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[Prefácio] Mulheres, revolução e socialismo: um livro para abrir a imaginação de outra sociedade

Josefina L. Martínez

Diana Assunção

[Prefácio] Mulheres, revolução e socialismo: um livro para abrir a imaginação de outra sociedade

Josefina L. Martínez

Diana Assunção

Apresentamos o prefácio em português do livro "Mulheres, revolução e socialismo", lançado simultaneamente na Argentina, Estado Espanhol, México, Chile, Bolívia, Uruguai e Brasil. Um livro com escritos de Karl Marx, Friedrich Engels, Eleonor Marx, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai, Inessa Armand, Vladimir Lenin e Leon Trótski. Trata-se da maior compilação de textos clássicos do marxismo sobre a questão da mulher já publicada no Brasil e em língua portuguesa. O prólogo foi escrito por Josefina Martínez, do Pão e Rosas do Estado Espanhol, e por Diana Assunção, fundadora do Pão e Rosas Brasil.

Os escritos de Karl Marx, Friedrich Engels, Eleanor Marx, Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai, Inessa Armand, Vladimir Lênin e Leon Trótski que reunimos aqui abordam importantes reflexões teóricas e políticas sobre a emancipação das mulheres a partir de uma perspectiva socialista. A compilação abarca um longo período, atormentado por acontecimentos históricos e eventos revolucionários. Desde a publicação do Manifesto Comunista por Marx e Engels em 1847, até a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) e da Comuna de Paris em 1871. Das Conferências das Mulheres Socialistas, antes e durante a Primeira Guerra Mundial, à grande experiência histórica da Revolução Russa de 1917, à fundação da Terceira Internacional e à subsequente burocratização stalinista. Os escritos selecionados abordam temas como a opressão das mulheres na sociedade capitalista e o papel da família patriarcal; as lutas das mulheres trabalhadoras; a exigência do sufrágio feminino e outras demandas democráticas; a necessidade de socializar o trabalho doméstico e a organização das mulheres dentro dos partidos socialistas e comunistas. O elo vermelho que une esses escritos é a necessidade de vincular as múltiplas lutas diárias pelos direitos das mulheres e da classe trabalhadora – que inclui milhões de mulheres – com a perspectiva socialista. Portanto, pensamos que muitos desses textos fornecem bases metodológicas, reflexões e pistas para pensar os problemas atuais, como parte do desafio de recriar as elaborações do feminismo socialista no século XXI.

Nos últimos anos, vimos o surgimento de movimentos massivos de mulheres que questionaram a violência machista, convocaram greves de mulheres, exigiram direitos reprodutivos, abriram o debate sobre o trabalho de reprodução nos lares, sobre a feminização da pobreza ou as intersecções entre patriarcado, racismo e capitalismo. Após dois anos de pandemia, e sob o impacto das consequências da guerra na Ucrânia, com o aumento da inflação, as tendências à mobilização reaparecem em diferentes latitudes. Tomados em conjunto, eles fazem parte de um retorno mais geral da luta de classes, que se realizou em vários ciclos, desde a irrupção da crise capitalista de 2008 até o presente [1]. Ao mesmo tempo, no entanto, vários mecanismos não deixaram de operar repetidamente para desviar a mobilização para diferentes formas de institucionalização, com o objetivo de alcançar a recomposição dos regimes políticos em crise. E, entretanto, a precarização, a degradação das condições de vida de amplos setores da população trabalhadora, a violência contra as mulheres e a juventude, só pioraram, mostrando a urgência daquele dilema que Rosa Luxemburgo levantou há mais de cem anos, entre o socialismo ou a barbárie.

Nesse contexto, marcado por múltiplas crises, tornam-se relevantes os debates teóricos e estratégicos sobre como alcançar caminhos para a emancipação. Polêmicas que atravessam o movimento feminista desde o seu início, e onde diferentes visões se cruzam sobre a relação entre opressão e exploração, sobre os sujeitos e métodos de luta, alianças políticas, o programa ou os objetivos finais. Sobre todas essas questões, o marxismo e o feminismo socialista desenvolveram inúmeras elaborações, que constituem uma fonte de lições muito ricas para os dias de hoje.

É claro que o mundo que habitamos passou por grandes transformações em relação ao século passado, quando as mulheres não tinham o direito de votar ou se divorciar, ou quando a jornada de trabalho de 14 horas era a mais frequente. E, em grande parte, essas transformações se devem à luta das mulheres e da classe trabalhadora, conquistas que foram alcançadas com a luta. No entanto, nunca houve uma acumulação gradual, nem uma ampliação evolutiva de direitos dentro das estruturas das democracias liberais, como afirmam aqueles que veem como possível uma “humanização” do sistema capitalista. Rosa Luxemburgo tinha toda a razão quando disse que, se não pusermos fim a esta sociedade de exploração e opressão, a luta social será sempre uma obra de Sísifo, uma vez que o que foi alcançado hoje com grandes esforços, será perdido amanhã.

O período de boom neoliberal combinou, de forma peculiar, a extensão de certos direitos – para alguns setores da população mundial – com uma brutal ofensiva contra a classe trabalhadora. E com base nas derrotas e desvios dos processos revolucionários do período anterior, impôs-se um “novo consenso” baseado no individualismo e na ideia de “autorrealização” através do consumo. Por um lado, as classes médias – e até mesmo alguns setores da classe trabalhadora – acessavam a essa “festa consumista”, sobretudo, através do crédito. Por outro lado, uma enorme fragmentação da classe trabalhadora estava avançando. No caso das mulheres, houve um salto histórico na feminização do trabalho em todo o mundo, que foi acompanhado por uma maior exploração e maior precarização, as quais foram adquirindo rostos de mulheres jovens, negras, indígenas e migrantes. Em nível global, a ofensiva neoliberal implicou uma monumental transferência de rendas para um setor cada vez mais concentrado do capital, que também dependia de uma nova expropriação capitalista de recursos, com privatizações, endividamento e extrativismo.

A hegemonia neoliberal constituiu-se com base na extensão dos mecanismos das democracias liberais às grandes regiões do planeta, embora sob formas cada vez mais degradadas. E uma política ativa foi implantada para a cooptação e instrumentalização de algumas das demandas que os movimentos sociais haviam levantado em anos anteriores. Desta forma, promoveu-se o reconhecimento de certos direitos para as mulheres ou para a diversidade sexual. Assim pretendiam dar um rosto progressista e multicultural ao neoliberalismo. Ainda assim, para grandes setores da população, sua efetiva realização permaneceu pendente, uma vez que contradiziam as enormes desigualdades sociais geradas pelas políticas neoliberais [2].

Através do aumento do financiamento estatal e privado para inúmeras ONGs e da retirada para a academia, houve uma ressignificação do movimento feminista. Como Nancy Fraser apontou na época, isso produziu um abandono de todo o questionamento antissistêmico, para se tornar um senso comum adoçado e aceito pelo mainstream. Um feminismo que cumpriu um papel cúmplice da forma que a ofensiva capitalista foi adquirindo.

Hoje estamos testemunhando um crescimento da pobreza e das desigualdades sociais em todo o mundo – estima-se que 388 milhões de mulheres e meninas viviam em extrema pobreza em 2022 – enquanto apenas o 1% mais rico acumula o equivalente a 50% da riqueza global. E ao mesmo tempo que algumas mulheres ocupam posições de poder nos governos capitalistas, ou mesmo são referências da extrema-direita, milhões de mulheres trabalhadoras, camponesas, indígenas e jovens estudantes enfrentam os planos de ajuste do FMI e o saque de empresas imperialistas. No início do século XXI, o trabalho doméstico continua a recair principalmente sobre as mulheres, enquanto milhões exigem direitos elementares, como o direito ao aborto gratuito, algo que a Revolução Russa havia permitido às mulheres há mais de um século. Além disso, muitos dos direitos que conquistamos são retirados pela reação conservadora assim que a menor oportunidade aparece, como vemos nos Estados Unidos com a ofensiva contra o direito ao aborto. Em alguns países, as demandas do movimento de mulheres contra a opressão podem abrir o caminho para movimentos de massa profundos, como no Irã, enfrentando uma repressão brutal. Enquanto isso, os EUA e a União Europeia estão cinicamente tentando instrumentalizar a ideia de “proteção das mulheres” para justificar intervenções imperialistas e uma escalada belicista sem precedentes nas últimas décadas.

Diante dessa realidade, as propostas do feminismo socialista têm mais vigência do que nunca. É o oposto do feminismo liberal, que promove que algumas mulheres passem pelos “tetos de vidro” enquanto a maioria limpa os pisos pegajosos [3]. Muito diferente também das correntes do feminismo punitivo, que, diante da violência contra as mulheres, propõem diferentes formas que apenas fortalecem os mecanismos repressivos do Estado capitalista, ao mesmo tempo em que invisibilizam as causas estruturais da violência de gênero. Para o feminismo socialista, somente através da revolução socialista podem ser conquistadas as bases de uma nova sociedade sem exploração, na qual se alcance uma verdadeira emancipação das mulheres e acabe com todas as opressões [4]. O oposto de nos resignarmos à administração de migalhas, no âmbito das instituições do Estado atual, como propõem alguns feminismos reformistas ou “populares”. E muito diferente da ideia de que seria possível “fugir do capitalismo” pouco a pouco, criando formas comunais de vida nos interstícios desse mesmo sistema, como propõem correntes do feminismo autonomista. Posições que negam, por diferentes meios, a necessidade de empregar a energia revolucionária das mulheres trabalhadoras em conjunto com a classe trabalhadora e todas as camadas oprimidas em uma luta contra os capitalistas e seus Estados.

Os textos que selecionamos também são muito sugestivos para pensar o horizonte do socialismo. Se o grande triunfo ideológico das classes dominantes nas últimas décadas fez com que fosse mais fácil prever catástrofes e distopias do que pensar no fim do capitalismo, esses escritos apontam em outra direção. Eles se propõem a imaginar as enormes possibilidades de uma sociedade emancipada da propriedade privada e da acumulação capitalista. Um projeto para revolucionar a vida, os costumes, a cultura e as relações pessoais em uma sociedade de um novo tipo.

A primeira grande experiência a avançar em transformações desse tipo foi levada adiante com a Revolução Russa. Através da revolução, as mulheres ganharam direitos políticos iguais, igualdade perante a lei, o divórcio incondicional e o direito ao aborto. Um conjunto de medidas que visava, ao mesmo tempo, a socialização do trabalho doméstico e a inserção massiva das mulheres no ambiente de trabalho, na cultura e na política. Vários dos textos desta compilação foram escritos nos primeiros anos daquela revolução. E mesmo que tenha sido traída a partir de dentro pelo stalinismo, o que levou a um enorme retrocesso em todos os campos, não perdeu seu enorme significado histórico. Isso acontece, em primeiro lugar, por ter mostrado que havia outra alternativa. E como Rosa Luxemburgo assinalou na época, referindo-se aos bolcheviques: “Eles ousaram!”

Os escritos que fazem parte desta compilação nos falam sobre a emancipação das mulheres e a possibilidade de transformar todas as áreas da vida, socializar o trabalho doméstico, acabar com as misérias capitalistas, a exploração e todas as opressões. Em tempos turbulentos como os que vivemos, esperamos que possam ser uma fonte de inspiração para quem pretende lutar por outra sociedade.

I. Marx e Engels sobre a emancipação das mulheres

Marx e Engels não elaboraram uma obra teórica conjunta sobre a família e a opressão das mulheres. Engels será quem escreverá um livro dedicado ao assunto após a morte de seu amigo. No entanto, em vários escritos e artigos, eles levantaram ideias importantes que permanecem fundamentais para um projeto de emancipação das mulheres do ponto de vista socialista e revolucionário.

