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“Rainha Lira” e a locomotiva da história: uma reflexão sobre o pensamento de Roberto Schwarz

Pedro Pequini

“Rainha Lira” e a locomotiva da história: uma reflexão sobre o pensamento de Roberto Schwarz

Pedro Pequini

No ano do bicentenário da Independência do Brasil, o ensaísta e ex-professor de teoria literária da USP e UNICAMP, Roberto Schwarz, publicou seu mais novo livro: Rainha Lira. Trata-se de uma peça teatral em que o veterano do golpe de 64 apresenta seu manifesto-político em forma dramática dos últimos acontecimentos da tragédia brasileira, remontando ao lulismo, passando por junho de 2013, pelo golpe institucional de 2016, até desembocar na prisão arbitrária de Lula em 2018. No aniversário de 10 anos das jornadas de junho, avizinha-se no horizonte daqueles que sentem os efeitos nefastos do apodrecimento das instituições estatais deste regime do golpe institucional, que nos levaram até esta extrema direita bolsonarista, e colocam-se a tarefa de apresentar uma saída revolucionária, anticapitalista e socialista (o que só é possível de forma independente do novo governo eleito), a centralidade de tirarmos os balanços corretos do último grande levante de massas que rasgou o país e abriu uma nova etapa na dinâmica da luta de classes. Para tanto, veremos que será produtivo prestar atenção no que grandes intelectuais como o Schwarz, que foi capaz de alcançar conclusões-chave sobre a formação do Brasil, muito em luta política com o stalinismo, através, por exemplo, do resgate de ferramentas marxistas (como o ‘Desenvolvimento Desigual e Combinado’ de Trótski), desde que acompanhada da necessária crítica às revisões ecléticas pós-marxistas também cometidas.

A história se repete duas vezes…

Para os apreciadores do crítico dialético, a entrada em cena de uma peça teatral como manifesto político não foi uma surpresa. “A lata de lixo da história: Chanchada política” (1977), foi o primeiro movimento deste tipo, sendo uma sátira ferina sobre o golpe contrarrevolucionário de 1964. “O Alienista” de Machado de Assis forneceu-lhe a inspiração e a matéria-prima para a obra, chanchada em treze cenas que transfiguram o clássico numa sátira impiedosa da sociedade brasileira durante o regime militar.

Publicado quase contemporaneamente à antologia “O pai de família e outros estudos" (1978), ambos os livros guardam importantes lições, que o então professor de teoria literária na USP e assistente de Antonio Candido, tirou do primeiro golpe que seus olhos viram ocorrer no Brasil. No oitavo texto desta obra, intitulado “Cultura e Política, 1964-1969”, Roberto, muito perspicazmente, elenca alguns elementos decisivos para se entender as causas e o desenvolvimento do golpe de 64. Nessa alçada, ele retoma o papel que as direções dos principais sindicatos da classe operária à época cumpriram e demonstra o quanto o Partido Comunista Brasileiro (PCB), principal liderança política das massas, foi responsável por desmobilizar os trabalhadores e permitir que os militares avançassem sem resistência ou confronto sérios:

“Antes de 64, o socialismo que se difundia no Brasil era forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes. A razão esteve em parte ao menos na estratégia do Partido Comunista, que pregava aliança com a burguesia nacional. Formou-se em consequência uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista então dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno. O aspecto conciliatório prevalecia na esfera do movimento operário, onde o P.C. fazia valer a sua influência sindical, a fim de manter a luta dentro dos limites da reivindicação econômica.”

Tal balanço, que pode ser sentido na pergunta tão feita pela juventude e intelectualidade da época, "por que o PCB não lutou contra o golpe?”, é fundamental e serve enormemente para as novas gerações que hoje vivem os efeitos do golpe institucional de 2016, nesta enorme precarização da vida e do trabalho, e vêem o stalinismo como uma saída para a crise. Schwarz fez parte dessa geração de intelectuais, que sentiu a tragédia da estratégia de conciliação com a burguesia nacional levada a cabo pelo Partido Comunista, e nos deixou de legado que o significado histórico do stalinismo é justamente sua falência teórico-programática-estratégica.

