta de classes como noção que engloba e contém (como momento específico) a guerra civil, onde esta última era a continuação da política (nos termos da luta de classes) por outros meios.

As consequências desta diferença entre ambas aproximações são muito relevantes. Se para Lazzarato isso leva a transformar a guerra em uma constante, invertendo a fórmula de Clausewitz, para Trótski, pelo contrário, implicava colocar em primeiro plano a proeminência da política, e em particular da preparação política para quando a luta de classes se transformasse em guerra civil. Assim, sustentava que: “o resultado da guerra civil depende somente em um quarto (para não dizer um décimo) do andamento da própria guerra civil, dos seus meios técnicos, da direção puramente militar, e nos restantes três quartos (se não nove décimos) da preparação política. No que consiste esta preparação política? Na coesão revolucionária das massas, em sua libertação das esperanças servis da clemência, da generosidade, da lealdade aos escravistas ‘democráticos’, na educação de quadros revolucionários que saibam desafiar a opinião pública burguesa e que sejam capazes de demonstrar frente à burguesia ainda que não seja mais que um décimo da implacabilidade que esta mostre frente aos trabalhadores. Sem este temperamento, a guerra civil, quando as condições se imponham, e sempre terminarão sendo impostas, se desenvolverá em condições mais desfavoráveis para o proletariado, dependerá em maior medida da sorte; ainda no caso de uma vitória militar, pode ser que o poder escape das mãos do proletariado” [57].

Deixar de lado tudo isso é uma característica própria de todas aquelas abordagens do pensamento pós ‘68, como as de Foucault ou como as de Deleuze e Guattari que, de diferentes ângulos, se propuseram a inverter a fórmula de Clausewitz. A dissolução da estratégia em algum tipo de soma processual de resistências é uma conclusão inscrita nessas mesmas premissas. Disso vem a dificuldade que, do nosso modo de ver, encontra Lazzarato na hora de tentar articular o pensamento estratégico do marxismo revolucionário do século XX com autores que sustentam, de diferentes perspectivas, que a política é a continuidade da guerra por outros meios. Aqueles elementos sinalizados por Trótski na hora de explicar no que consiste a preparação política só tem sentido se entendemos que a guerra, ainda que tenha sua própria gramática, pega emprestada a lógica da política, que no marxismo, diferentemente de Clausewitz, é concebida nos termos da luta de classes (e não como razão de Estado).

Tese XI. A “guerra” de classes propriamente dita não começa com a ofensiva do capital, mas com a defesa do movimento de massas. A pura “resistência” não é defesa, esta deve conter elementos ofensivos. O neorreformismo e os “populismos de esquerda” garantem que não exista defesa, deixando avançar o despotismo de classe.

Como dizíamos anteriormente, Lazzarato não considera que exista uma contradição entre as proposições: a) as máquinas de guerra adotam como objeto a “paz” e b) o capital é incapaz de se separar do Estado. Por um lado, a capacidade de se expandir para um “afora” a ser conquistado, questão que hoje aparece limitada ao extremo sem mediar uma redistribuição de poder e liquidação de capitais em grande escala. E, por outro lado, por aquela imbricação entre máquinas de guerra que adotam como objetivo a “paz” e o Estado, sinaliza Lazzarato, aponta a realização de uma “guerra civil permanente” contra a população. O autor coloca que a matriz das guerras civis que se dão a nível global, incluídos os países centrais, é um prolongamento da guerra colonial com suas características particulares. A guerra colonial “nunca foi uma guerra entre Estados, mas, por essência, é uma guerra na e contra a população, onde as diferenciações entre guerra e paz, combatentes e não combatentes, o econômico, o político e o militar nunca se produziu” [58]. E agrega que “as novas máquinas de guerra fascistas funcionam através da exclusão a partir da identidade de raça, de sexo e de nacionalidade” [59].

Neste marco, Lazzarato coloca a necessidade de compreender e politizar a violência sexual, racial, classista, como individualização da guerra de conquista. Desta forma busca dar conta, no que faz a história recente, dos avanços que têm tido a ofensiva do capital durante os últimos anos contra o movimento de massas. Também retoma a noção de Félix Guattari de “guerra de subjetividades”, entendida como guerras políticas de “formação” e “manipulação” da subjetividade necessária para a produção, o consumo e a reprodução do Capital.

A partir de uma aproximação schmittiana, o autor sinaliza que nenhuma norma, seja econômica, sexual ou racial pode se afirmar em uma situação caracterizada por um alto nível de luta de classes. “A norma produtiva - afirma Lazzarato - assim como a norma jurídica não se aplica no caos, mas supõe uma estruturação normativa das relações vitais”. Nesta aproximação, no caso de Carl Schmitt durante a República de Weimar, o levava a indagar sobre as vias para defender a ordem e evitar a guerra civil. No entanto, para Lazzarato é muito diferente: a consequência seria uma necessidade de efetivar uma “normalização preventiva” tanto política como subjetiva, que se desenvolva com “um uso da violência e da guerra civil que varia segundo as circunstâncias” [60].

Os fenômenos que Lazzarato aborda (a violência sexual, racial, classista, econômica, neocolonial, etc) tem uma ampla transcendência, história e (muito) atual, para a produção e reprodução do Capital. Poderíamos pensá-los, nos termos de Marx, como a crescente ação do Estado como “força pública organizada para a escravização social” ou “máquina do despotismo de classe” [61]. Mas ao colocá-los em termos de “guerra civil”, com a subsequente indistinção entre violência moral e violência física, impede entender a guerra na sua especificidade (pelos meios que utiliza). E, o que é mais importante, apresentá-los como uma “guerra civil” em curso dificulta, quando não anula, a possibilidade de entender os problemas estratégicos concretos que atravessam a situação de hoje.

Em primeiro lugar, para que exista “guerra civil” tem que existir não um, mas dois bancos em pé de guerra, e aqui temos um problema chave para pensar as perspectivas da revolução na atualidade. Em segundo lugar, e retomando o que mencionamos de Schmitt, uma coisa é que o aparato do Estado utilize mecanismos autoritários para sustentar a ordem existente, outra muito diferente é que se disponha a lançar uma guerra civil (ou seja, liquidar a ordem existente para conquistar algo novo) contra o movimento de massas. Estas duas questões, por sua vez, confluem em um terceiro problema: a necessária problematização dos mecanismos da democracia burguesa atualmente existentes e seu papel para a sustentação do capital. Vejamos.

Para Lazzarato, a guerra muda de natureza sob a ação do capitalismo financeiro. A inversão da fórmula de Clausewitz encontra sua forma definitiva quando a guerra se diversifica em guerras dentro da população como política do capital, que “no seu projeto de medo, pacificação e contrasubversão implica todas as redes de poder da economia através das quais se implementa a nova ordem do capitalismo securitário mundializado” [62]. E agrega que a extensão deste projeto de medo não é infinita, mas está limitada pela resistência que se opõe a ele. Contudo, a ideia de “resistência” em si é problemática e polissêmica. Em Foucault, o conhecido apotegma de “onde há poder, há resistência” apela a uma noção de resistência que confirma o reposicionamento da questão do Estado, que já não é concebido como o aparato armado especial que garante as relações de dominação capitalista, mas como uma relação de poder entre muitas outras.

Inclusive o próprio Foucault parecia ser consciente do recorte que esta abordagem implicava, por exemplo, quando dizia: “Não fui, nem muito menos, o primeiro a colocar a questão do poder [...] Isso se fez muito cedo desde a década de 1930 nos círculos trotskistas ou derivados do trotskismo. Fizeram um tremendo trabalho. Mencionaram um monte de coisas importantes, mas é absolutamente certo que a forma na qual estou colocando o problema é diferente, porque não trato de ver qual é a aberração que se deu nos aparatos estatais e que conduzo a este o suplemento do poder. Tento, pelo contrário, ver como na vida cotidiana, nas relações que são de sexo, nas famílias, entre os doentes mentais e os racionais, entre os doentes e os médicos, enfim, em tudo isso, existem inflações de poder. Em outras palavras, a inflação de poder, em uma sociedade como a nossa, não tem uma origem única, que seria o Estado e a burocracia estatal” [63].

Sua abordagem joga luz sobre uma série de fenômenos do ponto de vista das relações de poder, mas na hora de utilizar este recorte do ponto de vista das relações estratégicas sua abordagem fica diluída em uma soma de resistências sem possibilidade de vitória. Como sinaliza Lazzarato, “Foucault não explica como se produz a passagem de governados para adversários” [64]. A questão é que, seguindo Clausewitz, a defesa absoluta, a pura resistência, “contradiz completamente o conceito de guerra; pois em tal caso a guerra não seria realizada mais que por um dos bandos” [65]. Neste esquema, a guerra que continua na política, segundo a inversão da fórmula de Clausewitz, seria uma “guerra” unilateral.
Lazzarato problematiza muitos aspectos da obra de Foucault e neste ponto, remarca a grande limitação que o filósofo francês impõe ao ter praticamente ignorado os desenvolvimentos do pensamento estratégico no marxismo. No entanto, a “guerra civil permanente” à qual faz referência, como elemento central das suas teorizações, segue sendo uma “guerra unilateral” associada ao conceito puro de resistência. É importante ressaltar que o autor não fala simplesmente de guerra civil como perspectiva em torno de uma estratégia revolucionária, mas como realidade constante, operativa para descrever a realidade.

Como sinaliza Clausewitz, a guerra propriamente dita não começa com a ofensiva mas com a defesa, com a ação de “parar o golpe”. Por isso, uma guerra unilateral é um contrasenso. O ofensor busca conquistar, impor sua vontade, se pode fazê-lo sem encontrar oposição efetiva, muito melhor. Por isso quando falamos de defesa não nos referimos à “defesa passiva” ou “pura resistência”, que para o general prussiano representava em absurdo desde o ponto de vista estratégico, mas aquela que contém elementos ofensivos, “golpes habilidosos” segundo Clausewitz, já que a defesa propriamente dita só pode servir para modificar a correlação de forças a favor do defensor e abrir a possibilidade do contra ataque, o que é, nem mais nem menos, a “realização” da própria defesa.

Se tomarmos o período que vai da crise de 2008 à atualidade vemos, no calor dos processos de mobilização e revoltas, a emergência das lideranças políticas neorreformistas ou “populistas de esquerda”, do estilo Syriza na Grécia, Podemos no Estado Espanhol, Boric no Chile, etc, insuspeitos de encabeçar qualquer defesa séria do movimento de massas. Algo neste sentido sustenta Lazzarato quando defende que: “Desde 2011, os movimentos anticapitalistas têm multiplicado as modalidades de ruptura subjetiva. Não obstante, se encontram rapidamente frente a uma alternativa sem saída. [...] Os ‘novos partidos’ nascidos destes movimentos operam mudanças cosméticas na representação parlamentar, reproduzindo a ilusão de que esta ‘política’ pode mudar algo, precisamente quando ‘outra política’ dentro da governabilidade é impossível. Assim foi demonstrado pela recente desventura eleitoral de ‘Podemos’ na Espanha (que fracassou às portas do poder). Menos de um ano depois do fiasco de Syriza…” [66].

Longe da “guerra permanente” que coloca Lazzarato, o que termina se configurando são processos cíclicos de mobilização e institucionalização, onde, apesar da massividade e força que as revoltas dos últimos anos souberam levantar, estas terminam sendo dissipadas ou assimiladas pelos poderes instituídos sem dar lugar a novas revoluções. Uma espécie de ecossistema de reprodução dos regimes burgueses em crise com forças de direita e ultradireita, por um lado, e neorreformismos e populismos de esquerda, por outro, que dão sobrevida a regimes capitalistas em decadência.

Lazzarato sustenta que “Os dois ciclos de mobilização de 2011 e de 2019-2021, interrompidos pela repressão e pela contrarrevolução, nos convidam a recuperar o saber estratégico das revoluções” [67]. Estamos de acordo com este último ponto, mas justamente o que nos coloca essa recuperação na atualidade é identificar que aqueles processos não foram interrompidos somente, nem sobretudo, pela repressão mas, na maioria dos casos, através de mecanismos de desvio nos marcos dos regimes democrático-burgueses. Isso é certo, não somente para a Europa e para os países centrais, como parece sugerir na sua análise Lazzarato, mas também para boa parte da periferia capitalista. Justamente pela mão da ofensiva neoliberal, em muitos países da periferia, quase toda a América Latina, uma parte da África e Ásia, veio da mão da extensão da democracia burguesa com mais ou menos traços bonapartistas a depender do caso.

