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Tribuna Aberta | Parnamirim, entre aviões e pregações: Duas chaves para entender a última cidade bolsonarista do RN

José Rolfran de Souza TavaresDoutorando em Antropologia Social pelo PPGAS-UFRN

sexta-feira 11 de novembro de 2022 | Edição do dia

Uma maré vermelha inundou o Rio Grande do Norte no último processo eleitoral, Lula, o candidato petista, obteve a maioria dos votos em 166 dos 167 municípios que existem no estado, repetindo a marca já alcançada no primeiro turno. Parnamirim foi novamente a única cidade que destoou das demais, nela Bolsonaro conseguiu o maior número de votos pela quarta vez consecutiva, já que nos pleitos de 2018 ele também foi o presidenciável mais votado. Nas ruas do município, o apoio popular ao candidato derrotado continuou sendo expresso visceralmente mesmo depois do encerramento da eleição, já que a BR que corta a cidade foi o palco para atos antidemocráticos que visavam fortalecer a tentativa de golpe que quer fazer Bolsonaro se manter no poder.

A pergunta, que parece de fácil resposta, é: por que o bolsonarismo ainda encontra um solo tão fértil em Parnamirim mesmo o RN estando abraçando tão fortemente o lula-petismo? Muitas/muitos que conhecem o município podem falar com segurança que é devido à influência evangélica e militar que historicamente existe na cidade, afirmação que tenho acordo, porém ela é apenas a ponta do iceberg, o que dar pra ver da superfície. Analisando profundamente se descobre que existem configurações socioantropológicas muito complexas que viabilizam o crescimento de ideias fascistas no município, tal qual as bolsonaristas. Peço licença para, neste texto, humildemente dividir o que venho acumulando em pesquisas teóricas e empíricas sobre as dinâmicas sociais de Parnamirim, já que compreendo que só refletindo sobre determinadas questões muito delicadas que acontecem nessa cidade poderemos avançar no debate democrático no nosso estado, quiçá no país.

Antes de mais nada precisamos entender a formação histórica de Parnamirim, pois com isso é possível compreender a matriz de muitas contradições que persistem no município e são a base de uma série de desigualdades, as quais geram noções problemáticas e desejos por soluções descabidas em muitas/muitos munícipes. Neste sentido cabe chamar atenção para o apreço com a aeroespacialidade que existe na cidade, quem já andou em Parnamirim sabe que é fácil se deparar com símbolos que remetem a aviões e foguetes, isso porque a narrativa oficial e popular sobre o surgimento do município tenta sustentar que foram as iniciativas de aviadores e militares que garantiram a fundação do município, isso porque eles teriam vindo pra Parnamirim desenvolver rotas de voo ou fazer guerras e sem querer formaram uma cidade também, já que para ter campos de voo e bases aéreas é preciso ter trabalhadoras/trabalhadores para construir, como esse povo que veio trabalhar ficou, acabou um município surgindo.

Suscintamente, construí a última sequência de causa e efeito para a formação de Parnamirim evidenciando lacunas sérias que propositalmente são deixadas por quem sustenta essa narrativa, porque escrevendo dessa forma tão caricata dar pra se fazer perguntas importantes que nos levam a situação que temos hoje na cidade, algumas delas são: 1. antes das/dos aviadores e militares chegarem, não existia ninguém no lugar que depois se tornou Parnamirim? 2. Quem foram as/os trabalhadoras/trabalhadores que vieram pra construir o campo de pouso e depois as bases aéreas? 3. Por que essas/esses trabalhadoras/trabalhadores se mantiveram na cidade mesmo depois de finalizar seus serviços? 4. Como o que essas/esses trabalhadoras/trabalhadores fizeram para se manter naquele lugar contribuiu para formação do município? Para possibilitar mais uma indagação pertinente, acrescento a informação de que Parnamirim é desde sua fundação a cidade que mais cresce em volume populacional no RN e nesse quesito também se destaca no país, com isso também cabe questionar: 5. Se são os aviadores em um primeiro momento e os militares depois que impulsionam a vinda de pessoas para Parnamirim, por que elas não param de chegar a cidade mesmo depois das grandes obras desse segmento terem acabado?