A conclusão, que escapava do radar do PCB, de que nada de progressista poderia vir da elite brasileira, já havia sido tirada muito antes por intelectuais como o Machado de Assis, cuja ironia crítica nada tinha de resignação ou conservadorismo (como inclusive defendia o stalinismo). O bruxo do cosme velho, na realidade, valeu-se da sua literatura para, em um movimento pra lá de ousado, desmascarar qualquer tipo de ilusão na elite. Não à toa Roberto se valeu da obra “O Alienista” para fazer sua primeira peça-manifesto. O germe das "ideias fora de lugar", um dos principais temas da obra crítica de Schwarz, transparece nas ações desmioladas do alienista Simão Bacamarte, que implanta em Itaguahy um regime totalitário, inteiramente baseado numa "ciência" importada, para “salvaguardar” a saúde mental dos cidadãos.

Já em “Rainha Lira”, no que diz respeito às causas e ao desenvolvimento do golpe institucional de 2016, somos apresentados a uma visão que, por assim dizer, deixa as posições políticas mais em aberto. Jamais queremos cometer o erro stalinista de realizar uma crítica que reduza a obra ao seu conteúdo político, aplicando uma visão dogmática sobre a arte e apontando qual posição o autor deveria ter defendido em suas produções. Schwarz, quando decide escrever uma peça, possui obviamente total liberdade criativa. Contudo, além da relação com a política ser evidente e sistematicamente referenciada em todas as cenas, está presente fundamentalmente na estrutura do drama, uma vez que seu fim primeiro é ser um manifesto-político, um balanço histórico feito pelo intelectual da periferia do capitalismo sobre o segundo golpe visto por seus olhos. Logo, para talvez alcançarmos algo de significativo sobre a forma da peça em sua dinâmica estrutural, necessitamos passar pelas bases ideológicas que levaram nosso autor a, em primeiro lugar, escolher representar um episódio histórico ou deixá-lo de fora da trama.

Por enquanto, resgato um debate que ocorreu em uma sala de aula na UFMG, quando estudantes de literatura discordaram do nível de crítica sobre o PT que havia ou não na peça. Soube desta história através de uma camarada que lá analisa o Machado e a questão negra e ela disse que a sala se dividiu quanto a leitura da última cena, quando a personagem do Rei (alegoria para Lula) fala sobre sua situação de preso e conjectura sobre como chegou até ali e o que o aguarda no futuro. Analisando exatamente as mesmas falas, metade dos estudantes defendeu que a peça via Lula com otimismo e o apresentava como um possível agente solucionador das contradições sociais, enquanto a outra, via justamente o oposto. Antes de adentrar nas minúcias do debate, já chama aqui atenção o amplo arco de conclusões alcançado, o que pode ser justamente sintoma de uma obra que ficou no meio do caminho da crítica e da reivindicação. Se este artigo correr bem, no seu final conseguiremos ter uma visão mais precisa sobre tal hipótese.

Junho de 2013

A peça é agora uma releitura da canônica tragédia teatral de William Shakespeare, “Rei Lear”. No lugar da Grã-Bretanha pré-cristã, o Brasil do séc. XXI toma conta; ao invés de um rei bom que enlouquece após ser traído por duas de suas filhas, nesta paródia o rei é preso no fim (alerta spoiler!) e há também uma rainha cujas filhas funcionam como uma espécie de desmembramento das diferentes facetas da própria ex-presidenta Dilma e seus governos, que estão plasmados nas figuras dessas quatro personagens (Rainha Lira; Valentina - passado guerrilheiro; Austéria - políticas neoliberais e de austeridade; e Maria da Glória - a estratégia de conciliação de classes).