Primeiro, como parte de sua concepção materialista da história, eles questionaram as ideias sobre uma essência humana universal, como algo imutável. Isso possibilitou criticar as tendências ideológicas que colocavam as mulheres de forma “natural” no espaço privado, na família ou no lar. Da mesma forma, polemizaram com as correntes filosóficas que construíram oposições dualistas e estáticas sobre a relação cultura/natureza, homens/mulheres, produção/reprodução. Para Marx e Engels nunca houve uma substância universal do homem (ou da mulher!), mas uma história concreta de homens e mulheres, como a sucessão de diversas gerações. Eles argumentaram que os seres humanos são os que fazem a história, embora não o façam por puro e livre arbítrio, mas a partir de determinadas circunstâncias, independentemente de suas vontades. E embora isto nos fale das determinações históricas da ação humana, ao mesmo tempo, através da sua atividade crítico-prática, homens e mulheres têm a possibilidade de transformar as suas condições de vida e as suas relações sociais.

Achamos que esses são os principais fundamentos para uma compreensão feminista socialista hoje. Seja diante da proliferação de posições essencialistas sobre a opressão das mulheres, seja naquelas posições que diluem determinações históricas e sociais – como a exploração de classes, o racismo ou as relações patriarcais – no fluxo contingente de subjetividades ou nos discursos.

Em segundo lugar, Marx e Engels mantinham uma crítica radical da opressão das mulheres e da família patriarcal, como parte de um questionamento da totalidade das sociedades de classes. Nos Manuscritos Filosóficos de 1844, Marx apresentou a ideia de que a propriedade privada, a família, o Estado e a religião são expressões diferentes da alienação humana, que só pode ser superada no comunismo. Juntos, em A Ideologia Alemã, Marx e Engels traçam a origem histórica da família a partir do processo de divisão do trabalho e da formação da sociedades de classes. Eles indicam que a forma inicial de propriedade já está contida na família, onde “a esposa e os filhos são escravos do marido”. Eles se referem ao surgimento de uma primeira forma de propriedade, que poderia ser definida como o “direito de dispor do trabalho dos outros”. Esta questão-chave será retomada e desenvolvida por Engels mais tarde [5].

Por sua vez, em A Sagrada Família, ambos os autores recuperam as ideias do socialista utópico Charles Fourier, que assegurou que “o progresso social e as mudanças de períodos são operados em razão direta do progresso das mulheres em direção à liberdade; e as decadências da ordem social são operadas em razão da diminuição da liberdade das mulheres”. Socialistas utópicos como Charles Fourier ou Robert Owen denunciaram a opressão das mulheres, imaginando alternativas para superá-la. Eles apresentaram ideias para socializar o trabalho doméstico, deixando para trás as relações de dependência do casamento monogâmico e desenvolvendo o amor livre. Eles propuseram transformar as cidades, reduzir o tempo de trabalho e reorganizar o cuidado das crianças de forma comunitária, desenhando os planos das pequenas sociedades comunitárias, os falanstérios. Esses esboços, no início do século XIX, eram uma expressão de um socialismo incipiente, ainda imaturo. O movimento dos trabalhadores era muito subdesenvolvido, então essas teorias sobre qual força social poderia realizar esses objetivos não eram claras. Em geral, eles procuraram evitar a luta de classes e apelaram para o espírito filantrôpico de alguns burgueses, algo que logo se mostrou sem sentido. As experiências práticas dos seguidores de Fourier ou das comunas owenistas [6] nos EUA não prosperaram. Mesmo assim, com todos os seus limites, Engels mais tarde apontaria que, com seus escritos, os socialistas utópicos semearam em germe as ideias de uma futura sociedade comunista.

Flora Tristan [7], antecessora do feminismo socialista, ocupa uma posição intermediária entre esse socialismo utópico e o socialismo revolucionário de Marx e Engels. Em seu livro A União Operária (1843), delineou uma proposta para a organização social e política da classe trabalhadora e abordou a relação entre classe e gênero [8]. O terceiro capítulo de seu livro é dedicado às mulheres trabalhadoras, a quem ela chamou de “as últimas escravas” da sociedade francesa. Através de seus escritos e palestras, Tristan interpelou os trabalhadores, apontando que não era possível sustentar um projeto de emancipação humana sem levar em conta as mulheres trabalhadoras.

Isso será desenvolvido e concretizado por Marx e Engels, que apontam que a luta para acabar com a opressão das mulheres não pode ser separada da luta pelo comunismo. Juntamente com a crítica da família patriarcal, Marx e Engels se concentram nas condições de existência das famílias da classe trabalhadora no capitalismo. Esta questão já havia sido abordada por Engels em seu livro A situação da classe trabalhadora da Inglaterra. Lá ele realizou uma análise detalhada das deploráveis condições de trabalho e de vida das famílias trabalhadoras, especialmente das mulheres e crianças. A questão é retomada no Manifesto Comunista, onde eles argumentam que o capitalismo destrói os laços familiares da classe trabalhadora, ao incorporar massivamente as mulheres e crianças ao trabalho.

Em várias passagens do Manifesto, que reproduzimos nesta compilação, os autores atacam toda uma série de sensos comuns e preconceitos promovidos pela classe dominante contra os comunistas. Diante da acusação de que os comunistas querem “abolir a família”, Marx e Engels respondem que é a grande indústria que “está destruindo os laços familiares dos proletários e transformando as crianças em meras mercadorias e meros instrumentos de trabalho” [9]. Finalmente, diante da ideia de que os comunistas querem “coletivizar as mulheres”, eles denunciam o “duplo padrão” da burguesia: enquanto os comunistas são culpados por querer estabelecer a “comunidade das mulheres”, são os burgueses que a exercem de fato através do adultério (socialmente admitido apenas para os homens) ou através da prostituição, considerando as mulheres como sua propriedade.

Enquanto no Manifesto aparece uma forte denúncia da opressão das mulheres, somente nos anos seguintes que Marx e Engels desenvolvem uma visão mais clara do papel das mulheres trabalhadoras como protagonistas da luta revolucionária por sua emancipação. A seguir, veremos como isso foi abordado nos debates da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Mulheres trabalhadoras na Primeira Internacional

A AIT, conhecida como a Primeira Internacional, foi fundada em 28 de setembro de 1864 no St. Martin’s Hall, em Londres, com a participação de delegações de trabalhadores de diferentes países. Marx e Engels agiram a partir do Conselho Geral, mas nas seções nacionais da Internacional conviviam comunistas, anarquistas, sindicalistas e mutualistas. Essas tendências diferiam sobre a relação entre o sindical e o político, as táticas de luta, questões programáticas e ideológicas. Uma das questões sobre a qual havia visões muito diferentes era a respeito da integração das mulheres no mundo do trabalho e sua participação na Internacional dos Trabalhadores. Os seguidores de Proudhon e os sindicalistas tinham posições mais conservadoras sobre essa questão, enquanto os comunistas e os apoiadores de Marx promoviam a organização das mulheres trabalhadoras no local de trabalho, bem como sua participação na Internacional.

A discussão sobre o papel das mulheres no mundo do trabalho esteve presente pela primeira vez no Congresso de Genebra de 1866. De acordo com a ata, foi lida ali uma moção de resolução, elaborada pelo Conselho Central de Londres, que reconheceu como algo progressista o trabalho de “ambos os sexos”, algo que não era compartilhado por aqueles que achavam que as mulheres deveriam ficar em casa, onde era seu “lugar natural”. O debate foi intenso. Alguns delegados franceses fizeram uma contraproposta com conotações conservadoras: “As mulheres não são feitas para trabalhar; seu lugar é no centro da família; ela é a educadora natural da criança.” Essa proposta foi rejeitada, mas a resolução da Conferência não era clara sobre o assunto [10]. Os seguidores de Proudhon e os sindicalistas ainda tinham uma influência considerável na Internacional, embora isso fosse mudar nos Congressos seguintes.

Entre aqueles que resistiam à participação das mulheres no mundo do trabalho, havia diferentes posições. Aqueles que defendiam que seu lugar “natural” era no lar, mas também aqueles que, a partir dos sindicatos, argumentavam de forma “defensiva” que a renda das mulheres facilitava a redução salarial dos empregadores. É importante notar que esses tipos de argumentos corporativos são usados até hoje, por exemplo, por setores das burocracias sindicais contra imigrantes. No entanto, mesmo assim, Marx e Engels se opuseram a ele com um programa para a luta unificada de toda a classe trabalhadora.

Nesta compilação recuperamos um fragmento pouco conhecido dos trabalhos da Conferência Internacional de 1871, que aconteceu em setembro daquele ano, em Londres, pouco depois da derrota da Comuna de Paris. É um documento de importante valor histórico porque contém a posição de Marx sobre a organização das mulheres trabalhadoras na Associação. De acordo com o registro oficial, Marx lê aos delegados a seguinte proposição: “A Conferência, sob proposta do Conselho Geral, recomendou o estabelecimento de seções femininas entre os trabalhadores. Entende-se que isso de forma alguma dificulta a formação de seções mistas.” [11]

E o documento continua, descrevendo sua intervenção:

O cidadão Marx acrescenta que observa que a proposição diz “sem exclusão de seções mistas”, ele acredita que é necessário fundar seções puramente femininas em países onde a indústria emprega mulheres em larga escala; elas vão preferir se encontrar entre si para discutir. As mulheres, diz ele, desempenham um papel na vida: trabalham em fábricas, participam de greves, na Comuna etc. Elas têm mais coragem do que os homens. Ele acrescenta algumas frases com as quais recorda a participação ardente das mulheres nos eventos da Comuna de Paris [12].

Após um debate, no qual algumas delegadas como a proudhoniana De Paepe tentam questionar a formação das seções femininas, a moção apresentada por Marx e pelo Conselho Geral é aprovada. Talvez o mais significativo seja que esta resolução se baseou no papel heroico das mulheres trabalhadoras na luta de classes durante o período anterior. Quando a Conferência se reuniu em Londres, os ecos da grande Comuna de Paris ainda ressoavam frescos. Aquela Comuna Vermelha onde a classe trabalhadora tomou o céu de assalto e constituiu, por alguns meses, um governo próprio pela primeira vez na história. Ali as mulheres dos bairros da classe trabalhadora de Paris tinham desempenhado um papel proeminente. Primeiro durante a insurreição de 18 de março, iniciada pelas mulheres que saíram para enfrentar o exército nas ruas. Mais tarde, elas formarão suas próprias associações de mulheres durante a Comuna, como o Comitê de Vigilância dos Cidadãos e a União das Mulheres para a Defesa de Paris. Eles também se unirão com toda a sua energia para defender a Comuna durante a semana de maio de 1871, quando a cidade da classe trabalhadora é atacada pelo exército de Versalhes. De acordo com a crônica de Louise Michel, mais de 10 mil mulheres “dispersas ou juntas, lutaram pela liberdade” naqueles dias. Durante a repressão, milhares foram mortas, presas ou enviadas ao exílio.

Marx e Engels souberam em primeira mão o que aconteceu em Paris e o papel das mulheres na Comuna graças aos relatos e testemunhos de militantes que participaram dos eventos. Elisabeth Dmitrieff, uma militante comunista da Internacional, viajou como correspondente para Paris e fundou a União das Mulheres lá. As filhas de Marx, Jenny e Eleanor, viajaram para a França durante a Comuna para procurar sua irmã, Laura, e ficaram em prisão domiciliar por uma semana. Ou seja, a batalha pioneira de Marx e Engels dentro do movimento operário pelo direito das mulheres trabalhadoras de se organizarem e de formarem suas próprias seções ou espaços de debate se considerassem necessário, baseou-se nas lições da luta de classes mais avançada.

