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Socialistas não deveriam votar em Joe Biden

Omar Hassan

Socialistas não deveriam votar em Joe Biden

Omar Hassan

Este artigo foi publicado no Left Voice como tribuna aberta (guest post) e originalmente no Red Flag. Nele, Omar Hassan, editor da Marxist Left Review, polemiza contra o voto do “mal menor” em Biden nas próximas eleições dos EUA e os diferentes argumentos usados por intelectuais da esquerda norte-americana como Dan La Botz, e referentes da revista Jacobin como Bhaskar Sunkara ou Branko Marcetic.

Com a eleição presidencial dos EUA cada vez mais perto, a pressão para seguir Joe Biden é cada vez maior. Como era de se esperar, a maioria da esquerda socialdemocrata e liberal está promovendo o ex-vice-presidente, ainda que alguns hesitem em apoiá-lo formalmente. Mais surpreendente foi o passo sem precedentes dado por vários respeitados socialistas, em particular Dan La Botz, defendendo votar em um homem que pediu à polícia para que atire nas pernas dos manifestantes do Black Lives Matter.

Em quase todos os casos, o argumento é o mesmo: Donald Trump é uma ameaça única e deve ser parado a qualquer custo. Em um artigo desesperado para o New Politics, La Botz agita o fantasma de um golpe e de uma ditadura Trump como uma razão para votar em Biden. La Botz está longe de estar sozinho em enfatizar o perigo que Trump, com sua inegável afinidade com a extrema direita, coloca para a democracia estadunidense.

“A polarização central no país hoje é entre um bloco trumpista que caminha em direção a um regime autoritário e uma oposição majoritária que, mesmo com todas as vacilações e diferenças internas, está defendendo o espaço democrático que movimentos por justiça, paz e mudança radical precisam para avançar”, escreveu o ex-maoísta Max Elbaum no organizingupgrade.com. “As eleições de 2020 determinarão que força terá o poder de governar”.

Pessoas ponderadas podem discordar se Trump é um fascista, mas é ridículo pensar que um golpe fascista ou um governo fascista está entre as possibilidades no Estados Unidos. Contra Trump há setores substanciais da maquinaria do Estado – dentre esses os mais importantes são os generais – e grandes setores da classe capitalista. Simplesmente não há necessidade ou urgência de uma ditadura dentro da elite governante dos EUA: eles estão ficando incrivelmente ricos e não enfrentam nenhuma ameaça interna ao seu poder. Enquanto os sentimentos de extrema direita estão claramente crescendo em setores da base republicana, suas organizações estão mais fracas do que em outros momentos da história estadunidense. Quase todas as principais tentativas de mobilização por parte da extrema direita nos últimos tempos foi superada por manifestações do BLM (Black Lives Matter) ou contramanifestações organizadas por antifascistas.

É correto dizer que Trump está dando confiança à extrema direita e seu discurso de intolerância. E é sem dúvidas verdadeiro que Trump está dando o seu melhor para tentar roubar a eleição usando todos os meios à disposição (isso não é uma novidade na política estadunidense). Mas nós devemos ser claros sobre o significado da levemente histérica campanha atual do establishment contra Trump. Unindo direitistas bilionários como Mike Bloomberg, mercenários republicanos como Anthony Scaramucci, falcões da guerra neoconservadores da segurança nacional e a classe média alta dos subúrbios, o chamado movimento “never Trump” não é uma defesa genuína da democracia ou dos direitos dos votantes negros, mulheres, imigrantes e trabalhadores. Na verdade, eles querem Trump fora porque ele ameaça as alianças imperiais deles e a legitimidade e credibilidade do Estado estadunidense.

Mesmo que ele não seja fascista, muitos argumentam que a administração Trump foi tão prejudicial aos trabalhadores, minorias e a esquerda que mesmo uma administração neoliberal de Biden seria um passo à frente. Isso não está confirmado pelos fatos. Trump matou muito menos gente no Oriente Médio que os presidentes George W. Bush ou Barack Obama. Ele deportou uma fração dos imigrantes sem documentos. Muito se fala sobre encher as cortes com conservadores, uma mudança que sem dúvidas terá um impacto a longo prazo na sociedade estadunidense. Nada disso é novo. Legislaturas republicanas em vários estados têm feito isso por décadas, enfraquecendo os direitos de trabalhadores, mulheres, LGBT e outros no processo.

Um artigo de Stephen Shalom recentemente publicado na revista Tempest apresenta uma defesa mais sistemática do voto em Biden, argumentando que a composição partidária das instituições estatais tem influência significativa nas experiências vividas por aqueles governados por elas, e que por isso é preferível ter um mal menor contra o qual se organizar.

O artigo defende Biden, Hillary Clinton, Obama e Al Gore contra seus rivais republicanos, mas a conclusão óbvia é que os socialistas dos EUA devem apoiar democratas em geral. Porque se é melhor ter um mal menor como presidente, então certamente é melhor ter um mal menor como prefeito, governador, fiscal de distrito, xerife e assim por diante. Segundo a mesma lógica, você poderia argumentar que a esquerda deveria intervir nas primárias republicanas para prevenir outro Trump de sair vitorioso. (Joe Biden é realmente tão diferente de Jeb Bush?)

