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Quem são os trabalhadores dos canteiros de obras na última greve da MRV em Campinas-SP?

Iuri Tonelo

Daphnae Helena

Quem são os trabalhadores dos canteiros de obras na última greve da MRV em Campinas-SP?

Iuri Tonelo

Daphnae Helena

A greve dos 700 trabalhadores dos canteiros de obras da construtora MRV em Campinas, do complexo de prédios Imperial Garden, arrancou uma importante conquista com a mobilização que se encerrou nesta semana. A MRV, uma das principais construtoras do país, cujo sucesso está edificado sobre a precarização do trabalho, é conhecida pelas recorrentes denúncias de utilização de trabalho análogo à escravidão nos seus canteiros de obras. A empresa tem como sócio fundador o bolsonarista, Rubens Menin, que também é dono da CNN Brasil.

Numa conjuntura nacional reacionária, de enormes ataques ao conjunto da classe trabalhadora, estes operários da construção civil realizaram uma greve histórica, pela sua duração. Foram mais de 40 dias paralisados, com adesão praticamente total dos empregados diretos da empresa, para denunciar a precariedade do trabalho, reivindicar melhorias nas condições dos canteiros de obras e aumento no valor da participação dos lucros e resultados da empresa (PLR). Depois de semanas absolutamente intransigente, atacando os trabalhadores com cortes de ponto, a MRV foi obrigada a negociar com os trabalhadores e a greve terminou com o aumento -apesar de não ser aquele reivindicado- do valor da PLR e, principalmente, um importante ganho de organização desses operários.

Para uma análise da construtora veja: MRV: o sucesso edificado sob a precarização do trabalho

O Observatório da Reestruturação Produtiva e da Precarização do Trabalho esteve presente, junto ao Esquerda Diário, para traçar o perfil dos trabalhadores que estiveram na linha de frente dessa mobilização e coletar denúncias das condições de trabalho, neste setor “tradicional” no qual a burguesia nacional é reconhecidamente marcada pela intensa precarização do trabalho. Em nossa pesquisa, foram coletadas 88 respostas, o que representa cerca de 12% do total de trabalhadores e trabalhadoras paralisados. Nesta pesquisa, nós abordamos, além das características pessoais, rendimento e horas trabalhadas, condições de trabalho, como equipamentos de proteção individual e acidentes de trabalho, além de temas da atualidade, como a visão em relação ao governo Bolsonaro.

Trabalhadores da construção civil: homens, negros e nordestinos

Os dados coletados a cerca das características pessoais destes trabalhadores mostram uma presença majoritária masculina – cerca de 90%. Cerca de 97% dos trabalhadores entrevistados são negros. 86% não nasceram no estado de São Paulo, sendo Maranhão, Bahia e Alagoas os estados das cidades de origem mais citados. Em relação a faixa etária, cerca de 20% dos trabalhadores entrevistados possuíam até 30 anos, 67% tinham entre 30 e 50 anos e 10% acima de 50 anos.

Apesar da presença feminina ser minoritária, apenas 10% dos trabalhadores nos canteiros de obra, o percentual encontrado entre os trabalhadores que estiveram na da greve é próximo à proporção dos trabalhadores contratados nos canteiros de obras – 12% de mulheres, segundo dados divulgados pela MRV em 2020 . Este fato evidencia que apesar das dificuldades reconhecidamente maiores para as trabalhadoras, seja pela responsabilidade de cuidar dos filhos pequenos, seja por terem que se enfrentar com o machismo, com a pressão familiar, estas operárias da construção civil estiveram na linha de frente da greve e da organização destes trabalhadores.

As entrevistas também apontaram para uma questão importante em relação à autodeclaração e a afirmação como negro. O bolsonarismo representou um choque à direita nas relações raciais no país Em 2020 [1], o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos, e o crescimento do debate sobre racismo e a violência policial colocou assumiu uma centralidade na mídia brasileira e nas redes sociais, também como uma resposta preventiva para conter possíveis mobilizações no país. No entanto, a questão da afirmação negra ainda segue sendo uma questão central no conjunto da classe trabalhadora. Na nossa pesquisa, poucos trabalhadores entrevistados se reconheceram como brancos, mas é chamativo que o reconhecimento como pardo, moreno ou moreno claro tenha representado mais de 75%.