Para aqueles que, ainda hoje, questionam o marxismo como se fosse um “reducionismo economicista”, ou sustentam que o marxismo tem sido “cego” para a questão de gênero ou raça, os debates na Primeira Internacional, bem como suas elaborações nos anos subsequentes, mostram o contrário. Marx e Engels estavam convencidos de que a classe trabalhadora deveria tomar em suas próprias mãos a luta não apenas contra a exploração salarial, mas contra todas as opressões. Ambos expressaram seu apoio à luta da Polônia pela autodeterminação com o slogan: “Um povo que oprime outro povo não pode ser livre”. Da mesma forma, eles encorajaram a classe trabalhadora europeia a defender a luta contra a escravidão na Guerra Civil Americana. Em seus escritos sobre a situação da classe trabalhadora e do campesinato na Irlanda, Marx rejeitou o racismo dos trabalhadores ingleses em relação aos trabalhadores irlandeses. Esse era o “maior segredo” para a dominação da burguesia britânica, porque colocou alguns trabalhadores contra outros.

A ideia de que ninguém pode ser livre se todos não fossem livres, também orientou sua luta contra a opressão das mulheres. E não há dúvida de que essa ideia é extremamente atual.

Mulheres, trabalho e capital

Em O Capital, Marx faz numerosas referências ao trabalho das mulheres na nascente sociedade industrial. Por um lado ele trata da exploração brutal do trabalho de mulheres e crianças nas fábricas. Por outro, aponta que elas fazem parte do exército industrial de reserva, chave para a acumulação capitalista. Finalmente, teoriza questões importantes relacionadas à reprodução da força de trabalho, que serão retomadas e desenvolvidas por feministas marxistas posteriores para intervir nos debates sobre a opressão das mulheres e o trabalho doméstico. Vejamos.

Marx elabora sobre as condições de trabalho das mulheres nos capítulos que dedica à jornada de trabalho e à luta pela redução do tempo de trabalho. Retoma inúmeros informes sobre as penúrias do trabalho nas fábricas de fósforo, oficinas têxteis e outros estabelecimentos. As jornadas de trabalho se estendem entre 12 a 15 horas, com trabalho noturno, sem horário definido para as refeições, que muitas vezes são feitas ao lado das máquinas. “Nessa fabricação, Dante veria suas fantasias infernais mais cruéis superadas”, escreve Marx [13].

Sobre o exército industrial de reserva, argumenta que, com o desenvolvimento do capitalismo industrial, a existência de mão de obra disponível é uma alavanca indispensável da acumulação capitalista. Essa força é composta, em primeiro lugar, por trabalhadores e trabalhadoras expulsos do processo produtivo em tempos de crise ou desempregados de longa duração, mantidos fora dele. A existência de tal material humano permite que o capital incorpore rapidamente a força de trabalho em alguns períodos de prosperidade e a descarte em outros. Mas este não é o único efeito benéfico para os capitalistas, já que a existência desta reserva de mão de obra desempregada pressiona, através da concorrência, a classe trabalhadora ocupada, forçando-a a trabalhar excessivamente e a submeter-se aos ditames do capital. As mulheres que trabalham, bem como os trabalhadores que migram de outros países, tendem a aumentar a força de trabalho disponível primeiro.

Ora, como já indicamos antes, Marx não se limitou a analisar essa situação, mas também propôs um programa para unificar a classe trabalhadora. Uma maneira de superar as divisões internas entre homens e mulheres, ou entre trabalhadores nativos e estrangeiros, promovidas pelos patrões para seu próprio benefício. Nesse sentido, no Programa eleitoral dos trabalhadores socialistas, elaborado por Jules Guesde, Paul Lafargue e Karl Marx em 1880, foi incluído a consigna de “Igualdade salarial pelo mesmo trabalho para trabalhadores de ambos os sexos”. E exigiu a proibição “de contratar trabalhadores estrangeiros por um salário inferior ao dos trabalhadores franceses”. Questões que, como se vê, continuam a ter relevância para as lutas atuais [14].

Por fim, nos últimos anos a leitura das categorias de O Capital sobre a reprodução da força de trabalho tem sido revalorizada para teorizar sobre a opressão das mulheres e do trabalho doméstico. Esse debate teórico ganhou força na década de 1970, quando, a partir de diferentes correntes feministas, categorias como mais-valia, trabalho produtivo e improdutivo ou modo de produção foram utilizadas para teorizar a relação entre patriarcado e capitalismo, produção e reprodução, exploração e opressão, gênero e classe.

Do feminismo marxista, quem mais sistematizou o debate foi Lise Voge [15]. A autora argumentou que, embora Marx tenha teorizado em O Capital sobre a reprodução da força de trabalho como central para a reprodução do capital, ele nunca desenvolveu tudo o que isso implicava sobre o trabalho doméstico. Vogel se propôs a desenvolver essa reflexão. Em seu livro, ela aponta três tipos de processos que permitem a reprodução da força de trabalho nas sociedades de classes. As atividades para que os produtores reponham suas energias diariamente antes de retornar ao trabalho; aquelas destinadas a manter os membros das classes subordinadas que não trabalham (crianças, mulheres, idosos, doentes); e, finalmente, o processo de renovação da força de trabalho a longo prazo. Embora a substituição geracional seja um mecanismo inescapável, há também outros, como o recrutamento de trabalhadores que permaneceram fora da força de trabalho ou a sua substituição através da migração. Desse ponto de vista, as famílias tornam-se um espaço institucionalizado para a reprodução e manutenção da força de trabalho, base sobre a qual se erguem as estruturas de dominação masculina, reforçadas por meio de múltiplas instituições sociais. A opressão das mulheres encontraria uma raiz fundamental nesse processo [16].

Marx definiu que o valor da força de trabalho no capitalismo é determinado, como todas as outras mercadorias, pela quantidade de trabalho socialmente necessário incorporado à sua produção. Isso seria o equivalente ao valor das mercadorias necessárias para a subsistência desse trabalhador: alimentos, roupas e outros produtos de consumo, ou o que foi investido em sua educação e saúde. Esse trabalho socialmente necessário está historicamente estabelecido e depende, entre outros elementos, da luta de classes. Com base nessas definições, Vogel diz que esse trabalho necessário tem dois componentes. O primeiro é o trabalho que produz os bens de consumo necessários para a subsistência do trabalhador (alimentos, roupas etc.). Ele chama isso de componente social. O outro é o trabalho não remunerado feito em casa – preparar o jantar, lavar a roupa ou ajudar as crianças com o trabalho escolar. Ele chama isso de componente doméstico ou trabalho doméstico.

Ao fazer essa definição, Vogel interveio em uma polêmica muito importante aberta no feminismo anticapitalista desde os anos 1970, sobre o trabalho doméstico [17]. O feminismo autonomista (corrente que atualmente tem Silvia Federici como principal referência) declarava que o trabalho doméstico gerava mais-valia, da mesma forma que o trabalho em uma fábrica. Portanto, de acordo com essa corrente, também havia exploração lá. Daí derivou uma estratégia política que colocava as donas de casa como o principal sujeito revolucionário contra o capital [18]. Vogel responderá que o trabalho doméstico produz apenas valores de uso, ou seja, que esses produtos do trabalho doméstico não são mercadorias destinadas a serem trocadas no mercado. É uma obra que não se enquadra na esfera da valorização, de modo que o trabalho não é produtivo nem improdutivo, se levarmos em conta os critérios com os quais Marx usou esses termos. As elaborações de Vogel têm sido a base do que é conhecido como uma Teoria da Reprodução Social, de um ponto de vista marxista [19].

Embora não seja nossa intenção desenvolver neste prólogo todos esses debates, interessa-nos apontar, como contribuição para a leitura dos textos, o fato de que muitas das questões levantadas por Marx e Engels têm enorme relevância para refletir sobre a situação das mulheres trabalhadoras no capitalismo do século XXI. E apontar também que muitos conceitos clássicos e elaborações do feminismo socialista foram colocados novamente em discussão a partir de várias abordagens teóricas.

Engels sobre a família, a propriedade privada e o Estado

Após a morte de seu amigo em 1883, Engels dedicou-se a revisar manuscritos e cadernos que havia deixado inacabados. Com base nas anotações sobre a obra do antropólogo americano Lewis Henry Morgan e outras notas etnológicas de Marx, desenvolveu uma análise histórica e materialista das organizações sociais, em particular sobre as mudanças nas formas de parentesco, a família patriarcal, a instituição do casamento e a monogamia. Seu livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado é publicado pela primeira vez em 1884.

Pouco antes, em 1879, havia sido publicado o livro de August Bebel, líder e propagandista do socialismo alemão, chamado A mulher e o socialismo. Isso teve um enorme impacto e, em poucos anos, foi traduzido para muitas línguas. Na introdução, Bebel argumentou que não poderia haver “libertação da humanidade sem independência social e igualdade dos sexos”. Após a publicação do livro de Engels, Bebel introduziu algumas mudanças em seu próprio trabalho [20].

Para esta compilação selecionamos alguns capítulos do livro de Engels. Também traduzimos para o português um texto de Clara Zetkin sobre isso. Zetkin observa que seu trabalho foi “fundamental na luta pela libertação de todo o sexo feminino” [21]. Ainda hoje, apesar dos limites do livro – seja porque os estudos de Morgan foram superados, seja por causa de uma certa visão esquemática de períodos históricos – A origem da família, da propriedade privada e do Estado continua sendo uma referência fundamental para o feminismo socialista. É assim, em primeiro lugar, na medida em que situa historicamente a origem da opressão das mulheres, demonstrando que nem sempre existiu e não é dada pela natureza, mas que é histórica e social.

Engels estabelece uma relação entre o surgimento da propriedade privada, a divisão de classes da sociedade e a cristalização de uma instituição familiar onde as mulheres estão subordinadas. Através do casamento e da monogamia, mulheres e crianças tornam-se “propriedade privada dos homens”. Nesse sentido, afirma:

O homem também assumiu o comando no lar; as mulheres foram degradadas e reduzidas à servidão; ela se tornou escrava de sua luxúria e um mero instrumento para a produção de filhos. Assegurar a fidelidade de sua esposa e, portanto, a paternidade de seus filhos é incondicionalmente entregar-se ao poder do marido; se ele a mata, ele está apenas exercendo seus direitos. [22]

Por outro lado, no prefácio da primeira edição, há uma importante passagem que aponta a relação entre produção e reprodução, como eixo a partir do qual se pode pensar o papel da mulher na sociedade:

De acordo com a teoria materialista, o fator decisivo na história é, afinal, a produção e reprodução da vida imediata. Mas essa produção e reprodução são de dois tipos. Por um lado, a produção de meios de existência, de gêneros alimentícios, de vestuário, de moradia e dos instrumentos necessários para produzir tudo isto; por outro lado, a produção do próprio homem, a continuação da espécie. A ordem social em que os homens vivem num dado tempo ou num determinado país é condicionada por estas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, por um lado, e da família, por outro [23].