O enredo inicia-se com um diálogo entre Rita, uma mãe, dona de casa e ex-comunista, com seu filho, Progréssio, que posteriormente protagonizará o sentimento disruptivo e autonomista que deu o tom das jornadas de junho (“Nós queremos que o controle se perca para que aconteça alguma coisa nova, nunca acontecida, diferente do passado que ninguém mais suporta. A nossa saída é a explosão” Progréssio, P. 35). A cena de abertura - um embate entre o filho que elenca uma série de problemas estruturais ainda vigentes no país, gerados pela desigualdade (como a falta do direito pleno à saúde e educação; os problemas no transporte; as violentas repressões policiais; o desemprego e a precarização do trabalho) mesmo sob gestão dos governos do PT; e sua mãe, que entende qualquer crítica como uma espécie de “ingratidão” com o governo que possibilitou-os comprar seus primeiros eletrodomésticos (“Mas progredir para quê? Nós temos geladeira, máquina de lavar, casa, carro e você tirou diploma. Não está bom demais?” Rita, P. 9) - captura o princípio de uma virada na subjetividade de setores amplos da juventude, em especial da chamada “nova classe média”, e os conflitos envolvendo a nascente crise de representatividade das figuras tradicionais do teatro político brasileiro, com a chegada mais contundente dos efeitos crise de 2008, que atingiu o Brasil em cheio nos anos de 2010/2011 (apesar dos prognósticos soberbos de Lula de que seria apenas uma "marolinha") e terá sua expressão máxima nas jornadas de junho de 2013, quando é aberta a crise orgânica.

Para ilustrar o processo de junho, que toma boa parte do enredo, cenas de passeatas, manifestações e diálogos entre distintos setores sociais (como a burguesia, intelectualidade e juventude) são construídos. Como um grande leitor de Machado que o Schwarz é, encontramos diversas vezes o recurso de “dar a palavra” à elite para que ela mesma se auto-desmascare, expondo seus próprios podres e quebrando qualquer ilusão nos de cima, sempre com uma pitada de ironia deliciosa. Mas nessa obra, assim como na produção machadiana que retrata os de baixo sem idealizações ou romantismo, seu tom provocativo não se limita aos de cima e estende-se para uma crítica à sociedade mais de conjunto, posicionado os holofotes nas farpas, dissonâncias e contradições de cada setor.

O leitor antenado às polêmicas políticas envolvendo as leituras sobre as Jornadas de Junho, quando encontra este tema em “Rainha Lira”, já parte para o livro com o faro atento às possíveis tendências que levem (ou se distanciem) à conclusão petista (hegemônica em boa parte da esquerda) de que junho teria sido o “ovo da serpente” do golpe institucional, ou o começo do fascismo brasileiro. Por detrás dessa análise, formulada pela professora de filosofia da USP, Marilena Chaui, está latente o objetivo político de manter as massas imóveis e neutralizadas, imprimindo um balanço de que a “culpa” para o descarrilamento nacional estaria na manifestação popular, na indignação e no protesto contra a miséria, quando na realidade o que sim levaria o país para os braços da extrema-direita seriam as alianças com a direita que o PT sempre fez, o que só fortaleceu os pilares do bolsonarismo (agronegócio, bancada evangélica e os militares). Como bem disse recentemente o também professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, não é uma surpresa que deste episódio tenham saído vertentes conservadoras, uma vez que “processos insurrecionais tem uma ambivalência” de forças, prevalecendo a que está melhor preparada. Em 2013, como está retratado, ainda que de maneira intencionalmente incompleta, em “Rainha Lira”, o movimento nasceu de maneira legítima e espontânea, com a juventude sonhando e exigindo mais do que uma vida amargada na falta de realizações, mas quem saiu triunfante foi a direita.

No plano referencial da obra (o cenário político brasileiro), são alguns os elementos objetivos e subjetivos que explicam esta “vitória” momentânea da burguesia. Por enquanto, nos interessam somente aqueles que foram representados por Schwarz.

Progréssio, filho de Rita, à certa altura da obra, trava um debate exemplar com sua professora Vera (metonímia de setor da intelectualidade de esquerda mais influenciado pelo stalinismo). O centro da discussão, ali no fervor da radicalidade das jornadas, foi sobre a necessidade ou não de um partido para dirigir as massas à vitória. Na figura dessas duas personagens, vemos dois lados de uma mesma moeda: de um lado, Progréssio entende o debate e a atuação política organizada como um ato de mando burocrático (“Nós, uma ova. Pelo o que eu vejo, você só está querendo mandar neles” Progréssio, P. 32) e então, nessa lógica, seria preciso deixar a espontaneidade reinar; do outro, Vera encara os de baixo como incapazes e justifica a necessidade de uma direção política desde o velho esquema stalinista: aqueles que pensam X aqueles que executam (lê-se também: trabalho intelectual X trabalho manual).