Se tomamos aqueles dois ciclos de mobilização, estes processos tiveram um caráter de revoltas (para uma análise remetemos ao livro De la mobilización a la revolución [68]), com suas enormes mobilizações e toda energia levantada pelas massas, não deram lugar a “guerras civis” (ainda que possamos ver alguns elementos dela quando os enfrentamentos foram mais agudos, por exemplo, no Chile, Colômbia, Bolívia, Myanmar, etc.). Uma das poucas exceções neste sentido foi o Egito em 2011, onde se abriu um processo revolucionário rapidamente esmagado pelo golpe contrarrevolucionário de Al-Sisi; em outros lugares como na Síria o processo derivou em uma guerra civil só que reacionária tendo como fenômeno progressivo o desenvolvimento da luta do povo curdo (cuja independência foi se liquidando no marco das alianças militares nos Estados Unidos e logo com Assad contra os ataques turcos).

Esta constatação é de primeira ordem por duas questões chave. Em primeiro lugar, porque ao não serem derrotados mediante a repressão, em muitos casos, tratam-se de processos que continuam abertos de alguma forma (dependendo das características particulares de cada caso), ou seja, não representaram derrotas estratégicas do movimento de massas “em luta”, mas em grande medida as forças que operam contra o desenvolvimento destes processos de revoltas em revoluções o fazem atuando, mais do que em cima da “força física”, na “força moral” do movimento de massas, desmoralizando-o e desmobilizando-o. Em segundo lugar porque, se isso é assim, a preparação para romper aquela relação circular entre mobilização e institucionalização implica a necessidade de se preparar para cenários de enfrentamentos ainda mais agudos na luta de classes, superiores aos atuais. Para isso, efetivamente é fundamental recuperar e recriar todo o saber estratégico acumulado; a questão é quais termos concretos damos a isso.

Tese XII. Crises orgânicas ou tendências a elas têm dado como resultado, até hoje, não governos “fascistas”, mas governos bonapartistas débeis. Não há um “neofascismo” (mais pacífico) que tenha substituído o fascismo “clássico” (guerra civil). A possibilidade deste último ainda está à frente, assim como da revolução.

Uma característica distintiva desde a crise de 2008 em diante tem sido a proliferação de elementos autoritários e a concentração de poder em determinadas instituições, em geral no poder executivo, dentro dos regimes democrático-burgueses existentes. Como sinaliza Lazzarato: “se a economia não vai bem, a democracia tampouco vai, a centralização do poder político no Executivo, a marginalização do parlamento, o estado de emergência permanente são a outra cara da centralização da economia, as duas concentrações de poder econômico e político são paralelas convergentes e uma reforça a outra” [69]. Contudo, estes elementos, que na tradição do marxismo se identificam como traços “bonapartistas”, muitas vezes são amalgamados com a categoria do “fascismo”. Na própria análise de Lazzarato vemos algo disso quando afirma que “deve-se pensar na coexistência sistemática do fascismo e da democracia”.

Como mencionamos antes, ainda que seja pertinente a afirmação que retoma Lazzarato de Carl Schmitt, em relação a que nenhuma norma pode ser aplicada no caos, resulta contraditória com a ideia à qual o próprio Lazzarato a associa, de que este problema leva à necessidade de uma “normalização preventiva”, que inclui não só o uso da violência mas o desenvolvimento de uma guerra civil. Esta contradição surge claramente se entendemos o termo “guerra civil” em toda sua significância, como divisão de uma determinada “unidade política” em bandos armados enfrentados militarmente. Ou, em termos mais amplos, como uma etapa determinada da luta de classes quando esta, “ao romper os marcos da legalidade, chega a se situar no plano do enfrentamento público e, em certa medida, físico das forças de oposição” [70]. De fato, quando Schmitt pensa aquele problema (a garantia da ordem para a vigência da norma) o faz, como dizíamos, com o objetivo de evitar ou enclausurar a perspectiva da guerra civil, uma reflexão que passará por diferentes etapas mas que vincula com a figura do presidente do Reich como legítimo “guardião da constituição” segundo seus termos de 1931.

Em um sentido similar, León Trotski, em sua definição mais geral de bonapartismo, destaca que este busca se elevar sobre os campos em luta para preservar a propriedade capitalista e impor a ordem, e agrega: “elimina a guerra civil, ou se sobrepõe a ela, ou impede que esta volte a se incendiar” [71]. A partir destas coordenadas, distingue os bonapartismos segundo as diferentes etapas históricas e analisa especialmente aqueles desenvolvidos a partir da segunda década do século XX, próprios da etapa do domínio do capital financeiro. Desenvolverá a categoria de “kerenskismo” (para além da Revolução Russa) para dar conta dos bonapartismos débeis, espécie de “bonapartismos sem Bonaparte” ou, em termos de Gramsci, “cesarismos sem César”. Também desenvolve a categoria de “pré-bonapartismo” (ou “bonapartismo preventivo”, segundo sua formulação de 1934) para analisar aqueles bonapartismos que refletem um equilíbrio extremamente instável e breve dos bandos de classe enfrentados.

E então, diferencia estes bonapartismos, que são fenômenos de transição com os quais a burguesia busca se impor evitando a guerra civil, o fascismo que busca esmagar abertamente o proletariado com métodos da guerra civil e transformá-lo em “poeira social”. O bonapartismo de origem fascista, ao surgir da destruição, desilusão e desmoralização do movimento de massas, se caracteriza por uma estabilidade muito maior.

Quando fazemos um recorrido pelos governos dos países imperialistas, um traço comum são as tendências bonapartistas no interior dos regimes democrático-burgueses. Por exemplo, um governo como o de Macron na França, apesar da sua trajetória dilatada, de ter tido que se enfrentar com os Coletes Amarelos, contra as greves contra a reforma da previdência, etc, não deixa de expressar elementos de um bonapartismo débil [72], neoliberal e europeísta, com uma base social limitada, que emergiu do descrédito do bipartidarismo (PS-LR) que buscou avançar em toda uma série de contrarreformas mas se desgastou rapidamente e nestas condições sobreviveu. No caso de um governo como o de Trump, catalogado várias vezes como “fascista” pelo progressismo, no entanto, não passou de um governo bonapartista débil, fruto da crise do consenso neoliberal bipartidário. Um governo que esteve marcado pela instabilidade (o enfrentamento entre as agências de inteligência de segurança como o FBI e a CIA com o Executivo, o “Russiagate”, etc).

De conjunto, poderíamos dizer que, até agora, a crise de 2008 abriu crises orgânicas ou tendências a elas em diversos países, incluindo os países imperialistas, dando como resultado governos bonapartistas débeis que emergem das divisões que atravessam a sociedade, a classe dominante e o aparato estatal [73]. Por sua vez, é necessário distinguir que os diversos governos deste tipo são expressão de diferentes fenômenos políticos, como exemplificamos com os casos de Macron e Trump. Casos como este último expressam uma das novidades pós-2008: a direitização da direita e o desenvolvimento de toda uma série de fenômenos de extrema-direita (com peso, sobretudo, nas classes médias conservadoras e nos setores despolitizados das classes populares) com suas respectivas combinações de religião, nacionalismo, xenofobia, misoginia e racismo segundo o caso. As chamadas “novas direitas”, em geral, se localizam à direita dos liberais e conservadores tradicionais, mas sem romper o marco do consenso neoliberal. Surgem no marco do agravamento da crise do “extremo centro” assim como em outro polo do espectro político, e mais moderados que seus contrapartes de direita, teve lugar o desenvolimento dos neorreformismos e dos “populismos de esquerda”.

Por outro lado, é necessário diferenciar casos como foi o do governo Bolsonaro no Brasil, que participam deste conjunto diverso de “bonapartismos débeis”, mas não podem ser analisados sem partir da diferença existente entre os fenômenos bonapartistas nos países centrais e na periferia capitalista. Em países centrais aqueles governos bonapartistas débeis tentam expressar a projeção internacional do seu imperialismo (por exemplo, no caso de Macron buscando um papel de liderança na Europa, no caso do Trump virando muito mais abertamente ao enfrentamento com a China e revisando as condições da globalização neoliberal), enquanto que, na periferia, casos como o de Bolsonaro expressam a dependência mais servil ao capital imperialista estrangeiro [74] pelo peso que cobra este último nos regimes como produto da debilidade relativa (em relação às classes trabalhadoras e ao imperialismo) das próprias burguesias locais [75].

Por último, um fenômeno que tem cobrado força no último tempo é o maior protagonismo do poder judiciário como “árbitro” político, não apenas no Brasil, na Argentina e em países da periferia mas no próprio Estados Unidos e no Estado Espanhol, e em geral como tendência em muitos países. Se abordamos a questão superficialmente nos termos da “divisão de poderes”, as tendências bonapartistas pareceriam associadas exclusivamente ao poder executivo. No entanto, a divisão de poderes é parte de um sistema de engrenagens para garantir a eficácia da dominação, e a categoria de “bonapartismo” no marxismo não se refere apenas ao governo mas também ao regime político. Baseado nisso podemos falar de “bonapartismo judiciário”. O mesmo não se refere a um regime bonapartista plenamente formado, mas ao desenvolvimento de tendências ao bonapartismo dentro de regimes democrático-burgueses. A expressão destas tendências ao redor do poder judiciário responde tanto a níveis baixos da luta de classes, como ao peso que tem adquirido as ilusões na democracia capitalista nas últimas décadas. Frente a Schmitt que, como dizíamos, via o poder executivo como “guardião da constituição”, o jurista Hans Kelsen sustentava que esta tarefa deveria recair a um tribunal constitucional (o chamado “controle de constitucionalidade” é um dos mecanismos de arbitragem judicial por excelência para impedir a vigência de leis quando estas favorecem os setores populares contra a burguesia). Poderíamos localizar o “bonapartismo judiciário” em algum lugar instável entre a normatividade de Kelsen e a exceção de Schmitt [76].
Em síntese, o cenário de proliferação de crises orgânicas, ou elementos delas, motoriza uma maior presença de tendências bonapartistas. Mas, dentro deste panorama, distinguir gradações entre diferentes fenômenos é vital para a estratégia e para identificar, na medida do possível, o momento preciso do desenvolvimento da luta de classes que expressam. Isso, desde já, condiciona o tipo de resposta que merece desde o ponto de vista das forças revolucionárias. A ideia de que qualquer fenômeno de extrema direita é fascismo ou neofascismo impede abordar estes problemas. Dessa forma, esta forma de igualar diversos governos sob a etiqueta de fascistas é utilizada, em geral, pelas forças neorreformistas ou populistas de esquerda que buscam desmobilizar o movimento de massas como “espantalho” para aceitar todo tipo de acordo com forças burguesas e planos de ataques ou subordinação aos interesses imperialistas em defesa de um “mal menor”. É esse tipo de relação especular entre forças de direita e ultra direita por um lado, e neorreformistas e populismos de esquerda por outro, e não o fascismo, é o fenômeno principal que na atualidade o ecossistema de reprodução dos regimes burgueses em crise aceita.

Na aproximação de Lazzarato, “Bolsonaro e Trump utilizaram todas as tecnologias disponíveis de comunicação digital, mas sua vitória não provém da tecnologia: é resultado de uma máquina política e de uma estratégia que agencia uma micropolítica de paixões tristes (frustração, ódio, inveja, angústia, medo) com a macropolítica de um novo fascismo que lhe dá consistência política às subjetividades devastadas pela financeirização” [77].

Há muito disso efetivamente; o problema, outra vez, é quais implicâncias tem a categoria de “novo fascismo”. Claro que na base social, tanto do bolsonarismo como do trumpismo, encontramos setores que com ideologia fascista ou fascistóide, e frente a uma agudização da luta de classes, podem ser a base para o desenvolvimento de movimentos fascistas mais amplos e, mediando uma derrota física da classe trabalhadora, dar lugar a novos governos fascistas no século XXI. Mas, como dizíamos, o que se expressa na atualidade, em termos de governo e regime, são variantes de governos bonapartistas débeis no marco de regimes democrático-burgueses com cada vez mais traços autoritários.