Algumas feministas apontaram que a obra de Engels e, em particular, esta passagem poderiam ser consideradas uma fonte de erros posteriores do marxismo, por separar excessivamente o plano de produção da esfera da reprodução da vida. Essa ideia de que Engels separa produção e reprodução de forma “dualista” é levantada, por exemplo, pela feminista marxista Lise Vogel e foi recentemente retomada por vários autores. A partir dessa ideia, há aqueles que argumentam que Engels teria plantado uma “semente” que permitiu que setores da social-democracia e dos Partidos Comunistas separassem a luta das mulheres da luta da classe trabalhadora. Ou, ainda, que a luta das mulheres deveria “ser postergada” para depois da revolução. Do nosso ponto de vista, no entanto, a importância deste fragmento frequentemente citado não aponta para essa separação. Pelo contrário, estabelece uma relação entre ambas as esferas, o que nos permite pensar nas duas como parte de uma totalidade social [24]. Por outro lado, as orientações políticas conservadoras por parte da social-democracia e dos partidos comunistas, que renunciaram a demandas sentidas das mulheres ou dos povos oprimidos, explicam-se por outras causas, sociais e históricas, que abordaremos mais adiante.

A leitura do livro de Engels, historicizando o surgimento do casamento monogâmico e da família patriarcal, nos permite pensar na possibilidade de superação dessas instituições sociais. Imagine a construção de outras relações humanas, nas quais o afeto e a sexualidade não são limitados pela dependência econômica e pela opressão das mulheres.

II. Mulheres e Socialismo

A segunda parte deste livro reúne escritos elaborados desde o final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial. Um período em que crises, guerras e também revoluções irromperam no palco histórico. As transformações do capitalismo no final do século XIX deram origem ao desenvolvimento de monopólios, à exportação de capital e ao aumento das disputas interimperialistas pelo controle dos mercados e das colônias. Esta é a nova fase imperialista do capitalismo.

Este será também um período marcado pelo crescimento dos partidos social-democratas em vários países (na Alemanha, a anulação das leis antissocialistas de Bismarck em 1890 permitiu um crescimento sem igual dos sindicatos e do SPD [25]). A organização das mulheres trabalhadoras também dá um enorme salto, com a multiplicação de associações, publicações e conferências de mulheres socialistas. Neste trabalho de organização e agitação, destacam-se Clara Zetkin, Eleanor Marx, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai. Apresentamos aqui uma seleção de seus escritos daqueles anos.

Debates importantes atravessam essas obras. Primeiro, sobre a necessidade de um programa que articule a luta pelas demandas democráticas do movimento de mulheres, como o direito ao voto, com as lutas da classe trabalhadora e pelo socialismo. Ligado a isso, a batalha para organizar e mobilizar massivamente as mulheres trabalhadoras em cada país e internacionalmente, com iniciativas que terão importância histórica, como a celebração de um Dia Internacional da Mulher. Esta será a origem do 8 de março, que permanece até hoje um dia internacional de luta, mais de cem anos após a Conferência Socialista de Berna ter aprovado a proposta elaborada por Clara Zetkin [26].

Outra questão importante é o confronto entre correntes reformistas e revolucionárias dentro dos partidos social-democratas. Luxemburgo, Zetkin e Kollontai pertenciam à ala esquerda e lutavam contra as derivas reformistas. No caso de Rosa Luxemburgo, sua batalha política contra o revisionismo de Eduard Bernstein e contra as tendências reformistas do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) avançou nessa direção. O confronto entre reformistas e revolucionários adquirirá um caráter decisivo diante da catástrofe da Primeira Guerra Mundial, quando o bloco parlamentar do SPD vota a favor dos créditos de guerra. Então, diante da traição aberta da Segunda Internacional, a atividade das mulheres revolucionárias assume um caráter histórico. Organizam, clandestinamente, manifestações e conferências de mulheres contra a guerra, expondo-se a longas penas de prisão, como parte de sua atividade na corrente internacionalista que se agrupa sob a palavra de ordem de “guerra à guerra”.

Os direitos das mulheres e socialismo

No discurso ao Congresso de Gotha, “Só com a mulher proletária triunfará o socialismo” [27], pronunciado em 1896, que abre esta seção, Clara Zetkin propõe desenvolver a agitação das ideias socialistas entre as mulheres, uma vez que a inclusão destas “é uma das premissas necessárias para a vitória das ideias socialistas, para a construção da sociedade socialista”. Zetkin aponta que a chamada questão das mulheres pertence inteiramente à época do capitalismo. Ou seja, não é um resquício de um passado feudal, mas tem sua própria forma na sociedade moderna. Por outro lado, ela explica que a opressão das mulheres se expressa de forma diferente em cada uma das classes que compõem a sociedade: a grande burguesia, as classes médias e a classe trabalhadora. Nos termos de hoje, diríamos que a opressão de gênero é atravessada pela questão de classe. E ela argumenta que, no caso das mulheres trabalhadoras, sua luta “está unida com a do homem de sua classe contra a classe dos capitalistas” [28]. Zetkin argumentou contra o feminismo burguês, uma vez que muitas das correntes sufragistas acabaram limitando a demanda pelo direito de voto apenas às mulheres proprietárias. Elas procuraram melhorar a posição das mulheres na classe dominante, sem questionar as regras do jogo da sociedade capitalista. Para Zetkin, por outro lado, havia uma estreita relação entre a questão das mulheres e a questão social: a emancipação das mulheres só poderia ser alcançada com o socialismo e a luta pelo socialismo exigia a participação das mulheres.

Em relação ao programa voltado para as mulheres, duas grandes questões estão no centro do debate: as demandas trabalhistas e o direito ao voto. Por um lado, a sua inclusão no mundo do trabalho continua a gerar fortes resistências. Diante disso, a posição inicial de Zetkin era rejeitar qualquer pedido de “proteção especial” para as mulheres trabalhadoras, temendo que isso fosse usado como uma desculpa para demiti-las. No entanto, enquanto em 1896 Zetkin argumentava que a agitação socialista entre as mulheres não incluía “tarefas especiais”, essa posição foi corrigida nos anos seguintes. Como explica Andrea D’Atri, as socialistas logo entenderão que “não se pode combater uma situação de desigualdade inicial apenas com direitos iguais” [29]. Desde então, a luta pela plena inclusão das mulheres no mercado de trabalho também inclui medidas especiais para evitar a demissão de mulheres em caso de maternidade, a exigência de redução do trabalho noturno, demandas como “salário igual para trabalho igual” e creches públicas para socializar parte do trabalho de cuidados.

A outra grande questão é a luta pelo sufrágio feminino. Esse é um tema que é abordado em vários dos textos que compõem essa compilação, como em “Uma questão tática” (1902), de Rosa Luxemburgo; na “Proclamação do Dia Internacional da Mulher” (1910); ou no artigo “O Dia da Mulher”, de Alexandra Kollontai (1913). O artigo de Luxemburgo é muito interessante porque mostra as profundas diferenças dentro dos partidos social-democratas sobre o assunto, entre setores reformistas e tendências revolucionárias. Ela polemiza contra a decisão do Partido Social-Democrata belga de “adiar” a questão do sufrágio feminino, em troca de um acordo com o Partido Liberal no Parlamento. Este pacto procurou aprovar o mecanismo do sufrágio universal (uma pessoa, um voto), mas apenas para os homens. Os sociais-democratas belgas argumentaram que se tratava de uma “questão tática” e que iriam “mais tarde” retomar a luta pelo sufrágio feminino. Luxemburgo considera isso uma “experiência oportunista”, que põe de lado os princípios socialistas. Alega que:

Sempre que compromissos vazios são feitos às custas de nossos princípios, na verdade não são “realizações práticas” imaginárias que são alcançadas, mas sacrificar nossas demandas programáticas, com as quais nossos “políticos práticos” não se importam minimamente. [30]

Este pacto dos sociais-democratas belgas com os liberais implicou a renúncia à luta revolucionária nas ruas, onde as mulheres poderiam desempenhar um papel proeminente.

No entanto, a reflexão de Luxemburgo transcende o debate concreto sobre o sufrágio feminino. Aponta para uma lógica comum de tendências conciliatórias e reformistas que, ao longo da história, apelaram ao “adiamento” de exigências muito sinceras das mulheres e da classe trabalhadora, a fim de alcançar “acordos práticos” com as forças do centro político ou mesmo da direita.

A inclusão da exigência do sufrágio feminino nos programas dos partidos socialistas – e, acima de tudo, o fato de terem assumido isso como uma luta prática – foi uma longa batalha. Ao mesmo tempo, as correntes revolucionárias argumentavam que a conquista do direito ao voto não garantia a igualdade das mulheres, apenas facilitava sua luta, junto com a classe trabalhadora, por sua emancipação. Nisso, eles diferiam daqueles que consideravam os direitos democráticos formais como um fim em si mesmo. A esquerda socialista entendeu essa luta como parte de um programa geral contra os capitalistas. A chave para Luxemburgo era aumentar a participação das mulheres na luta revolucionária. Isso explica o fato de que, afinal, a luta mais consequente pelo direito ao voto de todas as mulheres foi trabalho quase exclusivo da esquerda socialista. Pois, assim como as tendências reformistas da social-democracia se reconciliaram repetidamente com os partidos conservadores, o mesmo aconteceu com grande parte das sufragistas liberais. Em alguns países, como na Inglaterra, eles aceitaram acordos parlamentares para um direito feminino restrito de votar (apenas para as mulheres que fossem proprietárias). E uma vez que a Primeira Guerra Mundial começou, a maioria de suas organizações abandonou a luta por essas demandas, assumindo a unidade nacional com seu próprio governo contra o “inimigo externo”.

O sufrágio feminino foi alcançado na Rússia em 1917 e, na Alemanha, em 1918, como um subproduto da revolução. Por outro lado, na Inglaterra, lar de um forte movimento sufragista no início do século, isso não foi alcançado até 1928. Naquele país, o caso da família Pankhurst é muito ilustrativo. Emmeline Pankhurst e suas duas filhas, Christabel e Sylvia, foram proeminentes organizadoras do movimento sufragista e fundadoras da União Social e Política das Mulheres (WSPU, em inglês). Mas enquanto Sylvia organizava mulheres trabalhadoras em East Ends, em Londres, sua irmã e mãe concentravam cada vez mais sua atividade em traçar acordos parlamentares por cima. Quando chegou a hora da guerra, a ruptura era inevitável. Emmeline e Christabel abandonaram a luta pelo sufrágio feminino e pediram às mulheres que apoiassem seu próprio governo no esforço de guerra. Sylvia, por sua vez, mobilizou as mulheres trabalhadoras contra a guerra imperialista e organizou campanhas de apoio à Revolução Russa [31].

Das conferências internacionais à luta contra a guerra

A “Proclamação do Dia Internacional da Mulher” foi a resolução adotada pela Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, reunida em Copenhague, em 26 e 27 de agosto de 1910. Foi uma proposta elaborada por Clara Zetkin, Käte Duncker e outras militantes socialistas. A conferência informou sobre os progressos realizados na organização das mulheres trabalhadoras nos sindicatos e partidos socialistas. Alemanha e Rússia foram os dois países onde a esquerda socialista teve mais influência, algo que também se traduziu em maior crescimento organizacional entre as mulheres. O jornal Die Gleichheit [A Igualdade], editado por Clara Zetkin, cresceu de 4 mil em 1900, para 112 mil em 1913. Um aumento paralelo ao número de militantes do SPD: 4 mil em 1905, 30 mil em 1908 e 140 mil em 1913 [32]. O jornal organizou conferências sobre vários temas e suas páginas publicavam artigos de socialistas de outros países, como Alexandra Kollontai e Angelica Balabanov. De sua tribuna, Clara Zetkin abordou questões como a prostituição e denunciou o Artigo 218 que criminalizava o aborto, enquanto a liderança do partido evitou se pronunciar sobre essas questões. Zetkin acreditava que a pobreza e os baixos salários levavam muitas mulheres à prostituição, o que era comum entre garçonetes e outras trabalhadoras precárias. O jornal foi um posto avançado na luta interna contra o revisionismo e o reformismo. Em 1905, a partir dessa tribuna, Zetkin e Luxemburgo apoiaram fervorosamente a primeira Revolução Russa e, nos anos seguintes, demonstraram forte agitação contra o militarismo alemão [33].