Para aprofundar neste debate recomendamos: A greve dos trabalhadores da MRV e uma lição estratégica à luta negra

Remuneração e horas trabalhadas

Em relação ao rendimento mensal destes trabalhadores, a pesquisa apontou que o rendimento mensal declarado pelos entrevistados é em média de 1500 reais. Foram entrevistados trabalhadores com diferentes funções na obra e, portanto, com diferentes salários registrados. No entanto é chamativo que este rendimento esteja abaixo da média brasileira da população ocupada na construção civil que é de R$ 1776. Os rendimentos baixos são ainda mais evidenciados quando levamos em conta que a média salarial da população ocupada deste setor é cerca de 30% menor do que a média do país.

As horas trabalhadas também refletem a precarização do trabalho. Cerca de 20% dos entrevistados disseram que possuem outros trabalhos, realizando bicos. Ou seja, além de trabalharem na MRV, com o contrato para a jornada de 44 horas semanais, num trabalho desgastante para o corpo, porque a empresa não garante os equipamentos adequados, e os operários frequentemente têm que subir os andares do prédio com saco de cimento nas costas, ou bater o cimento na mão por falta de betoneira, eles ainda realizam bicos durante os finais de semana.

Em relação às horas extras, a maioria dos trabalhadores afirmou que não faz ou faz até uma hora extra semanalmente. No entanto, aos pesquisadores foram frequentes relatos de situações nas quais os trabalhadores tiveram que seguir trabalhando além do horário do expediente e foram impedidos da bater o cartão, para que não houvesse o pagamento da hora extra. Além disso, houve relatos revoltantes de operários que foram obrigados a trabalhar por doze horas seguidas debaixo de chuva para cumprir a meta da empresa: “já cheguei a trabalhar 12 horas de baixo de chuva, fomos embora meia noite”.

Condições de trabalho e precarização na MRV

A pesquisa do Observatório também buscou desvelar as condições de trabalho e a intensa precarização presente na MRV. Um primeiro dado da pesquisa foi sobra a falta de equipamentos de segurança e EPIs necessários para o trabalho cotidiano. Com a lógica de enxugar os custos, muitas empresas têm dificultado ou limitado o acesso aos trabalhadores de EPIs, e no caso da MRV isso se demonstra claramente com os dados da pesquisa: 62,5% disseram não ter recebido EPIs adequados, contra 37,5% que disseram ter recebido.

A falta de equipamentos se revela em dois planos. Por um lado, na transferência de responsabilidades da empresa para os trabalhadores, com os próprios tendo que buscar sua proteção individual ou mesmo seus instrumentos de trabalho. Alguns relatos feitos à nossa pesquisa revelavam que os trabalhadores arcavam com os custos de determinadas ferramentas, que traziam de casa, o que é uma forma de rebaixar ainda mais os salários, sugando parte da sua remuneração a partir das necessidades trabalhistas.

Mas os problemas não são apenas econômicos. Sem condições por vezes de arcar com ferramentas e EPIs, os trabalhadores enfrentam situações de acidentes estando desprotegidos, o que tem levado a uma dura realidade. Como é sabido, a precarização no mundo do trabalho brasileiro se revela no número de acidentes, contribuindo para que o Brasil seja o 2º país do G20 em mortalidade por acidentes de trabalho [2] . E a pesquisa mostrou em dados quantitativos e nos relatos que também na MRV a realidade nesse âmbito é alarmante. 28,4% dos entrevistados disseram ter sofrido algum acidente de trabalho.

Vale notar que, embora na própria pergunta da pesquisa destacássemos acidentes leves, a maioria dos entrevistados não consideravam os pequenos acidentes na contabilidade, o que revela certa naturalização dos acidentes de trabalho, como vemos em muitas categorias no país. Ainda assim, quase 3 em cada 10 trabalhadores que está atualmente nas obras de construção da MRV nos últimos 5 anos já se acidentou no trabalho. Este dado também considera os trabalhos anteriores, no caso daqueles que possuem menos de quatro anos de empresa.
Para que tenhamos uma ideia do que estamos tratando, trazemos a palavra dos trabalhadores em depoimentos durante a pesquisa que falam por si só sobre o descaso da empresa:

Já quebrei o dedo na construção, o técnico de segurança e o encarregado viram, mas falaram que não era nada demais. A placa também prensou um outro dedo meu, saiu parte da unha. É comum ver acidentes acontecendo, mas os supervisores sempre falam que não é nada demais. Teve um trabalhador que a placa pegou na cabeça dele, ainda bem que estava de capacete, mas se tivesse pegado no pescoço ia ser muito perigoso (Relato trabalhador da MRV, 08/2021)

A fala é expressiva da situação de descaso com o trabalho nas empresas de construção. O papel dos supervisores é relativizar os acidentes, naturalizar. Outro relato, mais forte, revela um pouco a negligência diante dos acidentes mais graves: "Furei o pé numa ponta de ferro, a empresa não chamou ambulância nem nada, fui andando até o ponto de ônibus com o pé sangrando." (Veja aqui o relato trabalhador da MRV, 08/2021)

Outros relatos desse tipo foram colhidos na pesquisa, e por mais forte que sejam, não se trata de uma realidade isolada. A verdade é que a MRV foi acusada inúmeras vezes e responde processos por trabalho escravo, como ocorreu agora no mês de maio de 2021 em Porto Alegre e São Leopoldo, onde o Ministério Público do Trabalho disse que havia 16 trabalhadores vindos do Maranhão em situação análoga à escravidão [3]. E casos como esses não são circunstanciais, mas fazem parte do modus operandi da construtora, se levar em conta que foi condenada em 2013 a pagar 4 milhões por ter mantido trabalho escravo em suas obras em Americana, interior de São Paulo [4].

Por fim, vale ainda chamar a atenção para a questão de gênero e trabalho que se revelou na pesquisa. Cerca de 10% do trabalho nas obras é composto por mulheres, que estão normalmente nos cargos de limpeza. No entanto, revelou-se uma prática recorrente de desvio de função, com as mulheres tendo que fazer trabalhos de construção nas obras, mas também bastante expostas as situações de machismo, sem nenhuma política da empresa em lidar com essa situação. É o que expressou claramente uma das trabalhadoras quando nos relatou o seguinte: “Nada presta nessa empresa, mulher fazendo trabalho pesado e ganha menos. Mulher lavando banheiro de homem na obra, e aí sofre assédio”.

Avaliação do governo

As características pessoais encontradas nas entrevistas realizadas pelo Observatório com os operários da MRV que estiveram na linha de frente da greve refletem, em grande medida, a característica do setor da construção civil nacionalmente. No qual, a presença de homens negros e nordestinos é bastante forte. Como evidenciamos ao longo deste artigo, o rendimento, horas trabalhadas e condições de trabalham também expressam a precarização do trabalho que é marca da construção civil no país.

Tendo isso em vista, fizemos uma pergunta sobre a avaliação do governo. A conjuntura reacionária de ataques aos trabalhadores é sentida pelos grevistas, uma vez que 70% consideram o governo Bolsonaro como péssimo, e os que responderam ótimo ou bom não atingiu 5%. Na mobilização se expressou a revolta desses trabalhadores com as condições de trabalho, mas também em relação a conjuntura nacional. Nos piquetes, por exemplo, por meio de fotos com cartazes, os trabalhadores participaram de campanhas nacionais em defesa do Galo, entregador de aplicativos quando este ainda estava arbitrariamente preso e também contrários ao marco temporal, debate que tem mobilizados indígenas em Brasília.

Estes elementos foram motores fundamentais para que a greve perdurasse por mais de 40 dias. A duração desta mobilização traz um caráter histórico, uma vez que, segundo o Dieese, mais de 90% das greves no setor privado se encerram com menos de 10 dias de duração. Nessa luta, estes trabalhadores negros e nordestinos, terminaram a greve com uma conquista importante, dobraram a intransigência da MRV, conseguiram um aumento na PLR, mas ainda mais fundamental, avançaram na organização.

Coordenadores de Pesquisa: Vitória Camargo, Daphnae Helena e Iuri Tonelo
Organização Geral: Caio Silva Melo
Entrevistadores: Gabriel Brisighello, Laura Baraldi, Matheus Correia, Victor Bernardes
Analistas: Tatiane Lima, Camila Begiato e Bianca Coelho.


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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE

Daphnae Helena

Economista e mestranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp
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