Lazzarato afirma a possibilidade de uma “coexistência sistemática do fascismo e da democracia”, mas para abordar este ponto é necessário incluir que tratam-se de dois regimes diferentes e fenômenos com relações específicas. Por um lado, a ideia de “coexistência sistemática” tende a esmaecer as diferenças. Tratando de definições, pelo menos no que se refere ao marxismo, a distinção entre ambos tipos de regimes é indispensável para estabelecer uma orientação tática em uma situação concreta. Trotski esteve entre aqueles que mais decididamente discutiram este problema frente aos partidos comunistas stalinizados no começo dos anos 30, que afirmavam que o fascismo não era mais que uma reação capitalista, e que desde o ponto de vista proletário a distinção entre as diversas forças de reação capitalista não tinha importância suficiente. Neste sentido, afirmava: “Entre a democracia e o fascismo não existem ‘diferenças de classe’ [...] No entanto, a classe dominante não habita no vazio. Mantém determinadas relações com as demais classes [...] Após ter qualificado o regime burguês, o que é indiscutível, Hirsch, assim como seus mestres, esquece de um detalhe: o lugar do proletariado neste regime” [78]. Ou seja, ambos regimes colocam uma importante diferença quanto ao lugar da classe trabalhadora dentro dele.
Por outro lado, os pontos de contato entre democracia, bonapartismo e fascismo dificilmente podem ser abordados em termos estáticos de uma “coexistência sistemática”, senão que é necessário analisá-los em função de determinada dinâmica de situações concretas. Trotski sinaliza que o bonapartismo, quando surge, começa combinando o regime parlamentar com o fascismo. O fascismo por sua vez, quando triunfa, se vê obrigado a constituir um bloco com os setores bonapartistas e, o que é mais importante, aproximar-se cada vez mais, pelas suas características internas, a um sistema bonapartista. Esse último acontece pela impossibilidade do capital financeiro de ter uma dominação prolongada através da demagogia social reacionária e o terror pequeno burguês. Uma vez no poder, os dirigentes fascistas se vêem obrigados a amordaçar as massas que os seguem usando o aparato estatal, o que os faz perder base entre as amplas massas pequeno burguesas. O aparato estatal assimila um setor, outro cai na indiferença, e outro passa para a oposição. Enquanto vai perdendo base de massas, ao se apoiar no aparato estatal e oscilar entre as classes, o fascismo vai se transformando por sua vez em bonapartismo [79].

Contudo, Lazzarato diferencia entre os fascismo da primeira metade do século XX e os que cataloga como fascismo de hoje. Segundo sua definição de “novo fascismo”, aquela coexistência entre democracia e fascismo na atualidade seria possível já que: “O fascismo histórico foi uma das modalidades de atualização da força destrutiva das guerras totais; o fascismo que está crescendo diante dos nossos olhos, pelo contrário, é uma das modalidades da guerra contra a população. O novo fascismo nem sequer tem que ser ‘violento’, paramilitar, como o fascismo histórico quando tratava de destruir militarmente as organizações de trabalhadores e camponeses, porque os movimentos políticos contemporâneos, diferentemente do ‘comunismo’ do entreguerras, estão muito distantes de ameaçar a existência do capital e da sua sociedade: nas últimas décadas não existiram movimentos políticos revolucionários nos Estado Unidos, Europa ou América Latina, nem na Ásia” [80].

Efetivamente, não existe na atualidade o “fascismo histórico” por estes elementos sinalizados por Lazzarato. Mas isso não significa que tenha sido substituído por “novos fascismos”, que nem sequer tem que ser violentos ou paramilitares, mas que expressa que as classes dominantes ainda não tiveram que lançar mão desta alternativa porque não existem níveis de luta de classes que o mereçam. O que se desprende da categoria “novo fascimo” é que o “fascismo histórico” seria uma questão do passado e não, como supomos nós, do futuro; e não falamos de um futuro indeterminado mas de um que está inscrito nas tendências mais profundas da etapa atual junto com a guerra e a revolução. Em termos de estratégia revolucionária, a preparação para o ressurgimento destes fenômenos mais “clássicos” é fundamental. Isso não implica que surgirão com características idênticas, mas significa sim que sua essência, “a guerra civil” contra a classe trabalhadora e o movimento de massas, não se pode perder de vista como questão definidora para evitar qualquer pacifismo intempestivo.

[PARTE III]

DUAS ESTRATÉGIAS NA ESQUERDA

Tese XIII. Não se trata de “lutas de classes” no plural (operários/patrões, racializados/brancos, homens/mulheres, etc.) mas de uma luta unificada que tem como centro de gravidade do inimigo o Estado capitalista. A articulação da classe trabalhadora (e suas posições estratégicas) com os movimentos é uma condição para libertá-la.

Entre as conclusões de seu livro Você lembra da revolução? (intitulado em francês L’intolérable du présent, l’urgence de la révolution), Lazzarato sintetiza alguns problemas centrais que fazem a articulação estratégica na atualidade quando sinaliza que: “O tríptico classe, raça, sexo (ao que se pode agregar a ecologia) corre o risco de banalizar-se nos programas de estudo universitários, nas novas mercadorias culturais ou nas reivindicações inofensivas (o comum, o ‘cuidado’, a relação com si mesmo, a defesa da ‘natureza’, etc.) e portanto, aparece um duplo perigo. Primeiro, o de separar as lutas de classes raciais e sexuais das lutas de classes ‘econômicas’, transformando as primeiras em lutas ‘liberais’ (reconhecimento, igualdade, diretos, etc) que o Estado e as empresas estão dispostos a acolher em suas políticas de diversidade. O segundo perigo é o qual se incorre é o de separar as lutas de classes da revolução” [81].

A questão é como encarar estes perigos que sinaliza corretamente o autor. No livro mencionado, Lazzarato se propõe reconstruir as condições objetivas e subjetivas de uma ruptura com o capitalismo e demais modalidades de dominação e exploração, cuja primeira condição seria captar a passagem da “luta de classes” (capital e trabalho) às “lutas de classes”. Em Guerra o revolución coloca que a história do capitalismo está atravessa e constituída por uma multiplicidade de guerras: guerra de classe(s), raça(s), sexo(s), guerras de subjetividade(s). “As ‘guerras’, e não a guerra, é nossa [...] tese. [...] As guerras, não somente as guerras de classes, mas também as guerras militares, civis, de sexo e de raça, estão integradas de um modo tão constituinte na definição do Capital que seria necessário reescrever do começo ao fim O Capital para dar conta da sua dinâmica em seu funcionamento mais real” [82].

Efetivamente, qual guerra ou quais guerras estamos levando adiante é a primeira pergunta de qualquer estratégia. Por outro lado, uma das questões estratégicas fundamentais é como articular as diferentes lutas e os diferentes movimentos, entre os quais se contam hoje o poderoso movimento de mulheres a nível internacional, movimentos antiracistas de transcendência também internacional (como se viu na revolta de 2022) como o Black Lives Matter, o movimento global contra a mudança climática, etc. Ao mesmo tempo, no movimento operário começam a se dar fenômenos iniciais, mas de transcendência, como o emergir da geração ‘U’ nos EUA (juventude precarizada), assim como processo em setores mais tradicionais do movimento operário com as greves na Europa deste ano como produto das consequências da guerra. A partir deste ponto de vista, dificilmente a ideia de múltiplas guerras simultâneas, para além dos debates teóricos que implicam, pode ser útil.

Em primeiro lugar, o problema é que entendemos “luta de classes” no singular. O ponto de partida para substituir a ideia de luta de classes por “guerras de classes” no plural é uma concepção estereotipada e simplista da luta de classes como tal, identificando-a como enfrentamento entre operários e patrões. Esta identificação entre luta de classes e enfrentamento patrões/operários é justamente o reducionismo contra o qual Lênin se remeteu em Que fazer? e é um dos pontos nodais que faz uma perspectiva hegemônica e política do marxismo.

“A consciência política de classe, afirmava Lênin, só pode chegar ao operário do exterior, ou seja, do exterior da luta econômica, da esfera das relações entre operários e patrões. A única esfera da qual se pode extrair estes conhecimentos é a das relações de todas as classes e camadas com o Estado e o governo, a esfera das relações de todas as classes entre si” [83]. Poderiamos fazer considerações muito similares, com as diferenças do caso, sobre os diversos movimentos: no caso dos movimentos antirracistas, cujo caso consistiria em ir para além do enfrentamento racializados/brancos; no de mulheres, para além do enfrentamento homens/mulheres; etc.

O fundamento histórico que coloca Lazzarato para a sua tese é que: “Maio de 1968 situa-se sob o signo do ressurgimento político das guerras de classe, raça, gênero e subjetividade que a ’classe trabalhadora’ já não podia subordinar aos seus ’interesses’ e às suas formas de organização (Partido-sindicatos).” [84]. Atribuir à classe operária, trans-historicamente, um balanço deste tipo (algo que é bastante comum) peca no reducionismo sociológico. Uma reflexão estratégica em torno do problema mencionado implicaria indagar o balanço dos seus partidos e seus sindicatos concretos, que para este então contavam ainda com um grande peso do stalinismo que, por exemplo, teve um papel fundamental em manter separado o movimento estudantil do movimento operário no maio francês. Mas, para além deste caso pontual, o papel chave das burocracias sindicais existe, assim como também das burocracias dos movimentos, que cumprem um papel de “polícia política, de caráter investigativo e preventivo”, como dizia Gramsci, sem o qual dificilmente podem se entender os resultados das revoltas dos últimos anos e o fato de que não conseguiram quebrar o ecossistema dos regimes burgueses.

Em segundo lugar, o outro problema é o que entendemos por “classe”. Em suas elaborações Lazzarato tomará por exemplo do “feminismo materialista” de Christine Delphy a noção de “classes sexuais”, considerando as mulheres como uma classe submetida ao poder da classe dos homens. Uma aproximação similar tratará da “classe” dos “racializados” oposta à classe dos brancos. Frente a esse tipo de defesa, por exemplo, o feminismo negro questionava a proeminência da opressão sexual e de gênero por cima das de raça e classe e polemizava também com as tendências abertamente separatistas ou de “guerra de sexos” que se fortaleceram com o feminismo do final dos anos 1970 (ao que definiam como um movimento orientado pelos interesses de mulheres brancas de classe média). Também sustentavam que todo tipo de determinação biologicista da identidade poderia levar a posições reacionárias [85]. “Ainda que somos feministas e lésbicas, dizia por exemplo o Manifesto do Coletivo Combahee River, sentimos solidariedade com os homens negros progressistas e não defendemos o processo de fracionamento que exigem as mulheres brancas separatistas”.

Keaanga-Yamahtta Taylor tem razão quando afirma que: “de fato, nos Estados Unidos, a classe operária é feminina, imigrante, negra, branca, latina e mais. Os problemas de migração, de gênero e antirracismo são problemas da classe operária” [86]. Hoje, sem ir mais longe, é muito difícil entender o surgimento da geração U no movimento operário norteamericano sem ver sua imbricação com o desenvolvimento do movimento Black Lives Matter ou o amplo protagonismo de mulheres e LGBTQ+ nas vanguardas de ambos movimentos sem ver a imbricação entre eles. Inclusive sociologicamente é chave o peso das pessoas negras entre a juventude precarizada (fast food, Walmart, Amazon). Estes fenômenos, que são parte do novo que atravessa a luta de classes internacional, mostram que a fragmentação entre diferentes guerras, não como objetivo porque Lazzarato não o coloca assim, mas inclusive como ponto de partida, expressa em um sentido o velho. A articulação de todas estas demandas em um programa hegemônico é indispensável para a classe trabalhadora [87]. A ideia de “guerras de classes” remete a uma soma processual de resistências que nos afasta dos problemas estratégicos que a fragmentação do movimento de massas coloca.

Em terceiro lugar, a questão passa também pelo que entendemos com o conceito de “luta”. A luta de classes entre a classe trabalhadora e os capitalistas nos termos de Marx e Engels, de Lênin, Trótski, Luxemburgo, Gramsci, etc é “irreconciliável”. Se estendessemos este mesmo adjetivo ao enfrentamento entre “racializados” e brancos, homens e mulheres, estaríamos mais próximos de uma imagem hobbesiana de luta de todos contra todos que de uma revolução. Em seu livro intitulado justamente A guerra contra as mulheres, Rita Segato, a partir de uma perspectiva não marxista, propõe um ângulo alternativo que vale a pena mencionar. Ali afirma que: “Uma parte do movimento, seguindo sobretudo Catharine MacKinnon, fala da continuidade de crimes de guerra e crimes de paz, [...] afirma que a prática de violação nas guerras contemporâneas, nas novas formas da guerra, é uma prolongação e uma expansão da experiência doméstica, do que acontece nos lares. [...] Minha posição não é que nestes bolsões as formas de guerra sejam uma continuidade da vida doméstica, pelo contrário, que é a mesma forma da guerra que faz foco na destruição do corpo das mulheres e com isso destrói a confiança comunitária.” [88].