Mas mesmo sem chegar a esse final absurdo do argumento de Shalom, há problemas importantes no artigo. O primeiro é sua tendência a maquiar as políticas do Partido Democrata. “Sim, Biden se opõe ao socialismo e nossas propostas radicais”, ele escreve. “Mas ele não se opõe à nossa defesa da DACA [1] ou à nossa rejeição a deixar o tratado climático do Acordo de Paris, o acordo com o Irã, e acordos de controle de armas nucleares, ou nossa oposição às forças de Segurança Nacional em Portland, o nosso chamado a que a Covid seja enfrentada com ciência, ou nosso batalha para proteger os direitos reprodutivos e os direitos LGBT, etc., etc.”

Apresentar assim as políticas de Obama é ridículo. Ele foi responsável pela maior acumulação de armas nucleares em décadas, e deportou um número recorde de 3,2 milhões de imigrantes sem documentos. Em outra parte do artigo, Shalom sugere que socialistas deveriam votar para eleger Biden porque há pouco tempo para reverter a catástrofe climática – mas Biden se negou a se comprometer com medidas concretas para frear o uso de combustíveis fósseis.

Um ponto mais fundamental que Shalom afirma é que governantes democratas são mais responsivos aos movimentos sociais que os republicanos. Como evidência ele aponta a legislação de direitos civis aprovada pelas administrações Kennedy e Johnson nos anos 60 e as reformas do New Deal nos anos 30. Em resposta, você poderia apontar a repressão violenta de Obama contra ativistas do clima e indígenas que tentavam impedir a construção do oleoduto de Dakota, ou sua defesa da polícia frente ao primeiro movimento Black Lives Matter. Você também poderia explorar a longa história de governos democratas – inclusive governos de democratas negros – em cidades dos EUA, que fizeram pouco para tratar das desigualdades de classe e raça.

Mas o debate real não é se os democratas são em todas as instâncias exatamente tão reacionários quanto os republicanos. Democratas têm um interesse eleitoral básico de construir uma imagem mais progressista deles, refletindo de uma maneira distorcida os sofrimentos dos distritos eleitorais mais pobres e mais diversos do ponto de vista racial. Também não é uma surpresa que democratas reformistas tenham sido eleitos quando a esquerda estava relativamente mais forte e as demandas por mudança tinham se espalhado. É uma dinâmica natural no capitalismo democrático liberal, reforçando o mito de que demandas por justiça e mudança podem ser alcançadas por dentro do sistema e por meios eleitorais. O debate real é se socialistas deveriam se reduzir a animadores de torcida dos representantes mais competentes e ilustrados do grande capital.

Qualquer esforço real para defender o voto necessariamente implica em exagerar a força de Trump e minimizar o conservadorismo de Biden. Por isso aparecem artigos, como o de Shalom, que diminui os crimes prévios dos presidentes democratas (e mesmo de republicanos). Também explica artigos recentes de Bhaskar Sunkara no Guardian [2] e Branko Marcetic na Jacobin [3], que cinicamente aconselham Biden sobre como conseguir votos de millenials desconfiados, fazendo piada com a posição formal do DSA (Democratic Socialists of America) de se recusar a apoiar Biden.

O que emerge destes artigos e argumentos é um profundo sentimento de derrota e desmoralização na esquerda dos EUA. Em grande medida, eles abandonaram o objetivo de transformação social e escolheram embelezar o porco neoliberal.

Socialistas não deveriam aceitar o rebaixamento de nossos horizontes políticos dessa maneira. No momento enfrentamos enormes crises globais, econômica e sanitária, o aumento da probabilidade de conflito imperial entre grandes poderes e o futuro terrível da mudança climática. Nada distante de uma transformação radical de todo o sistema pode resolver esses problemas. Votar em neoliberais não levará a vitórias significativas em nenhuma dessas batalhas. Uma vitória de Biden também não nos salvará dos perigos reais colocados pela extrema direita, que cresceu substancialmente durante a presidência neoliberal de Obama, marcada pelo discurso moderado.

Os marxistas têm uma abordagem diferente para lutar contra contra o fanatismo niilista do fascismo e da extrema direita. No fundo, é preciso movimentos de massa que possam popularizar uma ética política alternativa baseada na solidariedade da classe trabalhadora e no antirracismo, e chegar a uma transformação radical da sociedade no processo. Para começar, é preciso recusar a política como uma escolha entre dois lados da classe dominante fundamentalmente reacionária.

Tradução: Francisco Marques.


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FOOTNOTES

[1Ação adiada para chegada de crianças, em tradução literal: uma política de imigração que beneficia crianças sem documentação, instituída por Obama em 2012 e enfraquecida por Trump em 2017.

[2Nota do tradutor: membro do DSA e fundador e diretor da revista Jacobin.

[3Nota do tradutor: membro do staff da revista Jacobin.
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Editor do Marxist Left Review
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