“VERA
Essa multidão imensa, nunca vista, memorável, histórica, precisa urgente de um cursinho marxista.
UMA ESTUDANTE
Lá vem a Vera, querendo ensinar ao povo o que é bom para ele.
VERA
Qual o problema? Eles não sabem. Têm que aprender.
PROGRÉSSIO
Somos nós que precisamos aprender. A massa vai nos ensinar.”

Ambas as visões, ao perderem de vista o potencial revolucionário da classe trabalhadora e os saltos de consciência que se aceleram pela experiência da luta de classes, caem em polarizações equivocadas. A relação de forças dialética entre a classe autoorganizada nos locais de trabalho e uma direção política testada e correta em forma de partido revolucionário, cuja confiança da classe enquanto direção foi conquistada nos processos de luta, foi justamente o que faltou naquele momento em 2013 para podermos saltar de uma revolta parcial até uma revolução insurrecional. Querer negar o direito à organização política prévia para nossa classe, como se tivéssemos que esperar chegar o momento da revolução para começarmos a nos preparar, diminui à zero nossas chances de vencer e não deixa de ser a contra cara do ceticismo pequeno-burguês com o potencial dos trabalhadores e sua capacidade real de dirigir o Estado socialista que a professora Vera escancaradamente carrega.

Contudo, o que principalmente afrouxa a crítica de Schwarz, esfumaçando seus contornos e abrindo um leque de diferentes interpretações possíveis, é a escolha de não representar um episódio central para se entender as conquistas da direita pós-golpe: a traição das burocracias sindicais do PT na greve geral de 2017. Este grande ausente na peça salta aos olhos daqueles que leram o balanço de Schwarz sobre 64, quando sua leitura acerca do quão decisivo foi o papel das direções para a vitória do capital imperialista era uma das coisas mais fortes de sua análise, uma vez que o jogo político passava a ter centro na luta entre as classes, que é o verdadeiro motor da história da humanidade. O que aconteceu com Roberto Schwarz neste entre-golpes para que em “Rainha Lira” a classe trabalhadora e a luta de classes (ou a locomotiva da história) fossem deixados de escanteio?

Ter claro o que estava em jogo nos dias 28 de Abril e 30 de Junho de 2017 é essencial para entendermos como chegamos até a situação atual do país e incontornável para a crítica de “Rainha Lira”. Os mais de 40 milhões de trabalhadores de diversas categorias que paralisaram no dia 28 simplesmente foram os responsáveis por impedir que a Reforma da Previdência fosse aprovada naquele momento pelo golpista Michel Temer (como era o plano e o desejo da burguesia brasileira golpista). Porém, embora anos depois Bolsonaro tenha conseguido aprová-la, o que esse episódio mostra é a força que a classe trabalhadora tem quando se vale dos seus métodos de luta (ex.: greves, piquetes e assembléias). Se Temer foi capaz de aprovar a Reforma Trabalhista e essa greve geral não se transformou em um processo revolucionário no qual as trabalhadoras e os trabalhadores pudessem superar o Golpe Institucional e todo seu projeto de precarização com uma saída dos trabalhadores (ou seja, socialista), é porque o PT traiu o movimento, não construindo o dia seguinte de greve (30 J) e se utilizando da sua posição de direção dos principais sindicatos para desmobilizar e neutralizar os trabalhadores. A traição das direções reformistas, somado à ausência de um partido revolucionário capaz de dirigir as massas para essa vitória (que é a única possível do ponto de vista da humanidade no momento histórico em que vivemos) são os dois fatores fundamentais que explicam como a direita conseguiu ter força e espaço para avançar com seu projeto de descarregar a crise capitalista nas costas dos trabalhadores.