Diferentemente de perspectivas baseadas na polarização homem-mulher a partir da opressão primária da violência sexual, Segato abre a discussão sobre como enfrentar a violência patriarcal na sua realidade sistêmica, propondo assim deixar de lado um “feminismo do inimigo” e defendendo uma perspectiva nos termos de “tecer novamente a comunidade”. “Tecer novamente a comunidade, diz, significa se alistar em um projeto histórico que se dirige a metas divergentes com relação ao projeto histórico do capital” [89]. Do ponto de vista da luta de classes (no singular) não existe algo assim como a comunidade (a sociedade está dividida entre classes irreconciliáveis). No entanto, não é difícil transferir essa ideia à busca para tecer novamente os laços, que o capitalismo constantemente destrói, mas também se vê obrigado a reproduzir, no interior da classe trabalhadora e des oprimides.
Efetivamente, como sinaliza Lazzarato, um obstáculo fundamental é que as guerras de classe, de gênero e de raça produzem divisões profundas no interior do proletariado das quais as classes dominantes usam para dominar [90]. Assim, "a passagem das relações de poder para as relações estratégicas, a capacidade de resistência e de ataque, a acumulação e o exercício da força, os processos de subjetivação têm como condição a neutralização dessas divisões" [91]. Contudo, a estratégia para fazê-lo tem um fundamento muito mais profundo que a simples “construção de conexões revolucionárias” entre as multiplicidades. Existe a possibilidade de pensar e articular estrategicamente uma “guerra” unificada, que tem por fundamento o caráter sistêmico tanto da opressão de gênero, sexual, racial, de exploração, do jugo imperialista, etc. E não só existe essa possibilidade, mas fazê-lo é um elemento vital para as possibilidades de triunfo revolucionário.
Em termos estratégicos, o problema consiste em identificar o centro de gravidade do inimigo e concentrar forças nele. Como dizia Clausewitz: “Existem muito poucos casos nos quais [...] não se possa fazer com que vários centros de gravidade se reduzam a somente um. Mas se isso não pode ser feito, na realidade não haverá outra alternativa que considerar a guerra como duas ou mais guerras separadas, uma das quais terá seu próprio objetivo. Como pressupõe a independência de vários inimigos, como consequência, a grande superioridade de todos juntos, a derrota do inimigo está fora de questão por completo” [92]. Se tomamos este princípio estratégico, dar como fato a impossibilidade de concentrar em apenas uma luta de classes (no sentido ao qual fizemos referência antes, não no sentido vulgar que a reduz ao enfrentamento operário/patrão) é renunciar antecipadamente à possibilidade de vitória.

Neste sentido, a questão vai para além das resistências às relações de poder difusas, coloca a questão do Estado capitalista como ponto onde se ligam e se coordenam essas relações de poder e de força, e não como uma relação de poder “a mais”. Determinado este centro de gravidade do inimigo, não se trata de contrapor “movimentos” ou “identidades” a uma classe operária abstrata; ainda que a ideologia dominante busque por todos os meios apresentá-lo desta forma. Se trata é de articular a classe trabalhadora, que ocupa o papel central na produção e reprodução da sociedade e conta com o “poder de fogo” das “posições estratégicas” capazes de paralisá-la [93] mas que foi altamente fragmentada pelo neoliberalismo, com as lutas dos “movimentos”. Estes últimos, apesar da grande capacidade de mobilização que tem demonstrado nos diversos processos de luta que tem atravessado diferentes países nos últimos anos, não tem a força para derrotar os capitalistas e seu Estado, mas, ao mesmo tempo, a classe trabalhadora organizada sem os “movimentos” (de mulheres, contra a opressão racial, socioambientais, etc.) está condenada à fragmentação e a reivindicar melhoras parciais somente para alguns dos seus setores mais “acomodados” [94].

Tese XIV. Existem duas estratégias na esquerda, uma que passa por avançar dentro do Estado (capitalista), outra que tem como eixo o desenvolvimento de instituições de auto-organização para criar um poder alternativo. Superar as formas “cidadãs” das revoltas é indispensável para uma estratégia de auto-organização baseada em conselhos/sovietes capazes de derrotar o Estado burguês.

Se vemos o curso de muitas das revoltas do último período, o papel desmobilizador que cumpriram formações políticas como Syriza, Podemos, Boric, etc., assim como as burocracias sindicais e dos diferentes movimentos, é claro que o principal problema estratégico é como impedir que estes movimentos se transformem em base de manobra de políticas neorreformistas ou “populistas de esquerda”, ou fiquem confinados à mera resistência. Lazzarato se coloca um problema parecido quando sinaliza que a questão “é objetivo de experimentação nos movimentos contemporâneos. Não se trata de uma democracia genérica nova, mas da invenção de máquinas de guerra democráticas anticapitalistas capazes de assumir como tarefas estratégicas as guerras civis e a luta na frente de suas subjetivações” [95].
Contudo, novamente a questão é o como. No Programa de Transição, Trótski se perguntava: “Como harmonizar as diversas reivindicações e formas de luta ainda que seja somente nos limites de uma cidade?”. Na sua resposta dizia que: “A história já respondeu a este problema: por meio dos sovietes (conselhos) que reúnem os representantes de todos os grupos em luta. Ninguém propôs até agora nenhuma forma de organização e é duvidoso que possa ser inventada outra. Os sovietes não estão ligados a nenhum programa a priori. Abrem suas portas a todos os explorados. [...] A organização se estende com o movimento e se renova constantemente e profundamente. Todas as tendências políticas do proletariado podem lutar pela direção dos sovietes em base à mais ampla democracia” [96].

Esta perspectiva já coloca uma importante luta de estratégias. Em Você lembra da revolução?, Lazzarato a aborda nos seguintes termos: “A tradição revolucionária adotou diferentes estratégias: tomar o poder e utilizar o Estado para tratar de dirigir o movimento e a mudança, como na tradição leninista, ou bem desfazer a máquina estatal mediante a auto-organização, como na experiência da Comuna de Paris. Pelo momento, a própria revolta parece constituir a única modalidade de ação comunicável e reproduzível. A negativa à ‘tomada do poder’ não produziu como alternativa processos autônomos de organização” [97]. Desta forma, estabelece uma oposição entre diferentes formas do “socialismo desde cima”, entre as quais inclui uma genérica “tradição leninista”, e a perspectiva colocada pela experiência da Comuna (descartando a ideia de “não tomar o poder”) [98].

Em nome da “tradição leninista” foram ditas e feitas muitas coisas (inclusive adulterá-la e instrumentalizá-la para justificar o stalinismo). Mas se falamos de Lênin, aquela contraposição não existe como tal. Em O Estado e a revolução, que é seu principal escrito sobre teoria marxista do Estado ligada aos problemas da estratégia revolucionária, a Comuna de Paris é apresentada como o ponto de inflexão (assim como em Marx e Engels), como a “forma política enfim encontrada” de resolver o problema de que a classe trabalhadora não pode se fazer valer do aparato do Estado burguês para construir o socialismo, mas que tem que destruí-lo e forjar seu próprio poder. Na genealogia traçada por Lênin, o ponto de chegada são os sovietes/conselhos (um capítulo final não concluído porque ainda estava sendo escrita a própria experiência da Revolução Russa). Já desde a Revolução Russa de 1905, Lênin incorporaria rapidamente os sovietes em sua concepção da política revolucionária, ao ver neles uma nova prática política desenvolvida pelo movimento de massas, antagônica à prática burguesa da política, e que permite articular diversas reivindicações e formas de luta em novas instituições de auto-organização para criar um poder alternativo.

O problema é que aquelas “duas estratégias” que sinaliza Lazzarato não podem ser diferenciadas a partir da reivindicação ou não da Comuna de Paris, nem hoje em dia, nem tampouco na época de Lênin. O dirigente bolchevique dizia que a Comuna “nas palavras”, é “honrada por todos aqueles que desejam fazer-se passar por socialistas” mas “esquecem a experiência concreta e os ensinamentos concretos da Comuna de Paris, repetindo o velho canto burguês da ‘democracia em geral’” [99]. Desde aquele então esta operação não fez mais que multiplicar-se. A partir da Revolução Russa, desde Kautsky, para quem o poder dos sovietes era a antítese dos conselhos municipais eleitos por sufrágio universal da Comuna, em diante, tem sido sistemáticas as tentativas de contrapor a Comuna à República Soviética. O eixo destas operações sempre foi o de desvalorizar a ruptura de classe e estabelecer uma continuidade institucional com os mecanismos parlamentares da democracia burguesa. Ou seja, tratou-se de amalgamar as “duas estratégias” que mencionava Lazzarato. Leituras como a do último Poulantzas, a de Antoine Artous, ou mais recentemente de Lars Lih são exemplos neste sentido [100].

Contudo, o fundamento de Lazzarato para a contraposição entre a estratégia de Lênin e a colocada pela Comuna poderia ser sintetizada na seguinte afirmação: “A conclusão à qual Lênin chega em um artigo de abril de 1911, ‘Em memória da Comuna’, termina de arrastar o marxismo na sua totalidade à via do desenvolvimento e consciência de classe do partido operário. No texto: ‘Para que a revolução social possa triunfar necessita de pelo menos duas condições: um alto desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado para ela. Mas em 1871 se carecia de ambas condições” [101]. Efetivamente, Lênin era crítico à estratégia levada adiante pelos dirigentes da Comuna, o que não implicava que opusesse à ela a utilização do Estado (burguês) “para tratar de dirigir o movimento e a mudança” como sugere Lazzarato. Pelo contrário, sua crítica ia no sentido oposto.
Trótski, em 1921 [102], desenvolve aquele argumento sinalizado por Lênin em 1911 sobre a importância do partido de maneira inclusive mais radical, já que nem sequer dá um peso fundamental ao peso fundamental ao problema objetivo do “desenvolvimento das forças produtivas” para avaliar o possível êxito da Comuna. Toda a ênfase está no balanço estratégico, na análise das condições para vencer. Como sinalizava Daniel Bensaïd na sua crítica ao pensamento de 68: “Se a estratégia reside na ‘escolha de soluções que assegurem o êxito’, e se o desencanto da época conduz à conclusão de que não é possível uma solução que assegure o êxito, a noção de estratégia, reduzida a zero, já não tem muito sentido” [103]. Ou seja, se falamos de recuperar a tradição estratégica do século XX não é possível fazê-lo sem retomar este ponto de vista.

No que consistia aquele balanço de Trótski? Dito muito sinteticamente, que os dirigentes da Comuna sacrificaram suas probabilidades de conquistar uma aliança com os camponeses (Marx opinava que em três meses de livre contato com as províncias poderia se conseguir [104]) para obter um suposto guarda-chuva de legalidade formal em termos democrático-burgueses (apesar de sua ilegalidade formal, já que era uma insurreição municipal), enquanto que o governo provisório tinha como base de sustentação a Assembleia Nacional eleita por sufrágio universal [105]. Oque se expressa isso? Em que o Comitê Central da Guarda Nacional, que já era um organismo democrático reconhecido por todas as massas de Paris e a qual Trótski comparava com os sovietes, havendo tomado o poder na cidade no dia 18 de março, em vez de marchar imediatamente sobre Versailles (crítica de Marx), decide chamar eleições da Comuna para logo entregar o poder a esta, período no qual se perdem duas semanas chaves, ficando Paris isolada (em primeiro lugar, dos camponeses), e com a Comuna caindo na indecisão estratégica, o que permitirá ao governo de Thiers se recompor e, mais adiante, contra atacar [106].

