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A Music Session #53 de Shakira com Bizarrap bateu recordes de visualizações em poucas horas. Críticas e elogios se multiplicaram rapidamente na imprensa mundial. Mas a música da cantora colombiana, após sua separação do jogador de futebol e empresário Gerard Piqué, gerou um debate inusitado entre figuras feministas nas redes sociais.

Andrea D’Atri@andreadatri

quarta-feira 18 de janeiro de 2023 | Edição do dia

Curiosamente, enquanto a grande mídia questionava Shakira pelas referências depreciativas ao pai de seus filhos e sua nova namorada, ou se surpreendia por ter revelado sua dor transformada em vingança, muitas feministas coroaram a cantora como uma vingadora das mulheres.

O feminismo no Twitter parece ter encontrado em Shakira e seu hit um empoderamento feminino que consiste em zombar do homem que a abandonou há sete meses, depois de um casamento de doze anos, incluindo um menosprezo e ridicularização da jovem que é a atual namorada de Piqué.

Um suposto empoderamento que se manifesta afirmativamente por todo o gênero feminino na frase mais repetida pelas partidárias desta peculiar interpretação feminista: “As mulheres já não choram mais / As mulheres lucram”.

Aplausos, análises forçadas e consumo irônico feministas

Que Shakira componha o que quiser. Somos pela liberdade total na arte. Mas não forcemos análises e interpretações para encontrar um feminismo combativo onde não há.

Sua produção musical nunca foi considerada feminista, simplesmente porque seu repertório é repleto de clichês do amor romântico heterossexual que o feminismo se empenhou em revelar, assim como como outras tantas formas enganosas em que se reproduz a subordinação da mulher: deslumbramento, paixão, atração sexual apaixonada, nostalgia na separação, reprovações, vingança. Não precisamos que ela seja feminista para dançar sua música, nem a cancelaríamos por suas letras que reafirmam os estereótipos dos quais queremos livrar de nossas vidas.

A questão não é a Shakira, mas essa superabundância de aplausos feministas para a artista milionária; essas análises forçadas para que seu último hit se encaixe em conceitos teóricos e políticos que soubemos construir ao ritmo de nossas lutas coletivas.

E por fim, a questão também é até que ponto esse “consumo irônico” que se pretende retomar, com a piada acaba legitimando qualquer coisa indiscriminadamente.

Tal foi a repercussão que acabei concordando parcialmente com Marta Dillon e Julia Mengolini, duas jornalistas feministas com quem normalmente não costumo convergir em praticamente nada; mas que também expressaram seu cansaço nas redes sociais com esse feminismo que parece ter virado moda. Embora seria bom se questionarem sobre as responsabilidades de termos chegado a esse ponto.

[Tweet de Marta Dillon: “Quinze dias desconectada e quando volto falam de Shakira e sua milésima canção de vingança. O que fizemos para um casal de mega milionários definirem a agenda feminista? Por via das dúvidas, claramente fico do lado de Clara.”]

Passou-se apenas um mês dos aplausos, análises e do irônico consumo feminista que foram destinados à seleção argentina e suas "invejáveis" famílias “abençoadas por Deus”. Outros milionários tomados como modelos de masculinidade desconstruída, de valorização do trabalho doméstico, de casais amorosos, de mulheres que se fazem respeitar, até de novas paternidades. Todas as expressões de horror sobre a perseguição de pessoas LGBTI+ e a subordinação das mulheres no regime do Catar desapareceram num piscar de olhos com o triunfo não esportivo de famílias milionárias, cujos membros de beleza hegemônica - natural ou faturada - nos permitiram espreitar suas vidas privadas inacessíveis, patrocinadas por marcas francesas de prêt-à-porter.

[Post de Julia Mengo: “Ontem ouvi a música da Shakira e achei um pouco engraçado isso de hiperventilar tanto as dores e rancores pessoais em tantos detalhes. Mas achei de muito mau gosto - em um momento em que se supõe que estamos todos contra a desigualdade social (que também impacta em outras crises, como a mudança climática) - a ostentação de ‘faturar e alardear com marcas caríssimas como grandes metáforas de realização pessoal. Ainda mais vindo de uma artista multimilionária à beira de um julgamento por sonegação fiscal na Espanha. Até agora, são detalhes anedóticos ou contradições que vemos em milhares de artistas que amamos. Então comecei a ver postagens de amigas e colegas que amo e com quem aprendi muito, sugerindo que a música de Shakira pudesse ser pensada como um avanço simbólico do feminismo. Por mais apreço que lhes tenha, não concordo, porque nem toda atitude de poder de uma mulher é um ato feminista. Para que seja uma atitude feminista, deve necessariamente ser algo que nos empodere a todas.
Fiquei atônita e quis expor minha posição. Fiz alguns tweets que logo apaguei em um ato de covardia, mas que deixo aqui novamente. Muitas responderam que era apenas uma música e que não dá para politizar tudo. Eu não posso estar mais de acordo. Passo meu tempo ouvindo e dançando músicas com letras horríveis como todos nós fazemos. Minha proposta partiu de uma politização anterior, que situou a canção como um lema feminista. De um ponto de vista mais leve, também não me parece que escrever sobre vingança seja um ato emancipatório. Se qualquer expressão feminina é feminismo, nada (ou tudo) é feminista. E nossa faca se torna cega e fraca.
É verdade que os artistas fazem músicas com o que têm em seus corações e eu não questiono a música. Mas acredito que nem o ressentimento com um ex (e sua atual namorada), nem a ostentação podem ser o nosso empoderamento. O feminismo não pode ser comido pelo liberalismo e individualismo destes tempos.
Vamos dançar, vamos curtir a música que gostamos. Não politizemos tudo. O que também significa não dar uma entidade política a obras artísticas que não merecem esse rótulo.
”]