Em agosto de 1907, Zetkin liderou a Primeira Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, que se reuniu como parte do Congresso de Stuttgart. Participaram 58 delegadas e delegações de 15 países, e um Secretariado Internacional foi estabelecido, encabeçado por Zetkin. A Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas teve lugar em Copenhague, em Agosto de 1910. Zetkin propôs o estabelecimento de um Dia Internacional da Mulher, que foi entusiasticamente aprovado por mais de 100 delegadas de 17 países. O congresso também discutiu os direitos trabalhistas, a educação das mulheres e a luta contra uma guerra que estava cada vez mais próxima. Em 19 de março de 1911, o Dia Internacional da Mulher foi comemorado pela primeira vez em Berlim, com mais de 30 mil manifestantes. Alguns anos depois, começou a ser realizada no dia 8 de março. No artigo “O Dia da Mulher” (1913), Kollontai responde aos preconceitos machistas que essa iniciativa havia despertado. Parece incrível que, mais de cem anos depois, às vezes argumentos semelhantes sejam ouvidos sobre a celebração do 8M!

A Terceira Conferência Internacional das Mulheres foi agendada para abril de 1914, mas não pôde ser realizada por causa da iminência da guerra. A luta contra o massacre imperialista colocou Clara Zetkin na primeira fila ao lado de Rosa Luxemburgo. Ambas rejeitaram o apoio da social-democracia à cruzada patriota, quando o bloco parlamentar do SPD aprovou os créditos de guerra em 4 de agosto de 1914. Com outros militantes, elas formaram a Liga Espartaquista e editaram a revista A Internacional. Em meio a enormes dificuldades, em março de 1915, foi organizada uma Conferência Internacional de Mulheres Contra a Guerra. A Conferência de Berna aprovou um manifesto que foi impresso aos milhares para ser divulgado clandestinamente em vários países. Após seu retorno à Alemanha, Zetkin foi acusada de traição e presa. Da mesma forma, Rosa Luxemburgo concentrou sua atividade na agitação contra o imperialismo e o militarismo da Primeira Guerra Mundial, o que lhe custou a acusação de traidora e várias penas de prisão.

Em setembro daquele ano, a Conferência de Zimmerwald (pequena cidade suíça) reuniu quarenta delegados socialistas que se opunham à guerra, vindos de onze países. Na reunião havia uma ala pacifista que se recusava a romper com as lideranças reformistas de seus próprios partidos. O setor revolucionário era representado por Lênin, os espartaquistas alemães e Trótski. O manifesto da conferência afirmava que “a guerra que provocou todo esse caos é produto do imperialismo, dos esforços das classes capitalistas de cada nação para satisfazer seu apetite pela exploração do trabalho humano e dos tesouros naturais do planeta” [34].

Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Karl Liebcknecht, Alexandra Kollontai, Inessa Armand, Vladímir I. Lênin e Leon Trótski formaram o núcleo da corrente revolucionária e internacionalista que se opunha à guerra imperialista. Em uma situação extremamente difícil, eles enfrentaram a traição dos social-patriotas e o desastre da Segunda Internacional. Com essas batalhas, contra a corrente, eles lançaram as bases para uma nova Internacional. Logo depois, a guerra daria lugar à revolução.

III. Revolucionando o mundo, transformar a vida: a Revolução Russa

“Nenhum partido ou revolução no mundo jamais sonhou em atacar as raízes da opressão e da desigualdade das mulheres tão profundamente como está fazendo a revolução bolchevique.”

Lênin, 1921.

Em 8 de março de 1917, Dia Internacional da Mulher, começava a Revolução Russa [35]. As operárias das fábricas têxteis de Petrogrado entraram em greve e convocaram os operários a se juntarem. Dois dias depois, já havia uma greve geral que acabou derrubando o tsarismo. “Abaixo à guerra!”, “Pão para os trabalhadores!”. Nos meses seguintes, aumentou a participação das mulheres contra um governo provisório que se recusou a resolver as demandas mais sentidas dos operários e camponeses. As mulheres organizaram greves, mobilizações de massas e participaram de sovietes (conselhos operários). Uma crescente radicalização social permitiu que o Partido Bolchevique de Lênin, forjado em anos de lutas anteriores, conquistasse a maioria nesses órgãos da democracia operária. Assim foi possível que ocorresse a revolução mais extraordinária da história moderna, quando milhões de trabalhadores e camponeses tomaram o céu de assalto. Os primeiros decretos do governo soviético foram o apelo à paz imediata, a abolição da grande propriedade e a entrega da terra aos camponeses.

Obviamente, não podemos nos aprofundar em todos os aspectos desta grande experiência revolucionária aqui. O que nos interessa enfatizar, em relação ao tema desta compilação, é que ela permitiu que muitas das ideias do marxismo revolucionário sobre a luta das mulheres fossem colocadas em prática. Como Inessa Armand aponta no texto que publicamos nesta compilação, o poder soviético foi o primeiro a criar as condições para que as mulheres realizassem sua plena emancipação.

No entanto, nas elaborações do feminismo, a quase total ausência de reflexões sobre essa experiência revolucionária tem sido marcante. Uma notória “cegueira”, considerando que a Revolução Russa, antes da burocratização stalinista, foi a experiência histórica em que mais se levantou a possibilidade de uma alternativa à sociedade capitalista e patriarcal. Um processo revolucionário que visou, através da transformação de todas as áreas da vida, a construção de uma sociedade socialista sem opressão ou exploração. Só mais recentemente alguns autores revisitaram a Revolução de Outubro, apontando sua importância para os debates sobre patriarcado e capitalismo [36].

A visão bolchevique da libertação das mulheres

Este ambicioso projeto de emancipação das mulheres foi levado adiante pela classe trabalhadora russa, através de sua auto-organização, e sob a liderança do Partido Bolchevique. E tudo isso em uma sociedade que arrastou muitos elementos de atraso, tanto na economia, quanto na cultura e nos costumes.

A historiadora Wendy Goldman [37] aponta que os revolucionários russos tinham uma visão da libertação das mulheres que se baseava em quatro princípios: a união livre, a emancipação das mulheres através de sua independência econômica, a socialização do trabalho doméstico e o desaparecimento gradual da unidade familiar. Era um princípio elementar que a união entre as pessoas deveria ser voluntária, baseada na atração mútua e nos sentimentos livres e, portanto, que o divórcio incondicional deveria ser um direito. Ao mesmo tempo, as mulheres tinham que ser economicamente independentes para subsistir sem a necessidade de uma unidade familiar. Por fim, ao promover a socialização dos afazeres domésticos, a família patriarcal – como espaço privado de reprodução e dependência econômica – deixaria de fazer sentido. Todos os princípios propostos pelos bolcheviques para a emancipação das mulheres dependiam uns dos outros.

A abolição da família patriarcal, como estrutura que subordinava as mulheres, não era algo que podia ser instituído por decreto. Era necessário, em vez disso, estabelecer as bases para a sua superação. Isso incluiu uma série de medidas legais transitórias. Muitas delas, relativas à livre união e independência financeira das mulheres, foram incorporadas em um Código Civil. Vários autores concordam que o Código do Casamento, da Família e da Tutela de 1918 estava muito à frente de seu tempo. Era um código que enfrentava séculos de leis que estabeleciam privilégios masculinos sobre mulheres e crianças na família.

Como recupera Wendy Goldman, Alexander Goikhbar, o jovem autor deste Código, apontou que “o poder proletário elabora seus códigos e todas as suas leis dialeticamente, de modo que cada dia de sua existência mina a necessidade de sua existência” [38]. Ou seja, o objetivo da lei era torná-la supérflua. Com a Revolução Russa, as mulheres obtiveram o direito ao divórcio sem condicionantes, pela única vontade expressa de uma das partes; o direito ao aborto; a eliminação da desigualdade legal no casamento (os privilégios dos homens sobre as mulheres no casamento permanecerão em vigor nos códigos civis ocidentais muitas décadas depois), bem como a igualdade entre o casamento legal e o concubinato. A igualdade de direitos para as crianças nascidas dentro e fora do casamento legal também foi muito importante.

A ideia de união livre era contraditória com o estabelecimento do casamento legal? Na verdade, não. Primeiro, tratava-se de reduzir a influência da Igreja na sociedade, substituindo o casamento religioso pelo casamento civil. Por sua vez, despojou as marcas da desigualdade legal entre homens e mulheres (sobre direitos de propriedade, poder sobre as crianças etc.). Por outro lado, numa sociedade em que ainda persistia o comportamento patriarcal, eram necessárias medidas transitórias para proteger as mulheres (como a pensão obrigatória para esposas e filhos em caso de separação). Enquanto o desenvolvimento das forças produtivas e as possibilidades do Estado operário não permitissem garantir universalmente a contracepção ou o cuidado das crianças, os homens não poderiam ser libertados das responsabilidades legais para com as mulheres.

Em agosto de 1919, as mulheres do partido criaram o Zhenotdel, composto por trabalhadoras, camponesas e donas de casa, para realizar um trabalho especial entre as mulheres em meio às dificuldades da guerra civil. Do ponto de vista dos direitos reprodutivos, o direito ao aborto foi imediatamente implementado. Alexandra Kollontai foi quem promoveu o decreto que institucionalizou o direito ao aborto gratuito. O Estado operário também foi o primeiro do mundo a pôr fim a toda perseguição à homossexualidade. Em 1921, quando o médico Magnus Hirschfeld organizou um Encontro Internacional para a Reforma Sexual com cientistas de todo o mundo preocupados com a criminalização dos homossexuais, deu como exemplo a legislação da Rússia Soviética, onde a revolução proletária havia eliminado leis que reprimiam a homossexualidade porque contradiziam a consciência e a legalidade revolucionárias. O diretor do Instituto de Higiene Social de Moscou, Grigorii Batkis, explicou a posição em 1923: “A legislação soviética é baseada no seguinte princípio: declara a absoluta ausência de interferência do Estado e da sociedade nos assuntos sexuais, desde que ninguém seja prejudicado ou atue contra os interesses dos outros”. São exemplos importantes em uma época marcada pela heteronormatividade, mesmo entre os círculos marxistas.

Todas essas medidas e avanços ocorreram muito antes do que naqueles países considerados avançados nas democracias ocidentais. Os bolcheviques legalizaram o aborto 56 anos antes do que nos Estados Unidos, terminaram a perseguição aos homossexuais 50 anos antes do que na Inglaterra, legalizaram o divórcio 70 anos antes do que na Argentina. Mesmo assim, consideravam que estas medidas “de direito” não eram suficientes.

As transformações revolucionárias foram muito além das mudanças legais. A incorporação das mulheres na produção foi uma base fundamental para a sua independência econômica e para poderem fazer parte da vida pública. No entanto, sob o domínio do capital, sua inserção no mundo do trabalho havia ocorrido em condições desiguais, de brutal precariedade e exploração, como Marx descreveu em O Capital. E ao incorporar as mulheres na produção sem resolver a questão da reprodução e do trabalho doméstico, criou-se uma “dupla jornada” de trabalho. Portanto, a demanda pela socialização do trabalho doméstico foi de vital importância. Não só porque era um trabalho exaustivo e não remunerado, mas porque somado ao trabalho em fábricas e oficinas, deu origem a extensas “jornadas de trabalho de 8 dias” por semana, como Rosa Luxemburgo denunciou amargamente [39].