A partir deste ângulo, as “máquinas de guerra democráticas anticapitalistas” às quais Lazzarato faz referência, do ponto de vista da estratégia, cobram pleno sentido se estão articuladas em função de derrotar o Estado capitalista como condição para o triunfo revolucionário. E este debate é fundamental, também hoje, em relação às revoltas dos últimos anos. Um elemento distintivo de muitas delas tem sido a ocupação de praças [107], desde a Praça Tahrir no Egito e a Porta do Sol em Madrid em 2011, passando pela Praça Taksim na Turquia (2013) ou a Praça da República em Paris (2016), até a Praça Itália no Chile em 2019, entre outras. Lazzarato, assim como outros autores [108], as abordam na sua novidade mas separadas daquela pergunta estratégica. A partir dos desenvolvimentos de Asef Bayat, Lazzarato afirma que: “O primeiro que precisa ser sinalizado é que, como é natural, durante o levantamento não se ocuparão fábricas nem universidades, mas sim as praças. A street politics, a política de rua, se transforma logicamente em política da praça. A multiplicidade proletária do ‘trabalho gratuito’, informal e precário parece exercer uma hegemonia política que, a partir da realidade urbana metropolitana, se estabelece não somente nos países árabes, mas no mundo” [109].

No entanto, é justamente a primazia das formas “cidadãs” atomizadas que condensaram em um sentido “as praças”, a que tem impedido, nos processos recentes, enfrentar com êxito o aparato estatal e lhe tem permitido a este último separar dentro dos movimentos, e inclusive geograficamente, ao que poderíamos chamar de perdedores “absolutos” e “relativos” da globalização. Uma divisão da qual se baseia a burguesia, o Estado e os meios de comunicação para tentar canalizar e reprimir as manifestações diferenciando os manifestantes supostamente “bons”, “legítimos”, dos “violentos” e “incivilizados”. Para os primeiros está colocada a possibilidade de ensaiar algum tipo de concessão buscando tirá-los da rua, para poder isolar os segundos e criminalizá-los. Uma operação que se repete em cada um dos processos e que é chave para desgastá-los, desativá-los ou diretamente derrotá-los prematuramente impedindo seu desenvolvimento rumo a movimentos revolucionários.

Aí está a importância do desenvolvimento de coordenadoras e organismos de auto-organização que, em perspectiva, possam ser o gérmen de futuros conselhos, de um poder alternativo da classe trabalhadora e dos oprimidos. Estes organismos, inclusive nas suas formas iniciais, são fundamentais para que os setores mais avançados do movimento possam influenciar os mais atrasados, assim como retrucar a ação do regime que, justamente, se vale das brechas que abrem a fragmentação. Também para fortalecer as perspectivas táticas como a da frente única (golpear juntos, marchar separados) frente à burocracia para impor a unidade de ação do movimento operários e medidas como a greve geral política (uma pequena demonstração disso foi, por exemplo, o papel da greve do 12N de 2019 no Chile [110]).

E, por sua vez, articular as "posições estratégicas" com o território, sindicatos com "movimentos", a juventude com o resto dos trabalhadores etc., bem como para organizar a defesa contra a repressão.

Tese XV. Sob o neoliberalismo, a invisibilização do/a trabalhador/a como produtor/a se redobrou. A classe trabalhadora não é um conjunto de assalariados nem de cidadãos, como classe produtora é a portadora (potencial) de novas relações sociais. Nenhuma alternativa realmente anticapitalista pode prescindir dela e da sua centralidade para erguer um novo sistema (socialista).

Na hora de pensar nas encruzilhadas colocadas pelos processos de revolta, Lazzarato sinaliza que o problema consistiria em que: “Os movimentos anticapitalistas ainda são incapazes de desatar uma ‘guerra de classe sem a classe operária’” [111]. Esta ideia só pode corresponder, como dizíamos, com uma visão estereotipada de uma classe operária abstrata, do contrário é impossível pensar uma guerra de classe sem a classe trabalhadora, já nem sequer por uma questão estratégica, mas inclusive por uma questão democrática. Hoje a classe trabalhadora é majoritária em boa parte dos países do mundo, uma mudança tectônica que na época de Marx, inclusive na de Lênin, era inimaginável. Está altamente fragmentada, isso é certo, em setores efetivos, precarizados, sem registros, etc, mas é a classe produtora do sistema capitalista por excelência.

Retomando Foucault, o neoliberalismo não somente buscou impor em uma escala ampliada os critérios das leis de mercado como “naturais”, e inclusive, transferi-las aos mais diversos âmbitos da vida, mas também desaparecer definitivamente com a ideia de que é a força de trabalho a que gera novo valor. Desta forma, consolidou a imagem que a sociedade tem de si mesma enquanto um conjunto atomizado de “agentes econômicos” ativos e livres, guiados pelo egoísmo, onde o indivíduo se torna um sujeito racional através do reconhecimento da possibilidade de maximizar as suas capacidades, gerir suas condutas; tudo isso a fim de conseguir o maior benefício com os menores custos. A partir da teoria do “capital humano”, o trabalhador aparece como empresário de si mesmo.

Para o capital é vital considerar a força de trabalho como uma mercadoria a mais para pagar ao trabalhador um salário que só uma parte do que sua força de trabalho produz e se apropriar da outra parte. Se isso sempre foi chave para o lucro capitalista e a acumulação de capital, mais ainda o foi na etapa neoliberal, onde o aumento da mais-valia absoluta (aproveitando a incorporação de centenas de milhões de trabalhadores ao mercado a partir da “restauração burguesa” e os processos massivos de proletarização na China e Índia) foi chave para as tentativas de frear a queda da taxa de lucro. No entanto, segue sendo a classe trabalhadora a que vivifica o trabalho morto e o capitalismo não pode escapar disso; uma encruzilhada que está na base da baixa capacidade de acumulação com a qual conta na atualidade o capitalismo a nível global.

Atrás da ideia de “capital humano” se esconde o potencial criador da classe trabalhadora, tanto no terreno econômico como no político. Neste sentido, são muito pertinentes os desenvolvimentos de Gramsci nos que coloca a ênfase no trabalhador não somente como assalariado, mas também como produtor [112]. Sob o neoliberalismo este caráter tem sido negado ao trabalhador de forma radical, como produtor foi praticamente invisibilizado. Aparece como mero representante de um interesse corporativo mais da sociedade, no máximo como “cidadão”, quando como produtor é portador potencial de novas relações sociais de cooperação, de uma força social e produtiva que pode abrir caminho à uma nova civilização. Sem este potencial criador das e dos trabalhadores, tanto no terreno econômico como no político, uma perspectiva socialista seria impossível; ficaria enclausurada a problemática do controle operário e a possibilidade da classe trabalhadora, e com ela o movimento de massas, fazer-se cargo da produção [113].

Foucault vai desenvolver uma crítica ao conceito de “sociedade civil” que reaparece com a escola escocesa com Adam Ferguson, que se situa como o suporte do processo e dos laços econômicos mas que, por sua vez, os desborda e não pode reduzir-se a eles. Em Ferguson, a sociedade civil aparece como muito mais que a associação entre diferentes sujeitos econômicos. “Em efeito, remarca Foucault, o que liga os indivíduos em toda sociedade civil não é o máximo de lucro na troca, mas toda uma série que poderíamos chamar de ‘interesses desinteressados’” [114]. E adiciona: “ essa é a primeira diferença entre o laço que une os sujeitos econômicos e os indivíduos que são parte da sociedade civil: há todo um interesse não egoísta, todo um jogo de interesses não egoístas, um jogo de interesses desinteressados muito mais amplo que o próprio egoísmo" [115].

A partir desta ideia de interesses ou paixões “desinteressadas” retomada por Ferguson, poderia se dizer que a sociedade civil desempenha, no Foucault do Nascimento da biopolítica, o papel de uma instância de emancipação frente aos riscos do abuso de poder (totalitarismos), apesar de que o autor rechaça a visão ingênua da “sociedade civil contra o Estado” [116]. Esta tentativa de problematizar a redução da sociedade civil ao puro jogo de oferta e demanda (ainda que baseado em um conceito de sociedade civil pré-hegeliano e pré-marxista) o que poderíamos comparar com a distinção realizada por Gramsci entre “sociedade econômica” (que diz respeito às interações humanas na produção, na distribuição e no consumo) e “sociedade civil” (como terreno “do voluntário”, os partidos, os sindicatos, etc.) e a crítica que realiza faz referência a que o capitalismo se propõe a colonizar sua própria “sociedade civil” [117] e fazer hegemônica a espontaneidade da economia, como oferta e demanda.

Contudo, diferentemente de Foucault, a sociedade civil em Gramsci aparece também "colonizada" pelo Estado (uma hegemonia de coerção blindada). Poderíamos vincular este aspecto à própria crítica que Lazzarato faz da interpretação foucaultiana do neoliberalismo, em tanto que subestima a importância da dimensão repressiva, destrutiva e bélica do mesmo, e superestima as técnicas “produtivas” de poder. No entanto, Gramsci com a noção de “Estado integral” vai para além, marcando a difusa fronteira entre Estado e sociedade civil, com fenômenos que se localizam entre a “coerção” e o “consenso”, ligados à cooptação e ao transformismo dos dirigentes que passam de defender os interesses da classe trabalhadora a defender os interesses da burguesia, dando lugar ao desenvolvimento de novas burocracias no interior das organizações de massas para sustentar a dominação capitalista.
O liberalismo marcou a tentativa de fagocitar a “sociedade civil” em uma “sociedade econômica” reduzida à oferta e à demanda. Posteriormente, com a emergência das organizações da classe trabalhadora (sindicatos e partidos), o Estado saiu para disputar os espaços da sociedade civil que o liberalismo havia deixado desguarnecidos desenvolvendo toda uma série de burocracias no interior das organizações de massas. O neoliberalismo radicalizou a primeira daquelas operações, enquanto que manteve a segunda, ampliando o desenvolvimento das burocracias aos movimentos sociais. O resultado é uma sociedade civil “saturada” desde ambos os flancos, que aponta para combater qualquer “consciência de classe” negando à classe trabalhadora seu caráter de classe produtora e, ao mesmo tempo implementa toda uma série de burocracias para o caso de que aquela primeira instância falhe; desde já, também está o papel chave da repressão, mas isso é o mais evidente.
Neste cenário de hegemonia blindada de coerção (Estado integral), a luta pela autonomia é especialmente chave para um partido revolucionário, assim como a busca de expandi-la através da frente única e uma política hegemônica. Nisso, poderíamos dizer, consiste a noção de “guerra de posições” em Gramsci. É uma forma de luta para evitar aquele “transformismo”, ou seja, para barrar a cooptação e afirmar a independência de classe. Trótski aponta no mesmo sentido, por exemplo, quando aborda o problema dos sindicatos e sinaliza que, com a enorme influência do Estado em toda a vida das classes, os sindicatos já não podem, como na época do capitalismo liberal, se manter indefinidamente como politicamente "neutros" e se limitar à defesa dos interesses cotidianos da classe trabalhadora. Ou se transformam em instrumentos do capitalismo para subordinar e disciplinar a classe operária, ou se transformam em ferramentas independentes de um movimento classista e em perspectiva revolucionária.

Esta conclusão é fundamental em relação às revoltas dos últimos anos. Estes processos voltaram a colocar em primeiro plano um elemento distintivo das revoluções: a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. No entanto, toda essa energia liberada pelo movimento de massas, salvando as exceções onde foi derrotada militarmente, foi em geral desviada para canais institucionais dos regimes burgueses. Contudo, é importante não pensar nestes processos de desvio como uma modificação evolutiva da correlação de forças a favor do movimento de massas. Uma coisa é que não se tenham configuradas claras derrotas na maioria dos casos; no entanto, não são inócuos os processos de desmobilização e os elementos de desmoralização produzidos pelas direções neorreformistas e “populistas de esquerda” que preparam o caminho para variantes de direita.

Sim, como sinaliza Lazzarato, “a autonomia e a independência não estão dadas, mas como sempre é necessário conquistá-las com a luta da organização e a estratégia” [118], a situação colocada pelas revoltas nos apresenta um problema parecido ao que tratava Lênin no Que fazer? no começo do século XX. O “elemento espontâneo” é a forma embrionária do consciente, mas quanto mais poderoso é o auge espontâneo das massas, mas se faz necessário o desenvolvimento dos elementos conscientes, ou seja, de fortes organizações revolucionárias. E isso é assim em uma forma muito mais aguda do que quando Lênin o coloca na Rússia. O cenário que descrevemos antes nos coloca como um elemento vital toda aquela “guerra de posições” para conquistar a autonomia da classe trabalhadora e o movimento de massas como condição indispensável para qualquer vitória revolucionária.