Mesmo antes de dar as respostas, espero que a/o leitora/leitor já consiga perceber que essa narrativa do surgimento de Parnamirim devido as ações de aviadores e militares não tem consistência sócio-histórica. Agora vamos as respostas: 1. sim, existiam populações que moravam no local que depois passou a ser Parnamirim, no meu levantamento eram três, os indígenas Guaraíras, os quilombolas de Moita Verde e a comunidade camponesa do povoado de Passagem de Areia; 2. As/os trabalhadoras/trabalhadores que vieram construir o campo de pouso e depois as bases aéreas eram em sua maioria sertanejas/sertanejos pobres; 3. Muitas dessas/desses trabalhadoras/trabalhadores estavam lutando pelas suas vidas e de suas famílias, fugindo de situações de extrema pobreza geradas por desigualdades de acesso à terras e condições agricultáveis, elas/eles encontraram uma oportunidade de sobrevivência na construção civil ou no setor de comércio e serviços que se desenvolveu devido a alta populacional, posteriormente também na indústria; 4. Sendo tratadas/tratados apenas como mão de obra para um serviço eventual, não se buscou garantir condições dignas para manutenção das/dos trabalhadoras/trabalhadores próximo do lugar onde trabalhavam, nem durante e muito menos depois da execução da obra, coube a essas/esses trabalhadoras/trabalhadores lutar por reformas urbanas, pelo direito fundiário e contra a gentrificação, sendo esse último processo muitas vezes perdido, fazendo com que essas/esses trabalhadoras/trabalhadores e suas/seus descendentes ficassem cada vez mais distantes do lugar onde estava a primeira fonte de renda que tiveram quando chegaram no que seria Parnamirim. Também coube a elas/eles desenvolverem o mercado que absolveria sua força de trabalho depois que as obras da base acabaram, sendo a saída o trabalho na área de comércio e serviços, setor que até hoje é o com maior empregabilidade no município; 5. Parnamirim não parou de receber grandes contingentes populacionais porque a estrutura urbana conseguida pela luta das/dos trabalhadoras/trabalhadores pobres e o setor comercial dinâmico que criaram garantiu um lugar com oportunidades consideráveis em meio a tantas precariedades que existem no RN, situação que se destaca inclusive na região metropolitana, além disso a cidade possui imóveis mais baratos do que a capital e é limítrofe com ela, o que torna a moradia no município estratégica para quem tem atividades laborais em Natal, mas não possui condições para residir na capital.

Escrevi isso tudo para evidenciar que Parnamirim é uma cidade que foi formada principalmente por indígenas, quilombolas, camponesas/camponeses, migrantes sertanejas/sertanejos e intrametropolitanas/intrametropolitanos condensadas/condensados em uma massa de trabalhadoras/trabalhadores pobres jogadas/jogados a própria sorte, que por isso lutaram e lutam pela sobrevivência sua e de seus iguais, nessa batalha conseguem feitos grandiosos, como a conquista de um município que se destaca entre os demais do RN, porém essas pessoas estão alienadas da sua própria história, já que foram levadas a acreditar que foi a ação de aviadores e militares que garantiu a possibilidade de existência delas e de suas famílias no lugar onde moram. É nessa distorção que emerge a relevância do militarismo para muitas/muitos parnamirinences, porém não acaba aí. Lembra
dos processos de gentrificação que falei acima? Eles trouxeram outro elemento importante para o quase endeusamento do militarismo em Parnamirim, pois ao passo que trabalhadoras/trabalhadores eram empurradas/empurrados para longe do campo de pouso/base aérea, se construíam vilas militares naquele lugar, canto onde estava tendo os primeiros investimentos em desenvolvimento urbano. Devido a narrativa que coloca aviadores/militares como heroicos fundadores de Parnamirim, a desigualdade urbana que esse processo criou passou a ser justificada pela lógica de que sempre as/os militares deveriam primeiro saborear as benesses públicas, já que elas/eles chegaram de forma pacífica e ordeira no lugar onde do nada surgiu a cidade. Isso gerou um terrível impacto simbólico, porque deixou explícito que ser militar ou morar perto delas/deles era ter acesso facilitado a direitos sociais. Pior que isso, o mito de origem de Parnamirim camuflou a violência dos processos de gentrificação e distribuição desigual do desenvolvimento urbano, e realizou esse movimento apontando que o incrível poder das/dos militares para criar a poderosa cidade veio do como o autoritarismo garante um alto padrão de qualidade dos bens públicos, razão pela qual supostamente nos bairros com vilas militares as coisas funcionam melhor. Desse embrolho emerge o fetiche parnamirinense pelo autoritarismo militar.