As cargas do trabalho doméstico eram correntes que prendiam as mulheres ao espaço privado, deixando-as sem tempo para desenvolver suas capacidades plenas. Inessa Armand ressaltou, nesse sentido, que cozinhar, como tarefa repetitiva no lar,

é para as camponesas e, especialmente para as trabalhadoras, um castigo insuportável que consome todo o seu tempo livre, priva-as da possibilidade de ir a reuniões, ler e participar da luta de classes [40].

E acrescentou que, graças à criação de cantinas públicas, “a cozinha desaparece gradualmente da economia doméstica [41].
Fazendo um balanço dessa grande experiência histórica, Leon Trótski afirmou que:

A família, considerada como um pequeno negócio fechado, deveria ser substituída, de acordo com a intenção dos revolucionários, por um sistema acabado de serviços sociais: maternidades, creches, jardins de infância, restaurantes, lavanderias, dispensários, hospitais, sanatórios, organizações esportivas, cinemas, teatros etc [42].

Isso permitiria a “completa absorção das funções econômicas da família pela sociedade socialista, unindo todas as gerações pela solidariedade e ajuda mútua, devia proporcionar à mulher e, consequentemente, ao casal, uma verdadeira emancipação das cadeias milenares” [43].

A socialização do trabalho doméstico ocupava, portanto, um lugar central no programa bolchevique, visando dois flancos: revolucionar a vida cotidiana e alcançar a plena incorporação das mulheres nas tarefas de liderança do partido e do novo Estado operário. Socializar o trabalho doméstico exigia avançar no planejamento de toda a economia, para pôr fim à irracionalidade capitalista. Tratava-se de reorganizar a produção e a reprodução em uma nova base, e as mulheres tinham que desempenhar um papel central nesse desafio. Deste ponto de vista, o assunto é abordado nos textos de Inessa Armand, Alexandra Kollontai, Lênin e Trótski reunidos nesta compilação.

As mulheres e a Terceira Internacional

A Revolução Russa foi fundamental para a fundação da Terceira Internacional, uma tarefa estabelecida pelos internacionalistas após a traição da Segunda Internacional. Nesta compilação, compartilhamos as “Diretrizes para o Movimento Comunista em 1920”, escritas por Clara Zetkin em consulta com o Comitê Executivo da Internacional Comunista. O Segundo Congresso Mundial da Terceira Internacional não abordou esses debates, segundo indicam algumas fontes, por falta de tempo, mas as diretrizes seriam adotadas pela Internacional. Estas indicam:

O Segundo Congresso da Internacional Comunista endossa a resolução do Primeiro Congresso sobre a necessidade de dar consciência de classe às amplas massas de mulheres proletárias, educá-las nos ideais comunistas, torná-las companheiras de luta e colaboradoras convincentes e determinadas em relação ao comunismo. A participação vigorosa das proletárias nas lutas revolucionárias pela superação do capitalismo e pela realização do comunismo é absolutamente indispensável [44].

As diretrizes retomam um dos objetivos fundadores da Segunda Internacional, que é a luta pela plena igualdade e a emancipação social do sexo feminino, mas apontam precisamente os limites desta organização para realizar esses objetivos, que permaneceram nas mãos das organizações sindicais e dos partidos sociais-democratas reformistas dos diferentes países. Por esta razão, eles convocaram os comunistas e os socialistas revolucionários consequentes a romper relações com a Segunda Internacional, a fim de ingressarem na Terceira Internacional.

Sobre esta questão, interessa-nos notar que a Terceira Internacional incorpora proeminentemente em seu programa a luta contra diferentes opressões, como a opressão às mulheres, a opressão colonial e o racismo. Como mostra o artigo “No clube das mulheres muçulmanas” de Clara Zetkin, incluído nesta compilação, a III Internacional procurou organizar as mulheres das regiões orientais da URSS. Onde as tradições patriarcais, o racismo, a exploração e os preconceitos religiosos milenares se combinaram de forma muito opressiva para as mulheres. A auto-atividade dos mais oprimidos dos oprimidos foi a chave para a propagação da revolução mundial. Algo que, como já apontamos, parece ignorar deliberadamente as críticas ao marxismo que sustentam que este seria um reducionismo economicista. Além das numerosas resoluções sobre o trabalho entre as mulheres (que incluíram a criação de um Secretariado Internacional), a Terceira Internacional adotou teses sobre a questão negra em 1922 [45]. Foi o primeiro documento programático internacional elaborado para combater o racismo, com base nas elaborações de Lênin sobre a questão nacional. Essas teses tiveram um grande impacto em setores de ativistas negros em todo o mundo, que lutavam contra o colonialismo, o que provocou uma atração pelo comunismo e pela revolução.

Revolucionar a vida, a educação e a cultura

Lênin afirmou que nenhuma revolução no mundo havia sonhado em atacar as raízes da opressão e da desigualdade das mulheres tão profundamente quanto a Revolução Russa estava fazendo. No entanto, ele também apontou repetidamente que esse caminho estava apenas começando e que a igualdade perante a lei não significava igualdade perante a vida. Tratava-se de transformar o conjunto das relações sociais: a economia, a reprodução, a vida cotidiana, as relações interpessoais e os modos de pensar.

E talvez este seja outro dos aspectos mais notáveis da Revolução em relação à emancipação das mulheres. Porque não só foram tomadas medidas para garantir a igualdade legal, os direitos reprodutivos, a igualdade no trabalho e para socializar o trabalho doméstico. Os bolcheviques também propuseram uma “revolução dentro da revolução” no campo da educação e da cultura para atacar as características mais atrasadas da sociedade. Assim, embora sustentando que somente uma revolução internacional poderia conquistar bases sólidas para a construção socialista, eles se propuseram a elevar ao máximo possível o nível cultural das massas, que durante séculos foram dominadas pelo tsarismo, pela superstição e pela Igreja Ortodoxa. Em meio às enormes dificuldades impostas pela guerra civil e pelo chamado “comunismo de guerra”, onde os esforços se concentravam na indústria militar e na luta contra a fome nas cidades, os bolcheviques tinham um profundo anseio pela libertação, a ânsia de realizar o grande sonho. E eles estavam cientes de que, sem um salto na cultura, a libertação das mulheres e das massas oprimidas não seria possível. A Revolução empreendeu uma imensa revolução pedagógica, através de planos de alfabetização, publicações a preços acessíveis, bem como inovações radicais para a gestão democrática das escolas por sovietes de estudantes, professores e funcionários.

No texto “Recordações sobre Lênin” [46], Clara Zetkin recupera algumas das chaves do pensamento do revolucionário russo sobre a luta pela emancipação das mulheres. Esse artigo também mostra alguns dos debates, tensões e resistências a essa perspectiva. De acordo com Zetkin, desanimado com a falta de importância que muitas vezes era dada à luta das mulheres, Lênin a questionou da seguinte forma:

Por que em nenhum lugar – nem mesmo aqui na Rússia Soviética – militam no partido o mesmo tanto de mulheres que de homens? Por que o número de mulheres trabalhadoras organizadas sindicalmente é tão insignificante? Os fatos são de se refletir. [47]

Lênin insistirá que, se as mulheres não se envolviam na tarefa de construir a nova sociedade socialista, isso não seria possível. Por isso, era fundamental: “encontrar o caminho que nos leva a elas, estudar, ensaiar, para encontrar esse caminho” [48].

E sobre a importância de levar em conta as demandas mais sentidas das mulheres, ele disse:

Ao criá-las, mostramos que conhecemos todas essas misérias, sentimos como uma injustiça as humilhações das mulheres e os privilégios dos homens. Que odiamos tudo isso, sim; que odiamos e queremos suprimir tudo o que oprime e atormenta a operária, a esposa do operário, a camponesa, a esposa do homem humilde e, mesmo em certos aspectos, a mulher das classes abastadas [49].

Nas conversas de Lênin com Zetkin, ele reflete sobre duas tendências presentes no processo histórico. De um lado, a batalha consciente pela construção de um novo mundo, erguido com base em novos ideais e costumes. Por outro lado, as dificuldades e resistências que se erguiam diante dessas mudanças. Lênin presta especial atenção à necessidade de enfrentar as pressões internas do processo e as contradições de um espírito patriarcal ainda profundamente enraizado no movimento operário, e mesmo no partido. A cada demonstração de conservadorismo nesse campo, sua opinião era implacável. Por esta razão, ele também estava convencido da necessidade das mulheres desempenharem um papel importante nesta luta política, bem como na administração do Estado operário. Inessa Armand também havia apontado:

Na Rússia soviética, a operária de fábrica ou da oficina não é mais uma escrava assalariada, mas a dona, dotada de todos os direitos que – juntamente e em pé de igualdade com o operário – através das instituições soviéticas dos sindicatos, organiza, administra, dirige toda a produção e distribuição [50].

Este processo de transição não foi possível sem iniciativas próprias que emergiram das mulheres, bem como das próprias famílias operárias e camponesas. Trótski disse que, para a transformação da vida cotidiana, dois caminhos foram abertos: um “de cima” e outro “debaixo” [51]. Ou seja, pela iniciativa do Estado e dos sovietes locais, por um lado, ou pelos esforços de famílias individuais, por outro. Não deveria haver contradição entre essas duas vias, porque elas eram complementares. E contra todo fetichismo do estatismo, Trótski colocou ênfase especial em iniciativas “de baixo”. Ou seja, além das medidas legais e materiais tomadas pelo Estado, era necessária uma experimentação de métodos comunitários pela classe trabalhadora. Desta forma, formas de associação livre e voluntária poderiam ser encontradas para a criação dos filhos, alimentação e lavagem de roupas, envolvendo também trabalhadores e camponeses do sexo masculino na luta diária pela igualdade das mulheres.

O poder, mesmo o mais ativo e proativo, não pode reconstruir a vida cotidiana sem a maior iniciativa das massas. No campo da vida cotidiana, estamos chegando à última célula social: a família. O Estado não pode fazer nada sério e profundo na esfera econômico-familiar sem um agrupamento voluntário dessas células no lar [52].

Para Trótski, o partido revolucionário teve uma grande tarefa após a tomada do poder no domínio da vida cotidiana. Tornar evidente a contradição entre os velhos caminhos e as novas exigências da vida. E as mulheres foram chamadas a desempenhar um grande papel, uma vez que, sendo as que mais sofreram por causa do velho, elas poderiam lutar mais energicamente e constantemente pelo novo.

O Termidor no lar

Os bolcheviques sempre sustentaram que, apesar das condições excepcionais impostas pela miséria da guerra civil e do isolamento internacional, era necessário confiar nos sovietes como organizações de poder da classe trabalhadora. Lênin lutou no final de sua vida para que a democracia operária não fosse restringida pela burocracia que começava a surgir no Estado e no partido. Stálin, por outro lado, visava liquidar a base democrática dos sovietes na prática, transformando-os em órgãos meramente formais, sem poder real, em prol de sua própria ditadura personalista.