Lazzarato, em Você lembra da revolução?, passa rapidamente pelas elaborações de Gramsci sobre a guerra de posições para se centrar nas suas considerações sobre a guerra colonial quando diz: “A luta política é enormemente mais complexa (que a guerra militar). Em certo sentido pode ser comparada com as guerras coloniais ou com as velhas guerras de conquista, quando o exército vitorioso ocupa ou se propõe ocupar de forma estável todo ou uma parte do território conquistado. Então, o exército vencido é desarmado e dispersado, mas a luta continua no terreno político e no da ‘preparação’ militar” [119]. No entanto, Lazzarato passou por alto do problema (central para Gramsci) do Estado, chegando à assimilação entre as “guerras coloniais” e “os regimes atuais de ‘colonização interna’ e monopólios…” [120]. Neste sentido se perde uma diferença fundamental entre ambos tipos de “guerra”. Como sinaliza Raymond Aron: “A guerra revolucionária é uma guerra de aniquilação: o inimigo, o equipamento ou o governo não pode capitular porque renunciaria simultaneamente à sua existência. Capitula pela fuga, não pela negociação. A guerra de libertação nacional às vezes alcança seu fim político de derrota tática em derrota tática (militar)” [121]. E agrega “a primeira opõe dois pretendentes ao poder dentro de um único país, [...]. A segunda (no caso ideal-típico) opõe um partido à autoridade colonial” [122].
Ou seja, em uma guerra de libertação nacional, o objetivo da independência pode se cumprir conservando as mesmas relações sociais de produção (capitalistas) mediante a retirada do colonizador. Na guerra revolucionária, não. Quem queira obter a vitória deve se impor sobre o capitalismo e articular as bases de um novo sistema social. Neste sentido, sem a classe trabalhadora, enquanto classe produtora, diferente do que dizia Lazzarato, nenhum movimento “anticapitalista” poderá levar adiante a guerra que está colocada. Outro tanto, como dizíamos na parte anterior, acontece no terreno da estratégia com o “poder de fogo” que é dado à classe trabalhadora no controle das “posições estratégicas” para a produção e reprodução da sociedade. Podemos inverter discursivamente a fórmula de Clausewitz mas nunca vamos poder vencer em uma revolução no século XXI sem a classe trabalhadora, pelo menos, na grande maioria dos países do planeta, e menos ainda, no verdadeiro terreno onde se jogará o fim do capitalismo, que é, nem mais, nem menos, o da luta de classes mundial. 

[ADENDO]

GUERRA E REVOLUÇÃO: A PROPÓSITO DO CONCEITO DE “MÁQUINA DE GUERRA”

No pensamento de Deleuze e Guattari, uma das referências para a elaboração do conceito de "máquina de guerra” é o pensamento de Clausewitz e, em particular, sua noção de “guerra absoluta”. Para Clausewitz, essa remete sobretudo ao conceito abstrato de guerra, se refere à tendência da guerra, livre de suas determinações, ao ascenso, aos extremos. No raciocínio dos autores de Mil Platôs, esse conceito é útil para o desenvolvimento da hipótese da heteronomia entre o poder da "máquina de guerra" e o poder do Estado (e, portanto, da política entendida como política estatal). Segundo eles, “Clausewitz prevê esta situação geral quando trata do fluxo da guerra absoluta como uma Ideia, que os Estados fazem sua parcialmente segundo às necessidades da sua política, e com relação a qual são mais ou menos bons ‘condutores’” [123]. Assim, no hiato entre as guerras empíricas e o conceito puro de guerra lêem uma tendência inerente à máquina de guerra a ir para além do Estado.

Sinalizam que: “esta distinção entre uma guerra absoluta como Ideia e guerras reais nos parece de uma grande importância, mas com a possibilidade de outro critério distinto de Clausewitz. A ideia pura não seria a de uma eliminação abstrata do adversário, mas de uma máquina de guerra que não tem precisamente a guerra como objeto” [124]. Deste modo, só quando o Estado captura a máquina de guerra como meio esta última toma como objetivo direto a guerra (e a guerra toma por objetivo privilegiado a batalha). Ou seja, tudo depende de um encontro “exterior” entre o aparato do Estado e a máquina de guerra. Somente a partir deste encontro, a máquina de guerra se subordina à política dos Estados [125]. Quanto mais o Estado interioriza a máquina de guerra, mais esta última se transforma em instrumento direto no solo das políticas da guerra, mas da crescente implicação do Estado nas relações sociais de produção. Neste caminho, a abordagem dos autores vai se assemelhar com a do general Ludendorff, que desenvolveu o conceito de “guerra total” onde a hostilidade já não opunha só exércitos mas sim a totalidade de toda sua população civil, economia, psicologia, etc.

Não faltaram tentativas de assimilar erroneamente o conceito clausewitziano de “guerra absoluta” ou de “guerra total” de Ludendorff – plasmado em Der totale Krieg escrito em 1935 –, apesar da ruptura explícita deste último com Clausewitz a hora de sustentar a primazia da condução militar sobre a política. Mas se tratam de conceitos quase opostos. A “guerra absoluta” é sobretudo um conceito abstrato, mas Clausewitz fala de “guerra absoluta” também em outro sentido, volta a mencioná-lo em repetidas oportunidades para sinalizar que, com as guerras napoleônicas, a guerra se aproxima ao seu conceito. Isso não acontece porque a guerra perde suas determinações históricas, mas sim pela dificuldade de julgar probabilisticamente um inimigo “novo”. Como sinaliza Raymon Aron, para Clausewitz as guerras se aproximam à forma absoluta “quando a novidade revolucionária impede a comunicação implícita favorecida pela moderação” [126]. Pelo contrário, no conceito de “guerra total” o ponto de partida está dado pelo avanço da tecnologia e pelo desenvolvimento democrátfico.
Ou seja, para Clausewitz, logo após a Revolução Francesa, o “povo” que previamente operava como “instrumento cego” passa a ter um peso próprio na guerra (em defesa das conquistas da revolução) e este fato aproximava a guerra ao conceito de “guerra absoluta” [127]. Enquanto que a “guerra total”, como dizíamos, para Ludendorff está associada a fatores objetivos como os avanços da técnica e da demografia. Por outro lado, é certo que Clausewitz assimilava aquela novidade da revolução à sua etapa bonapartista, que vem de mãos dadas com a institucionalização das forças que desata previamente à Revolução francesa, através da constituição da “Grande Armée”– e finalmente pela política do Estado burguês. Mas este elemento não retira a enorme distância que separa aquelas dissertações de Clausewitz sobre a “guerra absoluta”, associada à emergência de uma nova “força moral” na etapa revolucionária da burguesia, com os desenvolvimentos sobre a guerra total e Ludendorff onde o nacionalismo burguês das potências imperialistas se havia transformado em completamente contrarrevolucionário.

Deleuze e Guattari vêem vacilação em Clausewitz “quando mostra que umas vezes a guerra total continua sendo uma guerra condicionada pela finalidade política dos Estados, enquanto que outras tende a efetivar a Ideia da guerra incondicional” [128]. Aqui os autores parecem confundir a perspectiva de Clausewitz com a de Ludendorff. Para este último, a política é um limite artificial para usar meios bélicos (no interior e no exterior) para enfrentar um desafio que não é só geopolítico (URSS) mas externo (o Partido Comunista, também a social democracia enquanto representantes da classe operária). Mas, para Clausewitz, a política não é necessariamente um “moderador” da guerra, depende de qual política estamos falando. “Se a guerra, diz Clausewitz, pertence à política, adquirirá, naturalmente, seu caráter. Se a política é grande e poderosa, igualmente o será a guerra, e isso pode ser levado à altura em que a guerra alcança sua forma absoluta” [129]. Quando o general prussiano faz referências de que as guerras napoleônicas que se aproximam do seu conceito, obviamente não está renegando a sua fórmula, mas sim dando conta da emergência de uma nova política “grande e poderosa”.

Ou seja, Ludendorff está pensando como mobilizar as massas para um objetivo mesquinho e alheio aos seus interesses como a rapina e o saque de outras nações em benefício de um punhado de capitalistas alemães, para o qual, submeter e dobrar as massas nacionais é central (aí está a importância da dimensão “interna” da guerra, para ligar o povo à guerra). No caso de Clausewitz, está tratando de um feito: as massas, diferentemente da etapa anterior, passam a lutar contra a guerra em defesa de interesses próprios, o que se traduz na aparição de uma nova “força moral” que muda todo o equilíbrio europeu e, se a Confederação Germânica não consegue incluir as massas na guerra de modo similar (ainda que com reformas “desde cima”), não poderá derrotar o ímpeto de uma Grande Armée. Assim se pode ver como ambos vislumbram uma relação muito diferente entre guerra e política. É a partir daquela aproximação com Clausewitz que estamos mais próximos de entender o século XX e, dentro dele, o fenômeno definidor da relação que se estabeleceu entre guerra e revolução.

Isso não implica que no desenvolvimento das guerras em grande escala exista, efetivamente, um processo de “autonomização” da máquina de guerra. Mas se trata de um fenômeno preciso e circunscrito cuja prolongação, historicamente, tem levado implacavelmente à revolução. Trótski o analisa durante a Primeira Guerra Mundial nos seguintes termos: “Quanto mais se estendeu o campo das operações militares, mais evidentemente econômicas e políticas (ou seja, imperialistas) se fizeram estas, o controle sobre as operações militares se fez menos real, o objetivo político e as consignas de guerra se transformaram em sombras que seguiam movimentos autossuficientes e os enfrentamentos de massas humanas. O militarismo, que supunha, pela natureza das coisas, ser um instrumento dócil e fiel dos interesses imperialistas, se converteu, pela lógica das próprias coisas, quase completamente “autônomo” e continuou devorando automaticamente todas as forças e os recursos da nação” [130].

Deleuze e Guattari, logo após ter colocado a autonomização da máquina de guerra como fenômeno aparentemente consolidado, vêem na “guerra fria” a efetiva inversão da fórmula, onde a política se transforma na continuação da guerra por outros meios. Uma máquina de guerra que já não tem como objetivo a guerra mas sim a paz da sobrevivência no marco do desenvolvimento do armamento nuclear. Neste contexto deve-se ler sua defesa de que “é a paz que libera tecnologicamente o ilimitado processo material da guerra total” [131]. Mas não foi a sobrevivência em geral (“humanitária”) a que freou uma possível continuidade de guerra dos EUA em 1945 contra a URSS [132], mas sim sua própria sobrevivência política, flanqueada pelas mobilizações contra a guerra nos EUA e pela revolução que explodia em vários países. Até o dia de hoje, o único que limitou a utilização das forças destrutivas do capital , e em particular, o armamento nuclear tem sido a política, mas de uma forma diferente do que colocam Deleuze e Guattari. Não por obra da diplomacia, mas pela impossibilidade de capitalizar politicamente uma hipotética vitória militar, ou, dito em outras palavras, pela impossibilidade de vencer em uma guerra assim sem desatar uma revolução e arriscar perder o poder.
Este problema segue presente hoje na situação mundial e é muito importante lembrá-lo no contexto atual de retorno da guerra entre Estados e o crescente militarismo das grandes potências. Uma das grandes contradições que têm os diferentes imperialismos para ir à guerra em escala internacional e, inclusive, para implementar medidas mínimas como voltar ao recrutamento massivo entre a população, segue sendo o problema de capitalizar politicamente e não acabar abrindo a caixa de pandora.

Com todos os elementos sugestivos que a noção de máquina de guerra pode ter, torna-se um conceito abstrato quando se separa da política, não apenas da política entendida em termos de Estados nacionais, mas, acima de tudo, da política entendida como luta de classes. Sem esta última, mal podemos entender algo do século XX e, o que é mais premente hoje, para desenvolver uma política que possa enfrentar as tendências de guerra, o que necessariamente passa pela luta pela revolução socialista.


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FOOTNOTES

[1Bensaïd, Daniel, Elogio de la política profana, Barcelona, Ediciones Península, 2009, p. 162.

[2Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, Buenos Aires, Tinta Limón, 2022, p. 76.

[3Albamonte, Emilio, Maiello, Matías, “En los límites de la ‘restauración burguesa’”, Estrategia Internacional N.° 27, febrero 2011.

[4Esse ascenso vai durar desde o maio francês de 1968 até o processo revolucionário na Polônia de 1980-81.

[5Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 54.

[6Lazzarato, Maurizio, El capital odia a todo el mundo. Fascismo o revolución, Buenos Aires, Eterna Cadencia, 2020 (Edición digital).

