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SEMANÁRIO

Sobre o livro Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional

Juan Dal Maso

Sobre o livro Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional

Juan Dal Maso

Próximo do último aniversário da morte de Marx, deixaremos alguns comentários sobre o livro Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional (Boitempo, 2014), compilado e prefaciado por Marcello Musto.

O livro agrupa 80 documentos da AIT, divididos em 13 partes: “O discurso inaugural”, “O programa político”, “O trabalho”, “Sindicatos e greves”, “O movimento e o crédito cooperativo”, “Sobre a herança”, “A propriedade coletiva e o Estado”, “Educação”, “A Comuna de Paris”, “O internacionalismo e a oposição à guerra”, “A questão irlandesa”, “Sobre os Estados Unidos” e “Organização política”. Estes textos correspondem a vários autores, entre os quais, obviamente, se destacam Marx e Engels.

Publicado originalmente em inglês, italiano e português de modo simultâneo em 2014, por ocasião dos 150 anos da fundação da AIT, esse livro constitui uma boa porta de entrada à história, aos debates e aos grandes objetivos que a Associação Internacional de Trabalhadores, ou Primeira Internacional, traçou para si. Por um lado, desmente que esta tenha se constituído como um episódio estritamente marxista, enquanto por outro, estabelece a centralidade que o papel de Marx teve, sem desconhecer outros atores.

Nos referimos especialmente a vários dos temas abordados por Musto em seu estudo preliminar, recorrendo também, quando necessário, a alguns dos documentos. As páginas citadas em números romanos correspondem ao estudo preliminar e as em números arábicos ao texto principal

Uma organização "híbrida"

Uma das questões mais chamativas que surgem do estudo preliminar de Musto e da leitura dos diversos documentos que compõem esse volume, é o caráter híbrido ou combinado da nova organização, composta por mutualistas franceses, sindicalistas britânicos, comunistas alemães e de vários países europeus, mazzinianos, etc. A AIT era uma organização social, sindical e política e, a rigor, nunca ultrapassou esse caráter híbrido que, devido à realidade do movimento operário de seu tempo, poderíamos considerar uma de suas principais virtudes. Manter unido todo esse amplo espectro foi um dos grandes méritos de Marx, baseado, por sua vez, no reconhecimento de que os primeiros passos na organização internacional da classe trabalhadora não podiam saltar o trabalho de clarificação das distintas orientações que existiam em seu interior, assim como era necessário incorporar todas as formas de luta do movimento operário sob a órbita da organização. Aqui podemos apontar a heterogeneidade característica de uma etapa fundamental do movimento operário, ao mesmo tempo que se percebe uma questão central, que sofreria uma importante modificação pelas mudanças nas relações de forças realizadas pelas formas estatais durante o séc. XX: a inexistência de uma divisão nítida entre lutas econômicas e lutas políticas

Musto o resume bem do seguinte modo:

…com todas as dificuldades relacionadas com a diversidade de nacionalidades, idiomas e culturas políticas, a Internacional conseguiu alcançar a unidade e coordenação através de uma ampla gama de organizações e lutas espontâneas. Seu maior mérito foi demonstrar a necessidade absoluta da solidariedade de classe e da cooperação internacional, ultrapassando decisivamente o caráter parcial dos objetivos e estratégias iniciais. (p. XLI).

Deve-se notar que Marx sempre foi consciente deste caráter híbrido da organização, mas nunca escondeu sua posição sobre a importância da AIT lutar no plano político. Assim, no seu discurso inaugural de posse, afirmou que o “grande dever das classes operárias” era “conquistar o poder político” (p. 9). Veremos que sobre essa questão não havia e não haveria unanimidade na AIT, dentro da qual havia diferentes posições sobre o tipo de atividade que a classe trabalhadora deveria levar adiante. A primeira oposição e mais elementar foi entre aqueles que defendiam o mutualismo e se opunham à luta de classes e aqueles que consideravam que a luta de classes era a principal atividade que a organização deveria desenvolver. Iremos nos referir a isso abaixo.

Crepúsculo do mutualismo, luta de classes e socialismo

A luta política mais conhecida na Primeira Internacional é o enfrentamento entre marxismo e anarquismo, Marx e Bakunin. Entretanto, essa discussão corresponde a um momento em que a AIT já havia se declarado a favor da luta de classe e da socialização dos meios de produção.

O Congresso de Genebra (1866) afirmou a importância da luta sindical na prática do movimento operário, como parte da luta de classes, e o apoio ativo da AIT às greves foi concebido como parte de uma prática internacionalista.