Ao mesmo tempo, os revolucionários russos sempre souberam que, se a revolução não se expandisse internacionalmente, seria confrontada com a derrota ou a degeneração. É por isso que eles depositaram grandes esperanças na possibilidade de uma revolução triunfante na Alemanha, que teria permitido que o movimento revolucionário se espalhasse por toda a Europa. A ideia de socialismo em um só país, defendida por Stálin, só conseguiu se impor após a derrota da Revolução Alemã, com o isolamento da Rússia revolucionária. Então as contradições dessa “fortaleza sitiada” foram ignoradas, sob a propaganda stalinista de que o socialismo havia sido realizado na Rússia em 90%. O que aconteceu entre meados dos anos 1920 e 1930 foi um processo de reação interna que liquidou a democracia soviética, desencadeou uma perseguição sangrenta contra a oposição e bloqueou a dinâmica de transformações em todos os níveis da vida que caracterizava os primeiros anos da revolução. Ao contrário das posições que ainda hoje estabelecem uma continuidade quase teleológica entre o bolchevismo e o stalinismo, o que ocorreu foi uma ruptura histórica fundamental.

Só então aquele compromisso radical com a emancipação das mulheres e a “extinção” da família deu lugar a uma política baseada no fortalecimento repressivo do Estado e da unidade familiar. E enquanto o Zhenotdel foi abolido em 1930, logo após o aborto ser novamente criminalizado, a homossexualidade e a prostituição também se tornaram crimes. Trótski trata disso no texto “O Termidor no lar”, que faz parte desta compilação:

A burocracia faz da necessidade, uma virtude. Um dos membros da Suprema Corte soviética, Soltz, especializado em questões matrimoniais, justifica a proibição próxima do aborto dizendo que, uma vez que em uma sociedade socialista não há desemprego etc., a mulher não pode ter o direito de recusar “as alegrias da maternidade”. Filosofia de um sacerdote que também tem os poderes de um guarda [53].

Em 1938, o jurista Vyshinskii qualifica todos os avanços legais dos anos 1920 como “perversões extremamente grosseiras”. O autor do Código de 1918 e outros juristas que refletiram sobre questões familiares no sentido libertador dos primeiros anos da revolução foram internados em instituições psiquiátricas, assassinados e/ou desapareceram na prisão. O Partido, sob a liderança de Stálin, estava indo na direção oposta às tendências dos primeiros anos da revolução, que procuravam abrir o caminho para a libertação das mulheres.

Essas ideias de emancipação faziam parte do pensamento revolucionário que Leon Trótski condensou em sua Teoria da Revolução Permanente e ameaçavam o status quo de uma burocracia que queria manter seus privilégios. Nesta compilação reunimos vários de seus escritos sobre o assunto, como o “Discurso pronunciado diante da Segunda Conferência Mundial das Mulheres Comunistas” (1921). Neste ele argumentou que, em momentos de ascensos revolucionários, as mulheres trabalhadoras podiam desempenhar um papel colossal. Mais tarde, em “Da velha à nova família” (1923), retomará a reflexão sobre as árduas contradições para avançar no processo revolucionário de destruição do velho e criação do novo, no âmbito das relações familiares e pessoais. Ali ele observou:

Em geral, a transformação radical da família e do modo de vida cotidiano requer um esforço enorme e consciente por parte da classe trabalhadora como um todo, e pressupõe a existência na própria classe de uma poderosa força molecular derivada de um desejo íntimo e individual de auge cultural [54].

Esses escritos, juntamente com outras elaborações, são uma contribuição para o feminismo socialista e revolucionário e fornecem chaves para pensar sobre muitos dos debates atuais sobre como superar a família patriarcal, na luta pela emancipação das mulheres e do socialismo [55].

O amor e a revolução: abrindo caminho ao Eros alado

É um fato peculiar que, com cada grande movimento revolucionário, a questão do “amor livre” vem à tona.
Friedrich Engels

Incorporamos nesta compilação vários artigos de Alexandra Kollontai referentes ao amor, relações sexuais e afetivas [56]. Essas reflexões eram parte de um debate aberto entre os revolucionários, e existiam diferentes pontos de vista. Kollontai apontava que, para quebrar as correntes da escravidão familiar, era necessário transferir o trabalho doméstico para a esfera da sociedade e do Estado. Mas isso não era suficiente. Ela afirmava que a “crise sexual” da humanidade não poderia ser reduzida a uma questão econômica. Isso incorporava elementos subjetivos, de modo que ela era a favor de uma “renovação psicológica da humanidade”, ou seja, de uma revolução total nas relações afetivas. Ela afirmava que o casamento monogâmico é sustentado por uma concepção de amor como propriedade, por um profundo individualismo, egocentrismo e pela falsa ideia da invariabilidade da psicologia humana no curso da vida. Todos os elementos que impedem as pessoas de desfrutar livremente de seus relacionamentos. A ideia de posse completa do outro e a busca de uma “alma gêmea” para combater a solidão gera fortes ciúmes, angústias e verdadeiras tragédias pessoais.

Kollontai considerou que esta questão não poderia ser relegada à esfera privada nem adiada para depois da revolução. Ao mesmo tempo, ela estava convencida de que isso não poderia ser resolvido pela vontade individual das mulheres na sociedade atual. A transformação da psicologia humana tinha que se dar no próprio curso da luta, mas a metamorfose não culminaria sem uma reorganização total das relações econômicas e sociais sobre uma nova base comunista.

A revolucionária trata, ainda, sobre diferentes formas de amor na história e em diferentes sociedades; das relações tribais, passando pelo amor-amizade entre os homens na Antiguidade, pelo amor cavalheiresco na Idade Média e pelo surgimento do amor-paixão ligado à ideia de propriedade, cunhado pela burguesia emergente. Entre as diferentes demandas que a classe trabalhadora teve que apresentar para a construção da sociedade futura, Kollontai incluiu a conquista de um novo tipo de relações sexuais e novas formas de amor.

O amor-camarada que propõe implicaria novas relações entre as pessoas, uma vez que se baseia na igualdade e na solidariedade não só em um casal, mas entre todos os membros da nova sociedade comunista, rompendo as barreiras que o individualismo, a competição e a propriedade levantam atualmente. O amor-jogo (relações livres que não implicam um compromisso absorvente da subjetividade de uma pessoa com outra) e o amor-camarada (que inclui várias formas de amor baseadas na igualdade) foram para Kollontai um “precioso fator psicossocial” para construir uma nova sociedade.

Ela apostava que o papel de vanguarda nessas transformações seria desempenhado pelas “novas mulheres” que, ao contrário de suas antecessoras, não colocavam mais o centro de gravidade de suas vidas no amor dos homens. As novas mulheres afirmam sua individualidade e seu direito às alegrias da sexualidade e do amor, mas limitando-os a um lugar subordinado, porque se concentram no trabalho e em seus projetos. Kollontai ressalta que esse novo tipo de mulher é encontrado na arte, na ciência e em todas as classes, mas que, nas fileiras da burguesia, elas ainda são um “tipo acidental”, não generalizado. As verdadeiras novas mulheres são filhas do “uivo infernal das máquinas industriais”: mulheres trabalhadoras que ganham a vida e lutam por sua emancipação. Exploradas em fábricas e escritórios, essas mulheres se chocam com os preconceitos e a hipocrisia da sociedade que defende um discurso sobre a “fraqueza” ou “inferioridade” das mulheres para relegá-las a uma posição desigual. Com as novas mulheres, que participarão da construção socialista, uma nova força de transformação também nasce dentro da classe trabalhadora. Kollontai foi uma dessas “novas mulheres” e uma das figuras-chave que propôs um projeto de emancipação revolucionário para as mulheres. Nos últimos anos de sua vida política e pessoal, no entanto, sua localização acabou sendo muito mais contraditória. Depois de ter feito parte da chamada Oposição Operária [57] nos anos 1920, acabou, na década seguinte, subordinada ao stalinismo.

Os escritos de Kollontai começaram a ser recuperados nos últimos anos por várias feministas, observando que existem ideias avançadas de que “o pessoal é político”. De nossa parte, pensamos que seus escritos são muito sugestivos para refletir sobre a necessidade de transformar as relações pessoais, para além do capital. No entanto, eles não devem ser separados de todos os debates em torno da Revolução Russa. Neste campo, as reflexões de Leon Trótski sobre a vida cotidiana e a transição para o socialismo são uma contribuição sem igual. Nesses escritos, o revolucionário russo apontava que “se realmente queremos transformar as condições de vida, devemos aprender a olhar a vida através dos olhos das mulheres” [58]. Da mesma forma, no Programa de Transição, escrito em 1938 e adotado na Conferência de fundação da Quarta Internacional, ele dedica uma seção especial às demandas da juventude e das mulheres trabalhadoras, os setores mais oprimidos da classe trabalhadora.

Todas as organizações oportunistas, por sua natureza, concentram seu inte-resse nas camadas superiores da classe operária e, consequentemente, igno-ram tanto a juventude como as mulheres trabalhadoras. Ora, a época de de-clínio do capitalismo reserva à mulher seus mais duros golpes, tanto na condição de trabalhadora como de dona de casa. As seções da IV Interna-cional devem buscar apoio nas camadas mais oprimidas da classe operária e, portanto, entre as mulheres que trabalham. Nelas encontrarão inesgotá-veis fontes de devoção, abnegação e espírito de sacrifício.

Abaixo o burocratismo e o carreirismo!

Lugar para a juventude e para a mulher trabalhadora!

Estas são as consignas inscritas na bandeira da IV Internacional [59].

Por um feminismo socialista para o século XXI

Mais de um século se passou desde que muitos dos textos desta compilação foram escritos. No entanto, os debates sobre a precarização da vida, as múltiplas formas de violência contra as mulheres e a catástrofe capitalista continuam na ordem do dia. Talvez seja por isso que a leitura desses textos possa ser inspiradora. Porque, diante de cenários de crises econômicas, guerras e catástrofes climáticas, fica cada vez mais claro que a opressão patriarcal está entrelaçada com múltiplos mecanismos de exploração do capital. Que não é possível separar a luta pelos direitos das mulheres ou contra a opressão, das batalhas para acabar com esse sistema social como um todo.

Estamos testemunhando o retorno das lutas da classe trabalhadora – e esta é uma classe que está mais feminizada e racializada do que nunca na história. Hoje, setores de mulheres trabalhadoras ocupam um lugar de liderança em inúmeras greves, como enfermeiras e professoras em vários países, as trabalhadoras da Starbucks e da Amazon nos Estados Unidos, as maquiladoras mexicanas, as que limpam hotéis em Barcelona ou Paris, bem como milhares de trabalhadoras no Brasil, Argentina e muitos países latino-americanos, junto com aquelas que lutam pelo direito à moradia e muitos outras. Para essas novas gerações de lutadoras, o feminismo socialista tem muito a contribuir [60].

No campo da sexualidade, em grande parte condicionados por seu próprio tempo, os autores marxistas clássicos não abordaram a questão da diversidade sexual ou de gênero, dimensões da vida que, nas últimas décadas, adquiriram maior relevância nas reflexões teóricas e nas lutas dos movimentos sociais. Ainda assim, quando o dramaturgo Oscar Wilde foi condenado à prisão em 1895 por sua homossexualidade, os socialistas alemães foram o único partido a defendê-lo. Mais tarde, a Revolução Russa desempenhou um papel avançado neste campo, com a descriminalização da homossexualidade e inspirando correntes de vanguarda na questão sexual. A crítica à família patriarcal e uma concepção materialista das relações humanas foram a base para o marxismo revolucionário incorporar essa questão em períodos posteriores. Especialmente a partir das décadas de 1960 e 1970, no calor do surgimento de novos movimentos sociais pela diversidade sexual, diferentes autores marxistas se concentraram nessas questões. O feminismo socialista rejeita todas as formas de opressão em relação às mulheres e à diversidade sexual, a transfobia e a homofobia: ninguém é livre se todes não forem livres.