[7Lazzarato afirma que: “O golpe de 1973 no Chile é ao mesmo tempo um modelo: 1) de reapropriação do monopólio do poder ameaçado pela «revolução», 2) de destruição criminosa da ação coletiva dos oprimidos, 3) transformação dos derrotados em regidos pela ação das normas neoliberais” (Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, Buenos Aires, Tinta Limón, 2021, p. 22).

[8No entanto, logo o abandonou em favor de sua análise das relações de poder em termos de biopolítica e governamentalidade, como os principais dispositivos de gestão do neoliberalismo. Nesse ponto, Lazzarato aponta que "a pacificação teórica coincide com a pacificação política, a máquina do Estado capital restaura sua ordem" (Guerra ou revolução. Porque a paz não é alternativa, op. cit., p. 77). Como analisa Lazzarato, no final de sua vida, Foucault retomará de alguma forma essa primeira abordagem em "Sujeito e poder" (1982), onde revê sua própria obra.

[9Foucault, Michel, Defender la sociedad, Buenos Aires, FCE, 2001, pp. 28-29.

[10Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 15.

[11Um dos principais méritos de Clausewitz é ter ido além das “guerras de gabinete” e ter identificado a intervenção das massas na guerra com seu próprio peso como um fenômeno fundamental, ligado à defesa das conquistas da Revolução Francesa. Mas, de fato, o general prussiano não aborda a guerra contra a revolução haitiana e o problema colonial. A sua abordagem centra-se na guerra europeia e mais especificamente na guerra continental.

[12Waldman, Thomas, War, Clausewitz, and the Trinity, London, Routledge, 2016, p. 350.

[13Bassford, Christopher, “The Primacy of Policy and the ‘Trinity’ in Clausewitz’s Mature Thought”, en Strachan, Hew y Herberg-Rothe, Andreas (eds.), Clausewitz in the Twenty-First Century, Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 82.

[14Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 17.

[15Ibidem, p. 15.

[16Ibidem, p. 251.

[17Em suas “Teses sobre o conceito de história” ele apontou que: “A teoria social-democrata, e ainda mais em sua práxis, foi determinada por um conceito de progresso que não aderiu à realidade, mas sim teve uma pretensão dogmática”. E acrescentou: "A ideia de um progresso da raça humana na história é inseparável da representação de seu movimento como avançando por um tempo homogêneo e vazio"(Benjamin, Walter, Tesis sobre la historia y otros fragmentos, México, Editorial Itaca, 2008, pp. 50-51).

[18Cinatti, Claudia, “A guerra na Ucrânia e a reatualização das tendências de crises, guerras e revoluções”, Ideias de Esquerda, 11/06/2022. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/A-guerra-na-Ucrania-e-a-reatualizacao-das-tendencias-de-crises-guerras-e-revolucoes

[19Cfr. Sibertin-Blanc, Guillaume, “The War Machine, the Formula and the Hypothesis: Deleuze and Guattari as Readers of Clausewitz”, Theory and Event, 13:3, 2010.

[20Deleuze, Gilles y Guattari, Félix, Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, Valencia, Pre-Textos, 2002, p. 421.

[21Em seus desenvolvimentos sobre a máquina de guerra, há um ponto de partida que são os povos nômades (máquinas de guerra sem Estado, como os exércitos mongóis de Genghis Khan) e há uma passagem pelas diversas formas de “captura” estatal na antiguidade e no feudalismo (por exemplo, do guerreiro feudal por dívida).

[22O conceito de "guerra total" é original do general Erich Ludendorff (1865-1937). Para Ludendorff, de fato, os objetivos estratégicos incluem não apenas exércitos, mas infraestrutura, recursos financeiros, “reservas” humanas e morais, etc. Este conceito tem sido muitas vezes confundido com a “guerra absoluta” de Clausewitz, quando são bastante opostos, mas voltaremos a ele mais adiante.

[23Deleuze, Gilles y Guattari, Félix, Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, ob. cit., p. 471.

[24Disse o escritor espanhol Don Juan Manuel no século XIV, autor original do conceito (citado por Halliday, Fred, Génesis de la Segunda Guerra Fría, México, FCE, 1989, p. 24).

[25Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 106.

[26Ibidem, p. 111.

[27Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 31.

[28Os antecedentes da atual configuração remontam a 2004 e à disputa eleitoral entre Viktor Yushchenko (pró-Ocidente) e Viktor Yanukovych (pró-Rússia) que levou a acusações de fraude e deu origem à já mencionada "revolução laranja" e que acabou levando Yushchenko ao governo. Então, em 2010, Yanukovych ganhou as eleições e em 2013-14 haverá uma revolta contra seu governo que acabaria sendo conhecida como Euromaidan (por causa de seu centro na Praça da Independência – a transliteração de “praça” é Maidan – e por sua principal palavra de ordem ser a entrada na União Europeia). Brutalmente reprimida, a revolta será cada vez mais dominada por forças pró-ocidentais reacionárias e de extrema-direita. Após a queda de Yanukovych, grupos armados pró-Rússia assumirão os governos de Donetsk e Lugansk, e o parlamento da Crimeia, uma região que a Rússia eventualmente anexará.

[29A minoria de língua russa foi alvo de medidas opressivas, incluindo restrições ao uso de sua língua e ataques de grupos de ultradireita patrocinados pelo Estado.

[30Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., 329.

[31Haass, Richard, “Ten Lessons from the Return of History”, Project Syndicate, 13/12/2022. Disponível em: https://www.project-syndicate.org/commentary/ten-international-relations-lessons-of-2022-by-richard-haass-2022-12.

[32Smith, Rupert, The Utility of Force, New York, Alfred Knopf, 2007 (Edición digital).

[33Ver Schmitt, Carl, El nomos de la Tierra, Buenos Aires, Editorial Struhart & Cía., 2005.

[34Smith, Rupert, The Utility of Force, ob. cit.

[35Pelli, Gerónimo, “Apuntes sobre la dimensión informática en la guerra: el caso Rusia-Ucrania”, Ideas de Izquierda, 13/3/2022. Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/Apuntes-sobre-la-dimension-informatica-en-la-guerra-el-caso-Rusia-Ucrania.

[36Essas contribuições diretamente militares também foram marcadas por múltiplas contradições em termos de coerência operacional e logística do material entregue, treinamento do exército ucraniano para seu uso, etc. O anúncio mais recente da entrega de um contingente de tanques de última geração, como o americano M1 Abrams ou o alemão Leopard 2, levanta algo semelhante. Para uma análise, veja: Maiello, Matías, “Alguns elementos para a análise militar da guerra da Ucrânia", Ideias de Esquerda, 08/05/2022. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Alguns-elementos-para-a-analise-militar-da-guerra-na-Ucrania

[37Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit. P. 342.

[38Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 118.

[39Ibidem, p. 49.

[40Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 62.

[41Cfr. Harvey, David, El nuevo imperialismo, Madrid, Akal, 2004.

[42Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 98.

[43Ibidem, p. 173. Este assunto foi abordado com profundidade pelo autor em seu livro La fábrica del hombre endeudado (Buenos Aires, Amorrortu, 2013).

[44Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 61.

[45Chingo, Juan, “O fim dos ventos favoráveis da globalização neoliberal desde o final dos anos 1970”, Ideias de Esquerda, 2/10/2022. Disponivel em: https://www.esquerdadiario.com.br/O-fim-dos-ventos-favoraveis-da-globalizacao-neoliberal-desde-o-final-dos-anos-1970

[46Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 313.

[47Este é o cenário que leva economistas como Nouriel Roubini a afirmar que: “As próximas crises não serão como as que as precederam. Na década de 1970, tivemos estagflação, mas não grandes crises de dívida, porque os níveis de dívida eram baixos. Depois de 2008, tivemos uma crise de dívida seguida de baixa inflação ou deflação, porque a crise de crédito gerou um choque negativo de demanda. Hoje, estamos enfrentando choques de oferta em um cenário de níveis de endividamento muito mais altos, o que implica que caminhamos para uma combinação de estagflação ao estilo dos anos 1970 e crises de endividamento ao estilo de 2008 – ou seja, uma crise de dívida estagflacionária” (“Una crisis de deuda estanflacionaria al acecho”, Project Syndicate, 29/6/2022).

[48Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 94.

[49O general Beaufre foi um expoente desse penúltimo tipo de definição funcional: “Alguns, como Bouthoul, tentaram caracterizar a guerra em seu aspecto sangrento. Acho que é uma abordagem muito particular, porque diz respeito apenas à guerra militar. Não abrange, portanto, os confrontos às vezes muito graves que constituem as guerras econômicas e políticas, que podem ocorrer sem batalhas ou combates” (Beaufre, André, La guerra revolucionaria, Buenos Aires, Editorial Almena, 1979, p. 50).

[50Aron, Raymond, Pensar la Guerra, Clausewitz, Tomo II La Era Planetaria, Buenos Aires, Instituto de Publicaciones Navales, 1987, p. 48.

[51Cfr. Lenin, V. I., “Sobre las huelgas”, Obras Completas, Tomo IV, Madrid, Akal, 1975.

[52Trotsky, León, ¿Adónde va Francia? / Diario del exilio, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2013 (Obras Escogidas 5, coeditadas con el Museo Casa León Trotsky), p. 83.

[53Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 95.

[54Trotsky, León, “Los problemas de la guerra civil”, CEIP León Trotsky. Disponível em: http://www.ceip.org.ar/Los-problemas-de-la-guerra-civil.

[55Trotsky, León, Trotsky, León, ¿Adónde va Francia? / Diario del exilio, ob. cit., pp. 68.

[56Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 66.

[57Trotsky, León, ¿Adónde va Francia? / Diario del exilio, ob. cit., pp. 67-68.

[58Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 42.

[59Ibidem, p. 43.

[60Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 57.

[61Cfr. Marx, Karl, “La guerra civil en Francia”, en Marx, Karl y Engels, Friedrich, Revolución (compilación), Buenos Aires, Ediciones IPS, 2018.

[62Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 372.

[63Foucault, Michel, Dits et écrits III, París, Gallimard, 1994, p. 408.

[64Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 427.

[65Clausewitz, Carl von, De la guerra, Tomo III, Buenos Aires, Círculo Militar, 1969, p. 11.

[66Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 428.

[67Ibidem, p. 25.

[68Maiello, Matías, De la movilización a la revolución, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2022.

[69Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit. p. 34.

[70Trotsky, León, “Los problemas de la guerra civil”, ob. cit.

[71Trotsky, León, “El bonapartismo alemán”, CEIP León Trotsky. Disponível em: https://ceip.org.ar/El-bonapartismo-aleman.

[72Barot, Emmanuel, “Entre ‘pire’ et ‘moindre mal’? Le tandem Le Pen-Macron, ou comment être piégé entre deux variantes du bonapartisme”, Révolution permanente, 28/4/2017. Disponível em: https://www.revolutionpermanente.fr/Entre-pire-et-moindre-mal-Le-tandem-Le-Pen-Macron-ou-comment-etre-piege-entre-deux-variantes-du.

[73Cinatti, Claudia, “El traspié de Trump no es fake news”, Ideas de Izquierda, 11/11/2018. Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/El-traspie-de-Trump-no-es-fake-news.

[74Matos, Daniel, “Bolsonaro: fascismo ou bonapartismo?”Ideias de Esquerda, 14/10/2018. Disponível em https://esquerdadiario.com.br/ideiasdeesquerda/?p=506

[75É importante assinalar, embora não seja o ponto aqui, que a própria concentração de poder no executivo, a marginalização do parlamento, etc. possuem expressões variadas na periferia. Nesse sentido, Trotsky também desenvolve a noção de "bonapartismo sui generis" para dar conta de um tipo especial de bonapartismo, típico do mundo semicolonial, onde a fraqueza da burguesia local coloca a classe trabalhadora e o imperialismo como as duas classes fundamentais. Pode ser ora um instrumento deste último para ajustar as correntes do proletariado, ora se apoiando na classe trabalhadora, chegando a fazer concessões a ela, para obter uma certa independência do imperialismo, mas arregimentando o movimento de massas (com esta última variante do conceito de bonapartismo sui generis “de esquerda” explicou o governo de Cárdenas). Embora nas últimas décadas não tenham ocorrido fenômenos que se enquadrem plenamente nessa definição (o mais próximo foi Chávez), alguns elementos nesse sentido puderam ser percebidos no que se conhece como “populismo de esquerda” na América Latina, por exemplo.