O papel da AIT, desenvolvendo o apoio ativo das lutas do proletariado, a nível de cada país e internacionalmente, marcou o auge dos métodos de luta de classes, contra as posições mutualistas, que não podiam dar resposta à própria experiência da classe trabalhadora. Essa polêmica tem uma curiosa atualidade, porque - embora em um contexto totalmente diferente e no marco da estatização de sindicatos e movimentos sociais - as posturas conciliadoras do mutualismo ressurgem por outras vias através das tendências reformistas de nosso tempo.

As greves que cresceram desde o final de 1866 em vários países marcaram um auge da AIT. Musto relembra as greves dos trabalhadores do bronze de Paris entre fevereiro e março de 1867, as dos metalúrgicos de Marchienne também em fevereiro daquele ano, a greve da construção em Genebra em 1868, entre outras. Em 1870, a organização tinha entre trinta e quarenta mil na França, possivelmente um número um pouco maior na Bélgica, seis mil na Suíça. Mas Musto destaca duas limitações que teve: pouco peso no proletariado industrial (por exemplo, na Grã-Bretanha teve peso preponderantemente na construção) e pouca penetração nos setores menos organizados e mais precários (p. XXXIII).

O período de clarificação e discussão que culminou no Congresso de Bruxelas (1868), foi marcado pela prévia luta comum entre Marx e os sindicalistas britânicos contra as posições mutualistas (inspiradas por Proudhon), que rechaçavam os métodos da luta de classes porque radicalizavam a divisão da sociedade (p. XLV). Musto destaca, em seu estudo preliminar, que foi a própria experiência de luta da classe trabalhadora que deixou essas posições em minoria.

Por sua vez, a definição dos Congresso de Bruxelas em busca da luta pelo socialismo foi um passo fundamental na história da AIT, para a consolidação da derrota do mutualismo bem como da aliança entre Marx e o sindicalismo britânico (que mais tarde assumiria posições mais conservadoras) no interior da organização e pela assunção de uma perspectiva revolucionária global do ponto de vista público.

Para sempre, a Comuna

A experiência da Comuna de Paris, primeiro governo operário da história, passaria à posteridade como um magnífico exemplo de forma concreta que poderia adquirir a ditadura do proletariado, assim como do que posteriormente se chamaria “desenvolvimento desigual e combinado”, “tempos equívocos”, “discordância dos tempos” e outras expressões similares, que buscam dar conta de como os processos históricos estão cruzados por contradições entre situações objetivas e posições subjetivas, relações de forças nacionais e internacionais, demonstrações de valor e falta de experiência etc. Como aponta Musto em seu estudo preliminar, diferentemente dos blanquistas e anarquistas, Marx tinha suas reservas sobre as perspectivas desta grande insurreição, que, no entanto, defendeu incondicionalmente e da qual buscou tirar conclusões para pensar a prática revolucionária do movimento operário.

O impacto dessa experiência sobre a AIT foi substancial. Como aponta Musto, impôs outro tipo de cunho às reflexões sobre o tipo de atividade que a classe trabalhadora deveria realizar:

A experiência ensinou que a revolução era possível, que o objetivo poderia e deveria ser construir uma sociedade totalmente diferente da ordem capitalista, mas também que, para conseguir isso, os trabalhadores deveriam criar formas duráveis e bem organizadas de associação política (pp. LXI/LXII).

No que diz respeito ao problema da organização política, viraria então a discussão do Congresso de 1871, que levou à divisão entre “centralistas“ e “autonomistas” e à crise da AIT.

Os dilemas do “partido-classe”

Marx tentou avançar, no Congresso de Londres (1871), na definição da AIT como partido político. Se baseava nas conclusões da Comuna, mas não se tratou de um giro intempestivo: lembremo-nos que em seu discurso inaugural ele já havia levantado o tema da luta da classe operária pelo poder político. No entanto, diante da presença dos anarquistas, a discussão se fez mais complicada do que Marx esperava.