Também não precisamos que algumas, quando já se cansaram de nos confrontar com a nossa falta de sororidade com a ex deputada e atual funcionária larretista Silvia Lospennato [ex deputada argentina defensora de ataques e contrarreformas da direita] quando apoiava o aborto legal, agora nos expliquem que não temos que ter sororidade com todas as mulheres, para justificar a vingança de Shakira contra Clara Chía. Claramente, parece-nos pior roubar o futuro de várias gerações com a terrível dívida externa do que roubar um pouco de geleia.

Avanços e retrocessos

Esse raro feminismo, que invadiu o país que deu origem ao movimento Ni Una Menos e à maré verde, se entretém com os atos individuais da vida privada das celebridades. Como ela se comportou, como respondeu à imprensa, o que tuitou, a foto que postou no Instagram, a música que compôs ou o gesto com que comemorou um gol... tudo é matéria para elogios e análises feministas. Eles parecem aspirar a uma sociedade virtuosa, ao invés de justa. Uma sociedade onde somos todas irmãs, unidas pelo desejo de vingança.

“Mas o feminismo que soubemos construir ao longo da História não é uma irmandade, nem uma soma de comportamentos individuais exemplares, mas um movimento social e político que aspira transformar radicalmente as estruturas patriarcais que sustentam a discriminação, a desigualdade, a subordinação na vida de milhões de mulheres, e não mulheres milionárias.”

Uma desigualdade que, vale lembrar, existe não só no Catar ou no Irã, mas também - com outras expressões - nos regimes mais democráticos do mundo ocidental.

E este movimento social é formado por alas e tendências que acreditam que o objetivo de liquidar essa desigualdade será alcançado por diferentes vias. Mesmo que pudéssemos dizer que concordamos sobre o que lutar, existem muitas diferenças entre nós sobre o como. Por isso, este é também um movimento diverso, cujas tendências batalham para imprimir sua orientação por meio do debate de ideias, da luta política, da unidade na ação e da separação estratégica.

Logicamente, quando as mulheres partiram para a ofensiva, ocuparam as ruas, reivindicaram direitos e o movimento conseguiu se mobilizar em torno de suas reivindicações, isto também encontrou expressão na cultura de massas. Circunstancialmente, por convicção ou oportunismo - tanto faz -, as lutas do feminismo se refletiram nas produções artísticas de diferentes naturezas e nos meios de comunicação. Mas quando o movimento deixa de se mover, se fecha em círculos mais estreitos e predominam as tendências políticas que lhe dão uma orientação passiva e fragmentária. Quando ele deixa de ser protagonista da vida política, então os velhos estereótipos e preconceitos voltam à cena.

Por um mundo em que as mulheres não chorem e ninguém lucre

Talvez, pela negativa, esta seja a demonstração mais óbvia de que as mudanças culturais, que se expressam na adoção de novos comportamentos individuais, estão no meio do caminho entre a moda e as transformações estruturais. Embora, do ponto de vista da vida individual (de alguns setores de mulheres de algumas gerações), as mudanças sejam enormes, essas mudanças culturais não se estabelecem definitivamente sem uma transformação radical desta sociedade capitalista patriarcal em que vivemos.

Uma sociedade em que a propriedade privada de alguns poucos priva milhões de toda a propriedade; em que milhões de mulheres ganham somas miseráveis ​​encobrindo relações exploratórias de trabalho para que alguns homens e mulheres empresários e empresárias possam sonegar impostos. Uma sociedade em que as desigualdades não são sofridas apenas pelas mulheres, mas por milhões de seres humanos submetidos à fome, à precarização, à exploração de suas forças capazes de produzir tudo o que sustenta o mundo, incluindo os luxuosos Rolex e Ferraris dos quais apenas poucos usufruem, ou os Casio e Twingo da classe média.

Uma sociedade que aspiramos transformar desde os seus alicerces. Transformação pela qual lutamos coletivamente (por enquanto, em minoria dentro do amplo e diverso movimento do qual fazemos parte), nós feministas anticapitalistas, socialistas e revolucionárias.




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