[76Para um desenvolvimento sobre o "bonapartismo judicial”, ver: Maiello, Matías, "Bonapartismo de toga”, Ideias de Esquerda, 28/8/2018. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Bonapartismo-de-toga

[77Lazzarato, Maurizio, El capital odia a todo el mundo. Fascismo o revolución, ob. cit.

[78Trotsky, León, “¿Y ahora? Problemas vitales del proletariado alemán”, La lucha contra el fascismo en Alemania, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2013 (Obras Escogidas 3, coeditadas con el Museo Casa León Trotsky), p. 121.

[79Cfr. Trotsky, León, “Bonapartismo y fascismo”, CEIP León Trotsky, https://ceip.org.ar/Bonapartismo-y-fascismo.

[80Lazzarato, Maurizio, El capital odia a todo el mundo. Fascismo o revolución, ob. cit.

[81Lazzarato, Maurizio, ¿Te acuerdas de la revolución? Minorías y clases, Buenos Aires, Eterna cadencia, 2022 (Edición digital).

[82Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 33.

[83Lenin, V. I., “¿Qué hacer?”, Obras selectas, Tomo 1, Buenos Aires, Ediciones IPS CEIP León Trotsky, 2013, p. 125.

[84Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 39.

[85Martínez, Josefina L., “Feminismo, interseccionalidad y marxismo: debates sobre género, raza y clase”, Ideas de izquierda, 24/2/2019. Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/Feminismo-interseccionalidad-y-marxismo-debates-sobre-genero-raza-y-clase.

[86Taylor, Keaanga-Yamahtta, Un destello de libertad. De #Blacklivesmatter a la liberación negra, Madrid, Traficantes de sueños, 2017, p. 240.

[87Como discutimos em De la movilización a la revolución, essa perspectiva se opõe diretamente à ideia de setores que reivindicam o programa da velha social-democracia, segundo a qual as reivindicações supostamente do movimento de mulheres ou do movimento negro podem "dividir" a classe, e, portanto, deve ser colocado em segundo plano em relação às demandas puramente econômicas.

[88Segato, Rita, La guerra contra las mujeres, Madrid, Traficantes de Sueños, 2016 (Edición digital).

[89Idem.

[90Ver a respeito do interessante artigo de Robert Brenner y Dylan Riler, “Seven theses on american politics”, New Left Review N.° 138, Noviembre/Diciembre 2022.

[91Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 429.

[92Clausewitz, Carl von, De la Guerra, Buenos Aires, Solar, 1983, p. 557.

[93As “posições estratégicas”, embora tenham encontrado a força da classe trabalhadora, por outro lado, não correspondem imediatamente à classe trabalhadora como um todo, mas aos setores dela que as detêm. Desta forma, devido ao seu “poder de fogo” também são mais capazes de obter concessões particulares da burguesia. Esse corporativismo é o fundamento mais estável – além da compra direta ou corrupção dos dirigentes – da fragmentação (e diferenciação social) do proletariado com o qual opera a burocracia sindical. Do outro lado estão os setores da classe que não ocupam postos estratégicos; portanto, com menor capacidade de negociação e organização, o que os torna, por um lado, mais fracos e, por outro, potencialmente mais explosivos. Esta divisão é precisamente a negação da “força operária”.

[94Cfr. Gaudichaud, Franck, “Pensando las fisuras del neoliberalismo ‘maduro’. Trabajo, sindicalismo y nuevos conflictos de clases en el Chile actual”, Revista Theomai N.° 36, 2017.

[95Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 422.

[96Trotsky, León, “El Programa de Transición”, en El Programa de Transición y la fundación de la IV Internacional, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2017 (Obras Escogidas 10, coeditadas con el Museo Casa León Trotsky), p. 65.

[97Lazzarato, Maurizio, ¿Te acuerdas de la revolución? Minorías y clases, ob. cit.

[98En estas páginas tomamos la aproximación de Lazzarato, pero en los últimos años hay elaboraciones importantes sobre estos aspectos que, obviamente, ameritarían un debate específico, como las de Isabelle Garo y Frédéric Lordon. La primera, en su libro Communisme et stratégie (2019) retoma una serie de reflexiones clásicas sobre la problemática de la mediación y señala que la mediación y representación específicamente marxista radica en la construcción de una organización y cultura política capaz de poner en pie una alternativa que surja desde dentro de los procesos y movimientos de resistencia al capitalismo. Plantea la necesidad de articular prácticas sociales, políticas y culturales como forma de construir una alternativa al capitalismo, con eje en la movilización y organización desde abajo (Ver Dal Maso, Juan, “Marx: el comunismo como estrategia”, Ideas de Izquierda, 19/5/2019, disponible en: https://www.laizquierdadiario.com/Marx-el-comunismo-como-estrategia). Por su parte, Lordon formula la idea de “recomuna”. Con esta expresión hace jugar la idea de “república” pero para ampliar en número y finalidades “la cosa pública” de la que intenta dar cuenta. Su objetivo es sugerir que el principio de la democracia radical se aplicaría a toda empresa. Sostiene que el volumen de empleo, lo que se debe fabricar, cantidades, ritmos, etc. no deberían escapar a la deliberación común puesto que tienen consecuencias comunes (Ver: Lordon, Frédéric, Capitalismo, deseo y servidumbre. Marx y Spinoza, Buenos Aires, Tinta Limón, 2014; más recientemente: Figures du communisme, La fabrique éditions, París, 2021).

[99Lenin, V. I., “Tesis e informe sobre la democracia burguesa y la dictadura del proletariado”, Marxist Internet Archive. Disponible en: https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1910s/internacional/informe.htm.

[100Poulantzas, Nicos, Estado, poder y socialismo, Madrid, Siglo XXI, 1980. Artous, Antoine, Marx, l’État, et la politique, París, Syllepse, 1999. Lih, Lars, “Kautsky y Lenin sobre la república y el Estado”, Sin Permiso, 19/5/2013.

[101Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 303.

[102Nos referimos ao artigo de 1921, “Lecciones de la Comuna”. Disponível em: https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1920s/1921_0204_1.htm.

[103Bensaïd, Daniel, Elogio de la política profana, ob. cit., p. 169.

[104Cfr. Marx, Karl, “La guerra civil en Francia”, en ob. cit.

[105Nas eleições para a Assembleia Nacional os setores monárquicos tiveram um amplo triunfo. Paris votou predominantemente em candidatos republicanos, mas o mundo rural do resto do país apoiou os representantes da reação, por isso foi chamada de "assembléia dos ruralistas". (Para um desenvolvimento, ver: Castillo, Christian, “Marx, Engels y las revoluciones del siglo XIX”, en Marx, Karl y Engels, Friedrich, Revolución (compilación), ob. cit.).

[106Para um desenvolvimento mais amplo dessa argumentação, ver: Maiello, Matías, “Una democracia de otra clase: sobre los usos de la Comuna de París”, Ideas de Izquierda, 21/3/2021. Disponible en: https://www.laizquierdadiario.com/Una-democracia-de-otra-clase-sobre-los-usos-de-la-Comuna-de-Paris.

[107No entanto, existem processos que fogem desse padrão. Podemos localizar aqui o movimento de resistência ao golpe na Bolívia em 2019 que desenvolveu instâncias, ainda que de curta existência, como o Cabildo Abierto del Alto e foi em busca de pontos estratégicos capazes de quebrar a resistência dos líderes golpistas, como a planta de hidrocarbonetos em Senkata (Ver: Maiello, Matías, “Bolivia: lucha de clases y posiciones estratégicas”, Ideas de Izquierda, 24/11/2019. Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/Bolivia-lucha-de-clases-y-posiciones-estrategicas).

[108Ver por ejemplo, Di Cesare, Donattella, El tiempo de la revuelta, Siglo XXI España, 2021.

[109Lazzarato, Maurizio, ¿Te acuerdas de la revolución? Minorías y clases, ob. cit., p. 315.

[110Sobre esse ponto, ver: Maiello, Matías, “De la fragmentación a la hegemonía: encrucijadas de la lucha de clases actual”, Ideas de Izquierda, 1/12/2019. Disponível em: https://www.laizquierdadiario.com/De-la-fragmentacion-a-la-hegemonia-encrucijadas-de-la-lucha-de-clases-actual.

[111Alliez, Éric y Lazzarato, Maurizio, Guerras y capital. Una contrahistoria, ob. cit., p. 337.

[112Albamonte, Emilio y Maiello, Matías, “A classe trabalhadora como produtora em Gramsci e Trótski”, entrevista por Daniel Matos, Ideias de Esquerda, 18/6/2022. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/A-classe-trabalhadora-como-produtora-em-Gramsci-e-Trotski. Ver também a respeito: Badaloni, Nicola, “Libertà individuale e uomo collettivo in Gramsci”, en Ferri, Franco (comp.), Politica e storia in Gramsci, Roma, Editori Riuniti, 1977.

[113Vale notar que quando falamos de socialismo nos referimos ao movimento real que, como diziam Marx e Engels, anula e supera o atual estado de coisas e onde os trabalhadores lutam para recuperar seu tempo livre, bem como o objetivo de uma nova sociedade onde os produtores se associam livremente, trabalham com meios coletivos de produção e juntam suas forças individuais como uma grande força de trabalho social.

[114Foucault, Michel, Nacimiento de la biopolítica, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 342.

[115Ibidem, p. 343.

[116Celine Spector, “Foucault, la ilustración y la historia: la emergencia de la sociedad civil”, en Youkali. Revista crítica de las artes y del pensamiento nº 13, Julio 2012, pp. 101-112.

[117Cfr. Badaloni, Nicola, “Libertà individuale e uomo collettivo in Gramsci”, ob. cit.

[118Lazzarato, Maurizio, Guerra o revolución. Porque la paz no es una alternativa, ob. cit., p. 128.

[119Cfr. Gramsci, Antonio, “Lucha política y guerra militar” (Q1, §134), Cuadernos de la cárcel, Tomo 1, México, Ediciones Era, 1981.

[120Lazzarato, Maurizio, ¿Te acuerdas de la revolución? Minorías y clases, ob. cit.

[121Aron, Raymond, Pensar la guerra, Clausewitz, Tomo II La Era Planetaria, o. cit., p. 141.

[122Ibidem, p. 142.

[123Deleuze, Gilles y Guattari, Félix, Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, ob. cit., 362.

[124Ibidem, p. 419.

[125Assim, um dos problemas centrais abordados pelos autores é a apropriação da máquina de guerra pelo Estado e suas condições de possibilidade. “A integração dos nômades nos impérios conquistados foi um dos fatores mais poderosos da apropriação da máquina de guerra pelo aparelho de Estado: o perigo inevitável a que sucumbiram os nômades” (Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, ob. cit. p. 418). De forma mais geral, Deleuze e Guattari falam sobre a "incorporação" de certos grupos sociais (mercenários, milícias, condottieres, forças especiais etc.) e analisam as formas de "territorialização" dos guerreiros e a incorporação de suas forças ao Estado.

[126Aron, Raymond, Pensar la guerra, Clausewitz, Tomo I La Era Europea, Buenos Aires, Instituto de Publicaciones Navales, 1987, p. 227.

[127Clausewitz disse: “Na época das guerras da Silésia, no século XVIII, a guerra ainda era um mero assunto de gabinete, no qual o povo participava apenas como um instrumento cego; no início do século XIX os povos de ambos os lados pesavam na balança” (Clausewitz, Carl, De la guerra, ob. cit., p. 543).

[128Deleuze, Gilles y Guattari, Félix, Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, ob. cit., p. 420.

[129Clausewitz, Carl von, De la guerra, ob. cit., p. 567.

[130Citado em Heyman, Neil, “Leon Trotsky as a military thinker”, tesis inédita de posdoctorado, Stanford, Stanford University, 1972., p. 95.

[131Deleuze, Gilles y Guattari, Félix, Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia, ob. cit., p. 471.

[132Como sustenta Pierre Naville, "as duas explosões nucleares de 1945 encerraram, com seus imensos fornos, um conflito que já estava introduzindo um novo" (Naville, Pierre, “Clausewitz en la actualidad”, en Clausewitz, Carl von, De la guerra, Buenos Aires, Terramar, 2005, p. 296).
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Matías Maiello

Buenos Aires

Emilio Albamonte

Dirigente do PTS, membro do Staff da revista Estratégia Internacional
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