Essa situação piora quando é somada ao delírio fanático evangélico, o qual leva as últimas consequências a sacralização do sofrimento em nome de uma vida melhor no pós-morte, impondo que não só a/o fiel tenha essa compreensão mas também as/os que a/o cerca. Antes de comentar sobre isso, cabe dizer o papel de socialização que as igrejas evangélicas têm em Parnamirim, pois sendo uma cidade com tão poucas opções acessíveis de cultura, esporte e lazer, muitas vezes as/os munícipes tem na sua comunidade religiosa a única oportunidade de construir vínculos para além das atividades laborais e familiares. Some a isso a grande relevância que tem a rede de apoio disponibilizada pela maioria dessas igrejas para pessoas em extrema pobreza, pois as/os residentes de Parnamirim não têm acesso a uma política de assistência social que atenda adequadamente as suas demandas. Também é preciso pontuar que, em uma cidade com sérias limitações no sistema de saúde, pessoas com problemas mentais e/ou fazendo uso problemático de drogas muitas vezes só encontram acolhimento naquelas instituições religiosas, tanto para elas quanto para suas famílias essa situação costuma ser vista como uma providência divina que deve ser respondida com devoção. Trouxe essas informações porque com elas é possível se entender o porquê dos delírios de muitas lideranças evangélicas em Parnamirim serem acatadas pelas/pelos suas/seus seguidoras/seguidores, muitas dessas pessoas só têm aquela rede de sociabilidade, dependem dela para muita coisa e a vêm como a salvação para problemas que as instituições estatais não conseguiram resolver ou nem sequer tentaram resolver. É importante grifar que nem toda/todo parnamirinense evangélica/evangélico é uma/um fanática/fanático delirante, inclusive me solidarizo as/aos evangélicas/evangélicos críticos da cidade, que sofrem constantemente perseguição por não associarem sua fé ao fascismo.

Espero que a essa altura do texto você já consiga entender que Parnamirim é a terra de um povo batalhador que perdeu a noção do seu potencial revolucionário devido as várias negligências a que vêm sendo submetidas/submetidos, as/os desvalidas/desvalidos da cidade só foram abraçadas/abraçados pelas pessoas erradas. O fetiche pelo autoritarismo militar e o delírio fanático evangélico são as duas chaves que trago para entender a vitória do bolsonarismo em Parnamirim, todavia, convenhamos, provavelmente em vários outros cantos do Brasil essas mesmas chaves poderiam ser usadas. Acredito que, de uma maneira problemática, Parnamirim está ensinando para democracia brasileira que ela sempre estará em risco enquanto não houver justiça social e ampla participação popular nos processos de decisão, porque se Parnamirim não fosse tão desigual talvez o fetiche pelo autoritarismo militar não existisse e se as pessoas fossem mais acolhidas/ouvidas/atendidas não estariam tão a merce de charlatãs/charlatões que fomentam o delírio fanático evangélico.

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José Rolfran de Souza Tavares possui bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais pela UFRN, é mestre e atualmente faz doutorado em Antropologia Social pelo PPGAS-UFRN. Tem dedicado maior parte da sua formação ao debate das relações raciais, conectando esse tema com a formação do Estado brasileiro, o encarceramento em massa e o extermínio da juventude negra, focando nas desigualdades educacionais e urbanas a que esse segmento é submetido.
Nós últimos quatro anos concentrou sua atenção nas dinâmicas de insegurança pública nos bairros ao oeste de Parnamirim-RN, local onde vem desenvolvendo seu campo de pesquisa.




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