Logo, ao mesmo tempo que Schwarz aponta - por meio da personagem da Rainha Lira - como os articuladores do golpe estavam relacionados com o governo através da política de conciliação, faz também uma escolha estético-política de retirar o episódio da Greve Geral de um balanço que parte da chegada da crise de 2008 no Brasil e termina com a prisão de Lula em 2018, fortalecendo assim uma leitura vitimista do PT (lembrando o tom de “Rei Lear”) e aproximando as Jornadas de Junho ao ascenso da extrema-direita, eventos que, por sua vez, não possuem relação de causalidade. Esse vai e vem, entre a crítica e a reivindicação, lembrando um movimento labiríntico, parece ser um dos aspectos estruturais da narrativa. Mas só isso não responde totalmente a questão.

O que aconteceu com Roberto Schwarz entre 1977 (data de publicação de “Lata de Lixo da História”) e 2022 (lançamento de “Rainha Lira”), que o mudou substantivamente, está relacionado a algo mais geral: um momento histórico conhecido por “Restauração Burguesa". Com a restauração completa do capitalismo na URSS, o capital passou por um breve período de expansão econômica que deu as bases materiais para o que se convencionou chamar de Restauração Burguesa, cujo significado se expressou em diversos âmbitos e tinha como objetivo imprimir a ideia de que o capitalismo havia vencido definitivamente da ameaça comunista. Alguns pensadores do centro do capitalismo, como o alemão Robert Kurz, foram por um caminho, impactados com o avanço e a maior integração da tecnologia na geração de mais-valia, de revisar as ideias de Karl Marx e defender a tese de que “a incorporação da ciência ao processo produtivo está tornando antiquada a noção de classe operária” (Roberto Schwarz, Sobre Adorno, 2003). Em um prefácio, escrito por Schwarz, para um dos clássicos da Restauração Burguesa, intitulado “O Colapso da Modernização”, ele afirma:

“A ser verdadeira, a feição inviável que o desenvolvimento das forças produtivas tomou, levando o capitalismo ao impasse, confirma o prognóstico central de Marx. Por outro lado, a novidade da presente crise vem da incorporação da ciência ao processo produtivo, a partir da qual o peso da classe trabalhadora, seja do ponto de vista numérico, seja do ponto de vista da natureza do processo, entra em declínio. Assim, contrariando o outro prognóstico de Marx, a crise capitalista se aguça no momento mesmo em que a classe operária já não tem força para colher os seus resultados. A versão última do antagonismo não será dada pelo enfrentamento entre burguesia e proletariado, mas pela dinâmica destrutiva e excludente do fetichismo do capital, cuja carreira absurda em meio aos desabamentos sociais que vai provocando pode ser acompanhada diariamente pelos jornais.”

Tal trecho, difícil de tragar, é bastante exemplar do que significa a vertente pós-marxista, na medida em que afirma o Marx ao mesmo tempo que o nega, mas também da lógica de pensamento schwarziano, que poderia ser definido como “um marxismo especializado na inviabilidade do capitalismo, e não nos caminhos da revolução”.

Ainda mais para nós, que vivemos a pandemia do coronavírus e assistimos os patrões do mundo inteiro estéricos tentando obrigar os trabalhadores a voltar para seus postos de trabalho, a ideia de que as máquinas passariam a substituir os trabalhadores, tornando assim a ideia de classe operária “antiquada”, chega a fazer rir. Se era verdadeira a tese, porque não ficamos todos em casa, seguros da doença, enquanto os robôs faziam tudo para nós? O que sim o tempo vai evidenciando ainda mais é o quanto essa ideia era bastante marcada pela coloração da realidade central do capitalismo e pela miopia do que estava acontecendo na China, por exemplo, cuja classe trabalhadora industrial estima-se em mais de 200 milhões (um “Brazul” inteiro). Cadê a superação numérica e de natureza? A cada dia que passa os jornais deixam mais evidente a dependência completa que a burguesia tem da classe trabalhadora, de onde retira todo seu lucro através da exploração de mais-valia, e a incorporação da ciência no processo produtivo aparece então como necessidade de potencialização dessa exploração, e nunca sua superação.

Uma consequência formal

Feito tal preâmbulo, podemos agora tentar arriscar algumas opiniões iniciais sobre a forma do texto literário em questão.