A posição de Marx gerou a revolta dos “autonomistas” que se opunham a uma direção centralizada e não compartilhavam as concepções políticas dele sobre o tipo de ação política que a classe trabalhadora deveria levar adiante, especialmente os anarquistas que diziam que a única política aceitável consistia na revolução para abolir o Estado. Musto aponta que a tentativa de Marx foi prematura, porque o movimento não estava em condições de assumir de maneira conjunta a posição partidária. A questão que resta a ser considerada é se havia um problema de oportunidade tática ou de condições históricas concretas para a viabilidade da proposta, análise que parece plausível, ou se existe um problema mais amplo, relacionado à impossibilidade intrínseca do “partido-classe”. Marx e Engels apontaram no Manifesto Comunista que os comunistas não constituíam um partido diferente das demais tendências da classe operária, simplesmente eram os que pensavam nos interesses e objetivos do conjunto. Então, em um movimento da classe que tendia a sua unidade e homogeneização, a organização da classe e do partido coincidiam. Entretanto, as diferenças no interior do movimento operário em torno das questões mais de fundo (mutualismo vs luta de classes e comunismo, anarquismo vs marxismo, para resumir as duas polêmicas mais importantes) mostravam que a organização da classe não coincidia necessariamente com a organização em partido e que as distintas perspectivas político-programáticas expressavam distintos projetos de partido. A possibilidade do “partido-classe” residia em que não havia interesses materiais contrapostos entre as diferentes tendências (como depois ocorreria com o desenvolvimento da burocracia operária reformista no século XX, integrada ao Estado mediante certas regalias materiais), mas política, ideológica e programaticamente, o projeto não era totalmente consistente, porque as diferentes linhas levavam a diferentes políticas. Esse paradoxo tomou forma na tentativa fracassada de Marx de construir uma disciplina de partido na AIT e na posterior ruptura com os anarquistas.

Marxismo e anarquismo

Em 1872, ano da dissolução da AIT unitária, o enfrentamento entre “centralismo” e “autonomismo” constituiu-se em grande parte como um confronto entre marxismo e anarquismo. Aqui Musto destaca que existe certo exagero da importância das diferenças entre Marx e Bakunin, não porque elas não fossem muito significativas, mas porque não é historicamente apropriado referir a elas as razões da crise da internacional:

O crescimento e a transformação das organizações do movimento operário, o fortalecimento do Estado-nação como um resultado da unificação italiana e alemã, a expansão da Internacional em países como Espanha e Itália (de onde as organizações econômicas e sociais eram muito diferentes das que prevaleceram na Grã-Bretanha e na França), a virada para uma maior moderação no movimento sindical inglês, a repressão posterior à Comuna de Paris; todos esses fatores fizeram que a configuração original da Internacional se tornasse inapropriada para os novos tempo. (pp. LXXVII/LXXVIII.)

Essa explicação é mais satisfatória, ao menos mais abrangente, que a das lutas sectárias entre Marx e Bakunin. Por outro lado, deve-se notar que, embora o anarquismo coincidisse com os objetivos de fundo que apontava a concepção comunista de Marx, sua prática política era muito inconsistente em relação aos seus objetivos declarados (como o da revolução imediata e a igualmente imediata abolição do Estado). Pouco tempo depois dos debates de 1872, Engels teve ocasião de passar em revista a atuação dos anarquistas espanhóis nos levantamentos populares de 1873, nas quais, de fato, renunciaram à maioria de suas concepções, como se pode ler em “Os bakuninistas em ação”. A isto pode-se agregar que, além de certa desconfiança necessária nos poderes excessivamente concentrados (que Musto reconhece como pertinente para pensar o problema da transição ao socialismo), o anarquismo é teoricamente eclético, mesclando coletivismo e liberalismo e, portanto, aquilo em que estava bem orientado já fazia parte do próprio marxismo, mas formulado em termos materialistas.

A vigência do internacionalismo

Musto conclui seu estudo preliminar com uma reflexão sobre a distância entre os níveis de combatividade, solidariedade, organização e radicalidade do movimento operário que pôs de pé a AIT e o atual. Ao mesmo tempo aponta a necessidade de pensar em uma nova internacional (p. XCV):

Hoje, a barbárie da “ordem mundial”, os desastres ecológicos produzidos pelo atual modo de produção, a crescente brecha entre a minoria de exploradores a grande maioria empobrecida, a opressão das mulheres e os tempestuosos ventos da guerra, o racismo e o chauvinismo, impõe sobre o movimento operário contemporâneo a urgente necessidade de se reorganizar sobre a base de duas características fundamentais da Internacional: a multiplicidade de sua estrutura e o radicalismo dos objetivos. As metas da organização fundada em Londres há cento e cinquenta anos são mais vitais do que nunca. Entretanto, para enfrentar os desafios do presente, a nova internacional não pode fugir de duas exigências: deve ser plural e deve ser anticapitalista.

Desta forma, Musto destaca o papel histórico da Primeira Internacional, não apenas como a primeira tentativa de construir uma organização operária e socialista em escala mundial, mas superada pela história (análise que se corresponde com os de boa parte do marxismo do século XX), mas também que levanta a possibilidade de retomar a ideia de uma composição de múltiplas tendências anticapitalista como opção possível para a construção de uma organização internacional na atualidade.