Começamos este prólogo apontando que, nos últimos anos, mecanismos têm agido repetidamente para desviar a mobilização e recompor regimes políticos em crise. Uma tarefa na qual as burocracias sindicais e também as burocracias dos movimentos sociais desempenharam um papel central. É o caso dos feminismos reformistas e institucionais em vários países, que, depois de agirem pela passivização das ruas, chamaram a confiar na ideia de que as demandas mais sentidas das mulheres poderiam ser resolvidas a partir das instituições do Estado capitalista, sem questionar os quadros da sociedade de classes. Dessa forma, muitas feministas institucionais acabaram administrando ministérios ou secretarias de Estado, em convivência com os antigos poderes tradicionais, colaborando assim com a manutenção do status quo do capitalismo patriarcal. São as mesmas correntes que, diante do crescimento da extrema-direita ou dos setores mais conservadores, se propõem a recriar as armadilhas do “mal menor”, que só podem levar a novas frustrações.

Em um sentido muito diferente, os textos desta compilação contribuem para a reflexão sobre como articular um programa socialista que incorpore as demandas mais sinceras das mulheres, das populações migrantes, dos negros e das nacionalidades oprimidas ao lado da classe trabalhadora. Em outras palavras, um programa para que a classe trabalhadora alcance sua hegemonia, reunindo todas as camadas oprimidas na luta contra o capitalismo. Uma perspectiva que passa, em primeiro lugar, por desenvolver a auto-organização da classe trabalhadora. Como foi demonstrado na Revolução Russa, através de sua intervenção em organismos de auto-organização da classe trabalhadora, os trabalhadores e as trabalhadoras serão capazes de assumir a liderança de seu próprio destino. Ao mesmo tempo, equipar-se com uma estratégia para vencer requer a construção de partidos socialistas revolucionários, como parte de um partido mundial da revolução.

Nesse sentido, as reflexões de Lênin e Trótski sobre a importância da participação das mulheres em todas as esferas da política nos convidam a pensar sobre o papel das mulheres na militância revolucionária e sobre as condições para o surgimento de novas camadas de líderes socialistas hoje. Mulheres que, agindo decisivamente como “tribunas do povo”, lutem pela hegemonia da classe trabalhadora, juntamente com o resto das camadas oprimidas. Mulheres que pretendam ser dirigentes da revolução e, nessa jornada, também revolucionem suas próprias vidas.

Finalmente, contra toda resignação ao que existe, esses textos nos convidam a pensar sobre as potencialidades de uma perspectiva socialista. O fato é que, se puséssemos todos os recursos disponíveis de ciência, tecnologia e conhecimento humano nas mãos da classe produtora, poderíamos alcançar saltos gigantescos em todos os campos. Acabaríamos com a irracionalidade capitalista, e novas técnicas e aplicações científicas poderiam ser desenvolvidas. Assim seria possível decidir democraticamente como reorganizar a produção, a reprodução, a vida nas cidades e a relação com a natureza. E essa seria a base para uma revolução nas formas de viver, relacionar-se e, também, sentir. Como Trótski havia argumentado, então a humanidade poderia explodir os velhos moldes:

À medida que a humanidade comece a erguer palácios no topo do Mont Blanc e no fundo do Atlântico, para regular o amor, a nutrição e a educação, elevando o tipo humano médio ao nível de um Aristóteles, de um Goethe e de um Marx, isso conferirá ao seu modo de vida não apenas riqueza, intensidade, mas também o mais alto dinamismo. Apenas conformado, a casca da vida cotidiana explodirá sob a pressão de novas invenções técnicas, culturais e realizações biopsíquicas” [61].

Coletivamente, mulheres, homens e todas as “novas” pessoas poderiam implantar suas capacidades nas artes, ciências ou pesquisa, para que essas vidas extraordinárias e criativas não sejam mais um fato ocasional, mas o mais generalizado de uma nova vida humana. Esperamos que esses textos ajudem a despertar esse desejo.

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FOOTNOTES

[1Para aprofundar a análise dos ciclos da luta de classes, bem como a relação entre revolta e revolução, recomendamos a leitura do livro de Matías Maiello, De la movilización a la revolución, Buenos Aires, Ediciones del Pensamiento Socialista, 2022.

[2Ver, de Andrea D’Atri e Laura Liff, "A emancipação das mulheres em tempos de crise mundial", Esquerda Diário, dez. 2015; e "A emancipação das mulheres em tempos de crise mundial (II)"., Esquerda Diário, dez. 2015

[3Ver, de Diana Assunção, A Precarização Tem Rosto de Mulher, São Paulo, Edições Iskra, 2020.

[4Ver, de Josefina L. Martinez e Cynthia Burgueño, Patriarcado e capitalismo, Akal, 2019.

[5Ver nesta compilação, de Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Alemanha, 1884.

[6Robert Owen (1771-1858), socialista utópico nascido no País de Gales; e Charles Fourier (1772-1837), socialista utópico francês.

[7Não incorporamos seus textos nesta compilação. A editora argentina Ediciones del Pensamiento Socialista publicou uma compilação completa com escritos de Flora Tristan, que recomendamos para conhecer seu pensamento e obra.

[8Ver, de Andrea D’atri, “Prólogo”, Flora Tristan: o martelo e a rosa, Buenos Aires, Ediciones del Pensamiento Socialista, 2019.

[9Ver nesta compilação, de Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (fragmentos).

[10Esta ambiguidade é referida por Clara Zetkin em “Contribuição para a história do movimento proletário das mulheres alemãs” (1928), que pode ser lido nesta compilação.

[11Ver nesta compilação, de Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (fragmentos).

[12Idem.

[13Karl Marx, “Capítulo VIII: A jornada de trabalho, em O Capital, v. 1.

[14Jules Guesde, Paul Lafargue e Karl Marx, “Programa eleitoral dos trabalhadores socialistas”, 1880, em Marcelo Musto, A Última Viagem do Mouro, Século XXI Editores, 2020.

[15Lise Vogel, Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária, 1983.

[16Ver, de Ariane Díaz, “Economia política da reprodução social I: trabalho e capital”, Ideias de Esquerda, 28 jul 2019.

[17Ver, de Paula Varela, “La reproducción social en disputa: un debate entre autonomistas y marxistas”, Archivos de historia del movimiento obrero y la izquierda, Buenos Aires, ano VIII, n. 16, mar.-ago. 2020.

[18Federici posteriormente revisa algumas dessas definições, incorporando elaborações de outras teóricas sobre o chamado “sul global”. Ver, de Josefina L. Martínez, “Feminismo e comunismo, contraponto com Silvia Federici”, Ideias de Esquerda, 11 jun. 2022.

[20August Bebel, A mulher e o socialismo, Akal Editions, 2018 (1977).

[21Ver nesta compilação, de Clara Zetkin, Obituário de Friedrich Engels

[22Ver nesta compilação, de Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Alemanha, 1884.

[23Idem.

[24Josefina L. Martinez, “Engels, as mulheres trabalhadoras e o feminismo socialista”, Ideias de Esquerda, 6 dez. 2020.

[25O Partido Social democrata da Alemanha (SPD) era o maior partido da Segunda Internacional, tendo esse nome desde 1890.

[26Ver nesta compilação, de Clara Zetkin, A Proclamação do Dia Internacional da Mulher (8 de Março)

[27Ver nesta compilação, de Clara Zetkin, Só com a mulher proletária triunfará o socialismo.

[28Ver nesta compilação, de Eleonor Marx Aveling, Informe sobre o discurso de Clara Zetkin no Congresso de Gotha.

[29Andrea D’Atri, Pão e Rosas: identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo, São Paulo, Edições Iskra.

[30Ver nesta compilação, de Rosa Luxemburgo, Uma questão tática.

[31Ver, de Celeste Murillo, “Sylvia Pankhurst, la sufragista que no se conformó con el voto”, Izquierda Diario, 6 maio 2022; de Andrea D’Atri, Celeste Murillo e Ana Sánchez (Orgs.), Lutadoras, Ediciones del Pensamiento Socialista, Buenos Aires; e de Josefina L. Martínez, Revolucionárias, Editorial Lengua de Trapo, Espanha.

[32Jacqueline Heinen, Da I à III Internacional: a questão das mulheres, Editorial Fontamara, Barcelona, 1978.

[33Ver nesta compilação, de Alexandra Kollontai, O dia da mulher.

[34O manifesto de Zimmerwald foi escrito por Leon Trótski no dia 8 de setembro de 1915. Disponível em Marxists Inter-net Archive.

[35Os eventos entraram para a história como a Revolução de Fevereiro, porque o calendário juliano, então em vigor na Rússia, “atrasava” 13 dias.

[36Ver: Cinzia Arruzza, Las Sin Parte, Edições Sylone, 2010; Enzo Traverso, Revolução, Akal, 2022; Tarik Ali, Os dilemas de Lênin, Aliança Editorial; Sophie Lewis, Abolir a Família, Verso, 2022; Michael Hardt, Amor Vermelho, 2017.

[37Wendy Goldman, Mulher, Estado e Revolução, São Paulo, Boitempo Editorial e Edições Iskra, 2014.

[38Idem.

[39Ver nesta compilação, de Rosa Luxemburgo, A Proletária

[40Ver nesta compilação, de Inessa Armand, A operária na Rússia Soviética

[41Idem

[42Leon Trótski, “Capítulo VII: A Família, a juventude e a cultura”, La revolución traicionada, Ediciones del Pensamiento Socialista, Buenos Aires

[43Idem

[44Ver nesta compilação, de Clara Zetkin, Diretrizes para o movimiento comunista feminino

[45Sobre este tema ver, de Letícia Parks, Odete Assis e Carolina Cacau (Orgs.), Mulheres negras e Marxismo, Edições Iskra, São Paulo, 2021.

[46Ver nesta compilação, de Clara Zetkin, Recordações sobre Lênin

[47Idem.

[48Idem.

[49Idem.

[50Ver nesta compilação, de Inessa Armand, A operária na Rússia Soviética

[51Leon Trótski, “Carta a una asamblea de trabajadoras de Moscú”, nov. 1923, em Problemas de la vida cotidiana y otros artículos sobre la cultura en la transición al socialismo, Obras Selecionadas v. 14, Ediciones del Pensamiento Socialista, Buenos Aires, 2021.

[52Leon Trótski, Contra la burocracia, esclarecida y no esclarecida, em Problemas de la vida cotidiana y otros artículos sobre la cultura en la transición al socialismo, idem.

[53Ver nesta compilação, de Leon Trótski, A familia, a juventude e a cultura.

[54Ver nesta compilação, de Leon Trótski, Da velha à nova família

[55Andrea D’Atri, “A emancipação das mulheres na obra de Leon Trótski”, Ideias de Esquerda, 26 jul. 2020.

[56Veja nesta compilação.

[57A oposição operária surgiu em 1919-1920 levantando críticas sobre a relação dos sindicatos com o Es-tado. Seus representantes se posicionaram contra a NEP e em nível internacional foram contra as teses da Frente única da Terceira Internacional.

[58A oposição operária surgiu em 1919-1920 levantando críticas sobre a relação dos sindicatos com o Es-tado. Seus representantes se posicionaram contra a NEP e em nível internacional foram contra as teses da Frente única da Terceira Internacional.

[59Leon Trótski, El Programa de Transición y la fundación de la IV Internacional, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP (Obras Escogidas 10, coeditadas con el Museo Casa León Trotsky), 2017.

[60Josefina L. Martínez, Nós mulheres, o proletariado, Edições Iskra, São Paulo, 2022.

[61Leon Trótski, “Sobre la cultura del futuro”, em Problemas de la vida cotidiana y otros artículos sobre la cultura en la transición al socialismo, idem.
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