Como pudemos ver, o Schwarz de “Rainha Lira” é um intelectual que mira a sociedade e vê um sistema fadado ao colapso. Sem ceder às ilusões burguesas, que são verdadeiros cantos de sereia para seduzir os trabalhadores até se afogarem na exploração capitalista, seu ceticismo o faz “jogar o bebê fora junto com a água do banho" quando é incapaz de ver o potencial revolucionário existente na classe trabalhadora. Contudo, esse aspecto ideológico acaba ganhando contornos formais (literários, por assim dizer) na obra. Retirada a perspectiva da possibilidade de um novo mundo, os atores da tragédia brasileira ganham um tom conformista, sem com isso perderem a crítica. Vejamos isso no momento do golpe:

“ALVES (apunhalando a rainha)
Para dar ao povo a ilusão de uma sociedade decente, ela travou o meu esquema de falcatruas, sem o qual o Brazul não funciona. Esta punhalada é um ato patriótico, de salvação nacional. Alguém precisava estancar a moralização.” (P. 115)

Vejam como o movimento se desenha: o PT aqui é lido pela burguesia que o trai como um partido de conciliação (“travou o meu esquema de falcatruas”); seu papel seria o de alimentar as ilusões da possibilidade de uma sociedade decente por dentro do capitalismo. Ambas as afirmações (verdadeiras) poderiam sair da boca de um marxista criticando o PT à esquerda. Porém, a questão aqui é notar as sutilezas que permitem-nos ver como a forma escolhida apresenta essas ideias impregnadas de conformismo com o reformismo, típico de um cético que não acha possível haver uma revolução. Com esse ângulo crítico, o PT perde o status de obstáculo para a classe poder superar essa sociedade desigual e contraditória e vira apenas um “bobo da corte” que enche as massas de ilusões, uma vez que não pode haver obstáculos se para ele (Schwarz) não há nem mesmo uma linha de chegada ou corredores capazes de vencer.

Posta de lado a locomotiva da luta de classes, a narrativa acaba perdendo dinamismo. A excessiva dependência da fala para construir as cenas (diferente de “Lata de Lixo da História”, na qual as rubricas das ações das personagens cumprem papel importante na narrativa) e longos monólogos são expressões disso no aspecto formal, cujo ritmo das cenas lembra a sensação de movimento estático, como, por exemplo, uma areia movediça (onde ficamos presos no mesmo ponto, mas afundando). As mobilizações e manifestações retratadas, ao invés de serem extremamente energéticas, ressoando todo o impulso de uma juventude querendo e buscando mudança, e contrastando isso com o governo do PT, na verdade tornam-se falatórios confusos da população. Mais um exemplo dessa carência de dinamismo, esse confucionismo também ajuda a aproximar ainda mais Junho da ascensão da extrema-direita.

Por fim, voltemos para a fala final do Rei que causou polêmica naquela sala de aula da UFMG:

“À boca pequena, os feras agora cochicham que só eu posso remendar essa colcha esfarrapada. Modéstia à parte, talvez possa. Mas daí fazer disso um país passável, que não seja um Frankenstein à luz do dia, vai um trabalho que é difícil de imaginar. Para minha glória e vexame dos que mandaram me prender, serei convocado, ou melhor, reconvocado - sem ter ideia do caminho. Para terceirizar o fracasso? Me tragam sugestões.” (P. 120)

Quem estava certo, aqueles que viram crítica ou reivindicação na leitura de Lula como capaz de solucionar as necessidades do país? Digamos que agora somos capazes de dizer: ambos estão certos e errados ao mesmo tempo. Mais uma vez estamos diante de um trecho bem exemplar das expectativas que o Schwarz tem do PT, que não passam de vê-lo como talvez o único capaz de administrar a miséria do possível capitalista (“Modéstia à parte, talvez possa”), tal qual um cientista que nutre e sustenta um “Frankenstein à luz do dia”. De terceirização em terceirização do fracasso, o reformismo trava “o esquema de falcatruas, sem o qual o Brazul não funciona”. Portanto, evidentemente há a crítica, envernizada com o conformismo do cético, que cria um certo ar de leveza como se dissesse nas entrelinhas “é disso para pior”


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