A reflexão é pertinente, especialmente em um contexto em que a guerra da Ucrânia fez estragos em boa parte da esquerda, alinhada com a OTAN, enquanto outro setor pratica uma posição igualmente “campista”, mas do lado russo. O internacionalismo parece não ser muito popular na atualidade, devido à ascensão de correntes soberanistas de direita, embora a dimensão internacional dos processos parece bastante clara: a ofensiva “neoliberal” foi internacional, o “trumpismo” é internacional, a pandemia foi internacional, as revoltas e as atuais lutas operarias contra a inflação e a carestia de vida são internacionais. Concordo com Musto que o imaginário do movimento operário do final do século XIX era muito mais anticapitalista que na atualidade, mas acredito que seja importante não perder de vista que, desde os anos 1990, a classe trabalhadora vem buscando, a nível internacional, os modos de articular ações de resistência, se não contra o sistema como tal, pelo menos contra os efeitos mais negativos das políticas dominantes, como pode se ver atualmente na França, à qual devemos agregar as lutas e revoltas populares e o movimento de mulheres. Poderíamos pensar que, embora o comunismo como um fim ou objetivo a ser conquistado não faça parte do horizonte ideológico das massas, não ocorre o mesmo com o comunismo como movimento real, isto é, como luta de classes em que a plena realização de suas necessidades requer a superação do capitalismo, a transição e o comunismo. Para aproximar ambas as figuras, a do comunismo-fim e a do comunismo-movimento [1], precisamos do internacionalismo e, nesse contexto, existem tarefas pendentes que correspondem às mesmas que buscou desenvolver a Primeira Internacional, tanto por sua solidariedade internacional efetiva na luta de classes, como por seu programa socialista.

Mas, ao mesmo tempo, é importante destacar que a AIT foi o início de uma série de experiências internacionalistas do movimento operário, das quais também é possível realizar seus inventários específicos. Fazer o balanço da socialdemocracia e do estalinismo requer apelar não apenas às tradições anteriores, mas também à crítica marxista do século XX. Ali, a bagagem dos quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista, as reflexões de Lênin, Trótski, Gramsci, Rosa Luxemburgo e Mariátegui tem muito a contribuir, assim como as lutas da tradição trotskista e quarta-internacionalista. Da mesma forma, e alinhado com o que apontamos antes sobre as contradições do “partido-classe”, se na segunda metade do século XIX podia ser uma opção mais ou menos realista, em pleno século XXI e depois de mais um século de burocratização das organizações operárias, torna-se inevitável a diferenciação entre partidos revolucionários e reformistas, o que não cabe em uma definição de anticapitalismo genérico.

Numa ordem mais específica de problemas estratégicos, existem dois problemas fundamentais da atualidade que remetem muito mais a questões da III Internacional que às da Primeira: o problema da Frente Única, que envolve as organizações de massas, e os problemas da hegemonia, que envolve uma articulação de demandas democráticas e socialistas. É verdade que - em problemas como a da questão irlandesa ou o problema da unidade das distintas tendências operárias - podem se encontrar certos traços desses temas na experiência da AIT. Mas a mudança de marco estratégico, ocorrida particularmente pela distinta relação entre o movimento operário e o Estado antes e depois da Primeira Guerra Mundial, a Revolução russa e os anos 1920 do século passado, além das modificações que sofreu durante a segunda pós-guerra e sobretudo desde os últimos 40 anos, torna mais difícil beber exclusivamente na Primeira Internacional como base para a reconstrução do internacionalismo proletário.

A corrente da qual o autor dessas linhas faz parte, partidária da refundação da IV Internacional, colocou em diversos momentos a necessidade de pôr de pé um movimento por uma Internacional da revolução socialista. Hoje parece uma tarefa mais necessária do que nunca e ao mesmo tempo bastante difícil, pela descontinuidade entre o marxismo e o movimento operário e a derrocada “campista” de boa parte da esquerda. Assim, ao mesmo tempo que promovemos todos os tipos de experiências e formas de luta, vale resgatar a história prévia da classe trabalhadora para ver em que medida ela fala de nossos desafios atuais, como fonte de inspiração e como caixa de ferramentas, para o qual o trabalho de investigação de Marcello, além de nossos acordos e diferenças, é uma contribuição destacável.


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FOOTNOTES

[1Sobre o debate de comunismo como fim e como movimento real e os diferentes regimes discursivos sobre o comunismo em Marx, ver Barot, Emmanuel, Marx en el país de los soviets o los dos rostros del comunismo, Bs. As., Ediciones IPS, 2017.
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